1. Introdução.
Longe de ser um artigo, esta breve reflexão jurídica tematiza a questão da personalidade jurídica (?) e processual dos Tribunais de Contas, frente ao que dispõe a Constituição Federal em seu art. 71 da Constituição Federal e art. 41 e incisos do Código Civil Brasileiro.
2. Desdobramento do tema.
Tem o Tribunal de Contas personalidade jurídica? Quer nos parecer que não. A Corte de Contas é uma instituição constitucional independente que auxilia o Poder Legislativo por força da dicção do artigo 71 da Constituição Federal.
Todavia, como órgão é um centro parcial de competência, integrante da pessoa jurídica do Estado (centro total de imputação) no caso da Corte de Contas Estadual; e como órgão integrante da pessoa jurídica da União, no caso da Corte de Contas Federal.
É a melhor interpretação que se pode extrair das lições de Lourival Vilanova, [1]
Com a repartição de funções, instituição de órgãos específicos para funções específicas, cada órgão é um centro parcial de imputação, como o Estado é o centro total de imputação, de criação e de aplicação do direito. Cada órgão é um plexo de atribuições, de faculdades, de poderes e de deveres: é um feixe de competência. Como núcleo parcial de competência é um ponto de imputação (de referência, de atribuição, de pertinência).
Neste sentido são válidas, com alguns ajustes, as observações inseridas no voto do Ministro Demócrito Reinaldo do Superior Tribunal de Justiça,
"O Tribunal de Contas do Estado, malgrado figurar no pólo passivo da ação mandamental, não tem personalidade jurídica, por ser mero órgão auxiliar do Poder Legislativo (e a sua personalidade é meramente judiciária), não podendo, por isso mesmo, utilizar-se do recurso especial.
Não é jurídico nem legal cometer-se aos Conselhos de Contas a legitimação para defender, em juízo (ativa ou passivamente), as suas decisões, mas as suas prerrogativas. Interpretação de tal sorte dilargante, imporia o dever de se conceder aos Juízes e Tribunais judiciários, o poder de litigar, pela via recursal, porfiando a manutenção de seus julgados e, também, à autoridade coatora, na ação de segurança, o direito de recorrer, que é cometido à pessoa jurídica de direito público". (grifo consta do original). [2]
O fato decisivo é que o Estado forma sua vontade mediante órgãos. Cada órgão (Poder Judiciário, Poder Legislativo, Tribunal de Contas etc) é um centro parcial de imputação nas lições de Vilanova, comportando-se como sujeitos-de-direito, ou seja, partes da subjetividade total que é o Estado. Todavia, não existe o Estado como sujeito-de-direito, e ante si, o órgão, ou os órgãos, como autônomos sujeitos-de-direito. Sem órgão, não prospera o Estado; sem Estado, o órgão não é órgão. [3]
Por este raciocínio fica claro que se o Estado legisla, governa, sentencia, julga as contas dos administradores, assim o faz através dos seus órgãos. Por conclusão, se tais órgãos detivessem personalidade jurídica ante o Estado, poderiam estar contra o Estado, ou seja, o Estado legislando contra si mesmo, governando contra si mesmo, jurisdicionando contra si mesmo, e as Cortes de Contas defendendo suas decisões em juízo contra o próprio Estado. Essa relação do Estado contra ele próprio é, juridicamente, impossível. [4]
Como bem avalia Lourival Vilanova, com o habitual rigor analítico,
A divisão de poderes importa numa repartição de funções a órgãos diferentes. Os órgãos se tornam, em centros parciais de imputação, pontos de referência de um complexo de normas (e seus respectivos suporte fácticos). Os órgãos carecem de personalidade própria: a personalidade total do Estado sobrepõe-se-lhes. Mas a cada órgão é distribuído um feixe de atribuições, de faculdades, de deveres e de meios disponíveis, para a execução de suas funções. Esse plexo de direitos/deveres (para dizer num fórmula abreviada) é competência repartida. Há uma individualidade em cada órgão, uma diferenciação formal e material, indispensável para demarcar as relações jurídicas interorgânicas. (grifos do original). [5]
As Cortes de Contas como já adiantado, são órgãos do Estado, possuem personalidade judiciária e não personalidade jurídica, o que não lhes retira a independência que foi outorgada pelo Texto Constitucional. As Cortes de Contas podem litigar em juízo naquelas lides (alcunhadas pelo Ministro no voto acima), de lides interna corporis, ou seja, aquelas demandas oriundas de divergências entre os Poderes do Estado, e também em tantas outras onde estejam em foco o interesse constitucional que foi-lhe outorgado defender.
Exemplo da primeira lide: o Poder Executivo deixa de repassar à Corte de Contas, as verbas orçamentárias no prazo consignado na Constituição Federal, não respeitando assim a autonomia financeira da Corte de Contas. Neste caso, cabe a propositura da ação pertinente para preservação dos direitos que lhe são próprio, ocasião em que se reconhece a capacidade processual (personalidade judiciária) das Cortes de Contas na defesa de suas prerrogativas constitucionais.
Exemplo da segunda lide: um cidadão ou pessoa jurídica de direito privado promove ação em face de um Tribunal de Contas Estadual, é ao próprio Tribunal de Contas que compete inelutavelmente figurar no pólo passivo dessa ação na defesa de suas prerrogativas constitucionais.
Com efeito, as Cortes de Contas não têm personalidade jurídica, contudo têm, necessariamente, capacidade processual, para estar em juízo em seu próprio nome, quando na defesa de suas prerrogativas funcionais e direito próprios inerentes à instituição, por que se a Corte de Contas possui deveres e direitos subjetivos há de ter meios judiciais e capacidade processual para defendê-los.
O que se recusa às Cortes de Contas é a personalidade jurídica, esta sim, pertencente ao Estado, como novamente ensina Lourival Vilanova,
Recusa-se ao órgão a personalidade. Tem-se a personalidade como exclusiva do Estado. A personificação total, sim. E soberana: o que não impede a repartição da subjetividade entre os órgãos. O que é a unidade da personalidade total do Estado, sob o ponto de vista normativo, é a soberania exclusiva, a supremacia do Estado em face de todos os grupos e em face dos seus órgãos. (...) Cada órgão estatal carece de personalidade, como ente por si suficiente: o órgão é-o no interior, na estrutura do Estado. Se a personificação importa em converter o órgão em soberano, é contraditório pensá-lo soberano dentro do Estado, ou contra o Estado. A soberania, como qualidade de uma ordem jurídica que acima dela não tem senão o direito das gentes, reside no Estado, não o alterando a centralização ou descentralização de competências, a existência de órgão único, ou de órgão repartidos. A repartição é no exercício da soberania, que se estende num processo de diferenciação de competências. [6]
A mesma linha de raciocínio pode ser aplicada na relação entre os municípios e as câmaras legislativas, aliás, como já fora anotado por Hely Lopes Meireles,
A capacidade processual da Câmara para a defesa de suas prerrogativas funcionais é hoje pacificamente reconhecida pela doutrina e pela jurisprudência. Certo é que a Câmara não tem personalidade jurídica, mas tem personalidade judiciária. Pessoa jurídica é o Município. Mas nem por isso se há de negar capacidade processual, ativa e passiva, à Edilidade, para ingressar em juízo quanto tenha prerrogativa ou direitos próprios a defender". [7]
Ainda na linha de Hely Lopes Meireles, sinalizando a capacidade processual das Câmaras Municipais, adscreve José Nilo de Castro [8]
Na ação de nulidade ou desconstitutiva de julgamento das contas públicas do Prefeito Municipal, quem detém a legitimidade passiva é a Câmara Municipal, não o Município, como se tem alhures apregoado, em teimoso equívoco. (...) A despeito de órgão despersonalizado do Município, é a Câmara Municipal quem proferirá o julgamento das contas, como um dos Poderes locais, que tem direitos e prerrogativas a defender, e somente ela, a Câmara Municipal, é que pode responder a essa ação de nulidade, nunca o Município, pessoa jurídica de Direito Público Interno, que é representado pelo Prefeito Municipal." Mutatis mutandis, tal raciocínio pode ser aplicado em parte às Cortes de Contas, uma vez que já vimos que os tribunais possuem natureza anômala, ímpar, ou sui generis se comparados às câmaras municipais.
3. Conclusão.
As Cortes de Contas não têm personalidade jurídica, contudo têm, necessariamente, capacidade processual, para estarem em juízo em seu próprio nome, quando na defesa de suas prerrogativas funcionais e direito próprios inerentes à instituição, porque se a Corte de Contas possui deveres e direitos subjetivos há de ter meios judiciais e capacidade processual para defendê-los. O que se recusa às Cortes de Contas é a personalidade jurídica, esta sim, pertencente ao Estado na forma do art. 41, II, do Código Civil Brasileiro.
Notas
1Causalidade e relação no direito. 4ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, p. 265.
2 STJ, Rel. Min. Demócrito Reinaldo, 1ª T. Resp. nº 121.053/PB (97/0013299-4), recorrente: Tribunal de Contas do Estado da Paraíba; recorrido: Wilson Leite Braga. DJ de 27-10-97, p. 54.729.
3Causalidade e relação no direito. op. cit. 271 e 275.
4 Lourival Vilanova, Causalidade e relação no direito. op. cit. p. 265.
5Causalidade e relação no direito, op. cit. p. 273.
6Causalidade e relação no direito. op. cit. p. 282/283.
7Direito municipal brasileiro. 8ª ed. atual por Izabel Camargo Lopes Monteiro, Yara Darcy Police Monteiro e Célia Marisa Prendes. São Paulo. Malheiros. 1996. p. 434.
8Julgamento das contas municipais. Belo Horizonte. Del Rey. 1995. p. 81.