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O problema da desaposentação no direito brasileiro

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Agenda 03/11/2017 às 12:00

Elaborou-se um estudo analítico acerca da evolução jurisprudencial do tema desaposentação, culminando com o julgamento do STF no Recurso Extraordinário nº 381367/RS, em 26/10/2016.

1 INTRODUÇÃO 

Recentemente, nos autos do Recurso Extraordinário nº 381367/RS[1],  julgado em conjunto com outros dois recursos da mesma natureza (RE 661256/SC e RE 827833/SC), o Supremo Tribunal Federal definiu ser atualmente inviável o recálculo do valor da aposentadoria por meio da chamada desaposentação. Ao fim, estabeleceu o Pretório Excelso que apenas por meio de lei em sentido formal é possível fixar critérios para que os benefícios sejam recalculados com base em novas contribuições decorrentes da permanência ou volta do trabalhador ao mercado de trabalho após concessão da aposentadoria por tempo de contribuição proporcional.

Em verdade,  a discussão acerca dos marcos distintivos entre princípios e regras é um problema que há muito aflige especialistas em disciplinas propedêuticas jurídicas. Porém, considerando que o conhecimento é um elemento aproximativo, temporário e refutável, o objetivo deste artigo científico não é esgotar ou analisar exaustivamente a questão, mas sistematizar os postulados já consagrados na doutrina e na jurisprudência. Assim, muito longe de expor conclusões definitivas, almeja-se descrever os pressupostos gerais que circundam o problema da desaposentação, para que sirvam como supedâneo para futuras discussões.

Desse modo, antes de adentrar na questão principal do tema, buscou-se traçar um exame analítico acerca do conceito de regras e de princípios, integrantes do gênero "norma jurídica", bem como descrever os mecanismos adotados para solucionar eventual colisão. Em seguida, foram descritos os principais argumentos utilizados nas decisões judiciais que negaram o pleito de desaposentação, julgaram procedente o pedido ou condicionaram o direito à devolução dos valores já recebidos pelo segurado a título de benefício previdenciário. Na oportunidade, com base na teoria da norma jurídica anteriormente exposta, foram realizadas ponderações críticas acerca do discurso jurídico empregado pelos Tribunais para dirimir a controvérsia. 


2 DESENVOLVIMENTO

De início, impende destacar que a metodologia utilizada no presente estudo foram as pesquisas bibliográfica e jurisprudencial, envolvendo, pois, a busca de livros, monografias, jornais e revistas, bem como decisões e acórdãos proferidos pelas principais cortes do país, na tentativa de compreender os fundamentos das decisões judiciais que enfrentaram o tema da desaposentação. 

2.1 Dos princípios e das regras: uma delimitação epistemológica

Conhecer a natureza de determinado instituto jurídico é tarefa imprescindível para que o intérprete possa estabelecer o respectivo enquadramento no arcabouço epistemológico da Ciência do Direito, traçando, por conseguinte, os limites relacionais com as demais vertentes do saber jurídico. Segundo Miguel Reale[2], uma das tarefas essenciais da epistemologia é classificar o objeto das ciências jurídicas, não só para determinar a natureza de cada uma delas, mas também para tornar claras as implicações no relacionamento entre as mesmas.

Paulo Bonavides[3] assinala que a juridicização dos princípios atravessou três fases distintas. A primeira etapa, segundo o autor, é a fase jusnaturalista, na qual os princípios compunham uma esfera abstrata, porém desprovida de qualquer coercibilidade, servindo apenas como parâmetro ético-valorativo das ideias que inspiram os ditames da justiça. Por outra parte, assevera que a etapa subsequente corresponde ao ingresso dos princípios na legislação ordinária, especialmente cível, como fonte normativa subsidiária, na tentativa de manter incólume o postulado da completude do ordenamento jurídico. Destarte, seguindo esta corrente de intelecção histórica proposta pelo autor, verifica-se que o estágio terceiro e contemporâneo coincide com a era do Pós-Positivismo, na qual os princípios adquiriram natureza constitucional, convertendo-se em verdadeiros pedestais axiológicos em que se assenta o ordenamento jurídico.

Antes de oferecer qualquer distinção conceitual, vale destacar que os princípios e as regras são espécies do gênero “norma jurídica”. Por conseguinte, ambos têm força normativa. As regras descrevem em sua estrutura lógica uma hipótese fática e uma consequência jurídica, nas quais incidirão o mecanismo da subsunção, ao passo que os princípios prescrevem diretrizes normativas abstratas, produzindo verdadeiros “mandados de otimização”[4] que, em última análise, como ressalta Luciano Martinez[5], visam à potencialização da própria justiça. Assim, a regra tem natureza descritiva, ao passo que o princípio possui a prescritibilidade axiológica como qualidade fundamental.

Assim, na acepção jurídica, os princípios são proposições normativas fundamentais, gerais ou setoriais que, revelando os valores basilares do sistema normativo, orientam na elaboração das leis e auxiliam na atividade de interpretação e integração[6] do Direito.

Os princípios não objetivam regular situações específicas, mas sim estender seu império normativo sobre todo o sistema jurídico. Em verdade, essa meta é alcançada na medida em que eles vão perdendo a densidade semântica e ascendendo, assim, a uma posição no ordenamento jurídico que lhes permite sobressair, pairando sobre uma área muito mais ampla do que a norma instituidora de regras, como leciona Celso Ribeiro Bastos[7]. Portanto, resta patente que aquilo que o princípio perde em carga normativa adquire, por outro lado, como força valorativa.

De outro modo, as regras seguem o parâmetro hermenêutico do “tudo ou nada”, segundo a dicção de Ronald Dworkin[8], como será analisado no tópico a seguir. Em verdade, toda regra traduz relatos objetivos, descritivos de determinadas condutas e aplicáveis a um conjunto delimitado de situações: ocorrendo a hipótese prevista em lei, a regra deverá incidir, em homenagem ao mecanismo clássico da subsunção.

Em face do exposto, verifica-se que as normas jurídicas, como um gênero no qual se inserem as regras e os princípios, existem para regular situações da vida humana, estabelecendo a normatização da realidade fática em que se inserem. Não obstante, os princípios possuem um grau de maior generalidade e abstração, com eficácia irradiante por todo o sistema normativo, orientando sua interpretação e aplicação, ao passo que as regras são específicas e concretas, prescrevendo uma conduta em determinadas circunstâncias.

2.2 Do conflito entre regras e da colisão entre princípios: mecanismos de solução

Em virtude da natureza descritiva de conduta das regras e do caráter valorativo e finalístico dos princípios, resta patente que eventual conflito entre regras ou entre princípios deverá ser resolvido por meio de uma técnica hermenêutica peculiar a cada caso. O conflito entre regras é solvido pelo critério hierárquico, cronológico ou da especialidade, ao passo que a colisão entre princípios é decidida basicamente pela técnica da ponderação de interesses, por meio da qual, no caso concreto, avalia-se a prevalência episódica de um princípio com relação a outro com ele cotejado.

Ressalte-se, ainda, que malgrado haja uma gama de renomados pensadores que intentam solucionar a problematicidade aqui apontada, Robert Alexy e, em certa medida, Ronald Dworkin, foram eleitos para fundamentar as principais discussões de índole filosófica deste estudo. 

2.2.1 Do conflito entre regras: invalidades e cláusulas de exceção

Há conflito entre duas regras jurídicas quando existe incompatibilidade lógica entre o que é fixado pela primeira e o que estabelece como padrão de conduta a segunda. Verifica-se, melhor dizendo, a presença de dois mandamentos normativos, tipificando igual conduta, com soluções jurídicas aparentemente antagônicas.

Segundo Robert Alexy, “um conflito entre regras somente pode ser solucionado se se introduz, em uma das regras, uma cláusula de exceção que elimine o conflito, ou se pelo menos uma das regras for declarada inválida”[9]. Em verdade, significa dizer que, nessa espécie de antinomia normativa, a nota característica reside no fato de não se admitir aplicação simultânea de duas regras com consequências jurídicas contraditórias entre si.

O conflito entre regras é resolvido no âmbito da validade, tendo em vista que, se uma regra vale e é aplicável ao caso concreto, por conseguinte, serão válidas também suas consequências jurídicas, pois se encontram inseridas no arcabouço normativo.

Desse modo, as antinomias entre regras podem ser solvidas, a princípio, mediante utilização de uma cláusula de exceção, fundada nos critérios cronológico, pelo qual a regra posterior derroga a regra anterior (Lex porterior derogat legi priori); hierárquico, através do qual a regra hierarquicamente superior afasta a inferior (Lex superior derogat legi inferiori) ou da especificidade, quando a regra dotada de especialidade prevalecerá sobre a instituidora de parâmetros ou diretrizes gerais (Lex specialis derogat legi generali).

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Como leciona Robert Alexy[10], se, no caso concreto, a aplicação de duas regras juridicamente válidas conduz a juízos concretos de "dever ser" reciprocamente contraditórios, restando impossível a resolução do conflito pela aplicação de uma cláusula de exceção, mesmo assim o sistema admite apenas a aplicação de uma das regras, devendo ser invalidada a outra, com a consequente expurgação do sistema normativo, como mecanismo de preservação da unidade do ordenamento jurídico.

Cumpre destacar, porque oportuno, que Ronald Dworkin segue uma linha de intelecção semelhante, no sentido de que as regras se aplicam à maneira do “tudo ou nada”. Por conseguinte, “dados os fatos que uma regra estipula, então, ou a regra é válida, e neste caso a resposta que ela fornece deve ser aceita, ou não é válida, e neste caso em nada contribui para a decisão[11]”.

De acordo com o pensamento dworkiniano, se duas regras entrarem em conflito, uma delas deve ser declarada inválida. A decisão de averiguar qual delas está em desconformidade com o ordenamento geralmente é tomada com base nos critérios da hierarquia, antiguidade ou especialidade normativa. Assevera o autor que o sistema jurídico pós-positivista deve também preferir a regra que é sustentada pelos princípios mais relevantes[12], adotando um critério que vai além das diretrizes instituídas pelo modelo positivista clássico, como será examinado no tópico a seguir.

2.2.2 Da colisão entre princípios: a ponderação de interesses

Questão amplamente discutida nos últimos anos, e que tem sido objeto de várias indagações por parte da doutrina especializada, é a colisão entre princípios constitucionais. Observe-se que, para dirimir tal litígio, devem ser considerados os bens e valores em conflito, oferecendo tratamento de prevalência esporádica a um deles, em casos especiais. Diferentemente do conflito entre regras, não existe pressuposição da superioridade normativa de um princípio em relação a outro com ele cotejado, mas apenas uma situação de destaque episódico em virtude das circunstâncias fáticas que autorizam o discrímen.

Dirley da Cunha Júnior[13] ratifica que todas as normas-princípios e normas-regras se encontram no mesmo plano normativo, não havendo razão para se falar em qualquer hierarquia normativa. Contudo, no que se refere à superioridade valorativa, assinala ser inquestionável a existência de uma hierarquia axiológica entre os princípios constitucionais. Em seguida, assevera: "Com efeito, há princípios com distintas cargas valorativas; uns sem densidade semântica, mas com intensa força valorativa; outros, com densidade normativa, mas com pouca carga valorativa. Os primeiros projetam-se sobre todo o sistema de normas, exigindo que sejam observados os valores que eles consagram. Os segundos atuam em domínios normativos específicos, fazendo efetivos e concretos exatamente aqueles valores".[14]

Antes de adentrar ao conteúdo da colisão entre princípios constitucionais, algumas observações doutrinárias merecem ser feitas: os princípios podem ser explícitos ou implícitos, respectivamente, quando, sem prejuízo de sua natureza, forem formulados de forma consignada na literalidade da norma jurídica ou permaneçam ocultos sob a materialidade dos elementos. Ademais, o fato de um princípio recôndito vir a se tornar explícito não faz com que se transmude automaticamente em uma regra[15].

Leciona Ronald Dworkin que “às vezes, regras ou princípios podem desempenhar papeis bastante semelhantes e a diferença entre eles reduz-se quase a uma questão de forma”[16]. Assim, em havendo conflito entre regras densificadoras de princípios, mostra-se viável a aplicação do mecanismo da ponderação de interesses, ao invés de proceder por meio dos critérios tradicionais de resolução das antinomias aparente entre regras, porque a regra, neste caso, é um mero veículo de materialização dos princípios constitucionais.

A ponderação de interesses consiste na técnica jurídica de solução de conflitos normativos que envolvam princípios, conflitos estes insolúveis pelas regras de hermenêutica tradicional. Como todo princípio tem igual hierarquia normativa, a técnica de ponderação consiste no estabelecimento da predominância relativa de um princípio em face de outro, sob determinadas circunstâncias fáticas, em razão da carga axiológica que trazem consigo, a partir de critérios e pressupostos delineados pelo sistema jurídico.

Em se tratando da solução teórica para a colisão de princípios jurídicos, dentre muitas, duas escolas se destacam: a corrente juspolítica liberal e não utilitarista norte-americana, encabeçada por Ronald Dworkin, e a doutrina dogmática pós-positivista germânica, liderada por Robert Alexy.

A grandeza da contribuição teórica formulada por Ronald Dworkin consistiu em promover a junção da teoria do direito com a filosofia, na tentativa de reaproximar o direito positivo do direito natural. Nesse contexto, é inaugurada uma etapa histórica na evolução do pensamento jurídico ocidental denominado “neopositivismo”. Em verdade, afirma-se que a teoria desenvolvida por Dworkin esteve à frente de seu tempo, considerando que, não obstante tenha origem no positivismo clássico e esteja inserida no pensamento liberal, proponha um postulado normativo baseado na comunhão entre direito e justiça[17].

Dworkin adverte que os princípios devem ser aplicados conforme seu valor, ao contrário do que ocorre com as regras, que obedecem ao paradigma do “tudo ou nada”, na hipótese de interferência mútua. O jusfilósofo assevera que, no que concerne à colisão entre princípios, a solução há de ser orientada no peso ou força de cada um deles que esteja em litígio. Em realidade, a opção do hermeneuta em aplicar um ou outro princípio em determinado caso concreto significa, unicamente, a superação episódica do princípio constitucional naquele evento específico. Diante de nova situação fática, o intérprete poderá adotar outro posicionamento com relação aos mesmos princípios, através de uma necessária adaptação do nível de importância que anteriormente lhes foi atribuída[18].

De outra parte, Robert Alexy afirma que o ponto decisivo para a distinção entre regras e princípios é que os princípios são “mandados de otimização”, ao passo que as regras têm o caráter de “mandados definitivos”[19]. Esta diferenciação, todavia, é meramente teórica, tendo em vista que “a distinção entre regras e princípios é, portanto, uma distinção entre espécies de normas”[20].

Nota-se que os princípios em colisão não se excluem em abstrato, mas apenas se mitigam no caso concreto. Nessa esteira de raciocínio, Robert Alexy cria a denominada Lei de Colisão, destinada a resolver eventual embate através da ponderação de precedências e pesos dos princípios conflitantes. Assim, propõe a utilização do critério da proporcionalidade, sendo que na ponderação dos princípios serão atravessadas necessariamente as fases de análise da adequação da medida, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito. A etapa de estudo da adequação avaliará as possibilidades fáticas que envolvem o litígio entre direitos fundamentais, verificando se há algum desvio de finalidade. Em seguida, o estágio da necessidade perquirirá se o meio escolhido era o único possível e existente para que fosse solucionado o problema, bem como se o caminho empregado foi mais benéfico à coletividade humana. Por fim, na fase da proporcionalidade em sentido estrito, analisar-se-á a relação custo-benefício entre a eleição de um princípio em detrimento de outro, bem como a dimensão da intervenção no direito fundamental relativizado.[21]

Quanto às etapas a serem percorridas na lei de colisão (proporcionalidade em sentido estrito, adequação e necessidade), assevera que a máxima da proporcionalidade em sentido estrito decorre do fato de os princípios serem mandamentos de otimização em face das possibilidades jurídicas, mas a análise da necessidade e adequação decorrem da natureza dos princípios como mandamentos de otimização, em face das possibilidades fáticas.[22]

2.2.3 Da colisão entre princípios e regras: o dogma da superioridade axiológica

Os princípios, sejam implícitos ou explícitos, são normas jurídicas dotadas de coercibilidade, diferenciando-se das regras na medida em que eles são normas dotadas de ampla carga valorativa, enquanto as regras jurídicas são normas descritivas de situações fáticas concretas, dispostas a materializar os valores veiculados pelos princípios. Antes de apontar os mecanismos de solução em caso de colisão entre princípios e regras, faz-se imprescindível entender a localização dos princípios no ordenamento jurídico.

De acordo com Celso Ribeiro Bastos, os princípios desempenham uma função transcendental no texto da Constituição, dando-lhe a feição de unidade, embora o autor acredite que os princípios não possam, per si, gerar direitos subjetivos[23].

Em seguida, ratificando o caráter normativo dos princípios, assevera o constitucionalista que os princípios são de maior nível de abstração que as regras, permeando todo o texto constitucional, emprestando-lhe significação única, além de traçar os vetores e rumos em função dos quais as demais normas devem ser interpretadas. Desse modo, os princípios seriam as vigas mestras do texto constitucional, que vão se concretizando não somente a partir de outras normas da Constituição, mas também por meio da legislação ordinária que desdobrará os mandamentos nucleares do sistema[24].

Também vale ser ressaltado que Celso Ribeiro Bastos classifica a norma principiológica em duas espécies fundamentais: princípios gerais do direito e princípios constitucionais. Os princípios gerais do direito seriam normas de incidência obrigatória em qualquer ramo do ordenamento jurídico, ao passo que os princípios constitucionais só seriam invocados conforme a área em que se esteja atuando. Portanto, segundo o autor, os princípios retromencionados se diferenciariam conforme a amplitude da incidência[25].

Divergindo da proposta classificatória bipartida de princípios, Paulo Bonavides assevera que, "em verdade, os princípios gerais, elevados à categoria de princípios constitucionais, desatam, por inteiro, o nó problemático da eficácia dos chamados princípios supralegais, terminologia que tende a cair em desuso, arcaísmo vocabular de teor ambíguo, enfim, locução desprovida já de sentido, salvo na linguagem jusnaturalista".[26]

Com a devida vênia ao pensamento de Celso Ribeiro Bastos, a linha de intelecção traçada por Paulo Bonavides merece guarida. Além de a expressão princípios gerais do direito se encontrar em desuso na doutrina mais abalizada e estar assentado o entendimento teórico de que os princípios, implícitos e explícitos, têm o texto constitucional como nascedouro, como é consabido, toda norma que defina direitos e garantias fundamentais, seja norma-regra ou norma-princípio, independentemente do diploma legal em que estiver inserida, é norma materialmente constitucional[27], não existindo razão, destarte, para raciocinar que tais princípios não teriam sede na Constituição da República.

Nesse sentido, Celso Antônio Bandeira de Mello, ao comparar o valor axiológico da norma-regra com o da norma-princípio, pontifica que “violar um princípio é muito mais grave que transgredir uma norma: a desatenção ao princípio implica ofensa não apenas a um específico mandamento obrigatório, mas a todo o sistema de comandos”[28].

Paulo Bonavides acrescenta: "A importância vital que os princípios assumem para os ordenamentos jurídicos se torna cada vez mais evidente, sobretudo se lhes examinarmos a função e a presença no corpo das constituições contemporâneas, onde aparecem como os pontos axiológicos de mais alto destaque e prestígio com que fundamentar na hermenêutica dos tribunais a legitimidade dos preceitos de ordem constitucional"[29].

Conclui-se, destarte que, considerando a natureza constitucional dos princípios e sua permeabilidade por todos os ramos do direito, resta indene de dúvidas que, na hipótese de colisão entre um princípio e uma regra, prevalecerá o princípio, devendo a regra ser declarada inconstitucional.

2.3 O problema da desaposentação na jurisprudência pátria

A desaposentação consiste na possibilidade de o segurado renunciar ao benefício de aposentadoria por tempo de contribuição que atualmente percebe, a fim de que possa lhe ser concedido outro benefício mais vantajoso, aproveitando as contribuições vertidas ao sistema previdenciário após o jubilamento, para satisfazer os requisitos da aposentadoria por tempo de contribuição com proventos integrais.

Em verdade, diz-se que não se afigura lídimo que o segurado aposentado seja obrigado a contribuir para a Previdência Social em nome do princípio da solidariedade sem, todavia, fazer jus a uma mínima contrapartida após a aposentadoria proporcional. Por outra parte, argumenta-se que o sistema previdenciário brasileiro não é estruturado sob o sistema de capitalização, por força do qual o segurado receberia exatamente o resultado de contribuições vertidas ao sistema em todo período contributivo, com as devidas atualizações legais.

No caso sub examine, observa-se o conflito entre princípios constitucionalmente consagrados, o que demanda um estudo para fins de sistematização dos entendimentos jurídicos suscitados, que permitirá construir um arcabouço argumentativo capaz de apontar os direcionamentos para solver esta querela jurisprudencial.

Cumpre frisar que, nas palavras de Carlos Alberto Pereira de Castro e João Batista Lazzari[30], a desaposentação consiste no “ato de desfazimento da aposentadoria por vontade do titular, para fins de aproveitamento do tempo de filiação em contagem para nova aposentadoria, no mesmo ou em outro regime previdenciário”. 

Apesar de não haver expressa previsão na Lei nº 8.213/1991 no tocante à desaposentação, o Decreto nº 3.048/1999, em seu art. 181-B, prevê a seguinte disposição: “as aposentadorias por idade, tempo de contribuição e especial concedidas pela previdência social, na forma deste Regulamento, são irreversíveis e irrenunciáveis”. Com efeito, a doutrina critica tal regramento, no sentido de que é perfeitamente possível que o segurado renuncie ao benefício que percebe, com o fito de obter outro mais vantajoso.

No ensinamento dos professores Eduardo Rocha Dias e Leandro Macedo[31], verifica-se claramente o que ora se demonstra, nestes termos: "o legislador regulamentar interpretou o silêncio legislativo como uma proibição. Não nos parece correta, entretanto, essa conclusão. É inegável que a aposentadoria tem caráter patrimonial, significando que o direito à concessão e manutenção de sua percepção depende da vontade do titular. Se esse segurado, nada obstante aposentado volta a trabalhar, e esse novo trabalho e respectivo tempo de contribuição lhe proporcionam uma nova aposentadoria mais vantajosa, não há como negar o direito à desaposentação. O silêncio legislativo deve ser interpretado favoravelmente ao segurado".

Antes da recente pacificação do tema pelo Supremo Tribunal Federal nos autos do Recurso Extraordinário nº 381367/RS, mencionado alhures, no âmbito dos Tribunais Pátrios se formaram basicamente três correntes para dirimir a controvérsia, as quais serão analiticamente examinadas a seguir.

2.3.1 Da vedação legal à desaposentação

A primeira corrente inadmite a desaposentação, em síntese, por ausência de previsão legal expressa. Ao revés, para essa posição, haveria vedação pelo § 2º do art. 18 da Lei nº 8.213/1991 e pelo art. 181-B do Regulamento da Previdência Social, sendo o silêncio legislativo interpretado como verdadeira proibição.

Assim, não seria admissível que o tempo de serviço que fundamentou a concessão original do benefício previdenciário, que agora se pretende renunciar, seja aproveitado para fins de nova aposentadoria. É que o tempo de serviço não pode ser utilizado em duplicidade, para obter aposentadoria por tempo de contribuição e, posteriormente, para obtenção de novo benefício, no mesmo regime, em virtude de situação mais favorável.

Com efeito, todo sistema previdenciário é estruturado com a criação de mecanismos que premiam os segurados que posterguem o pedido de aposentadoria.  Isso porque, se fosse possível a renúncia e a nova contagem do tempo anteriormente utilizado para a aposentadoria integral que se renunciou ruiria toda a lógica do sistema baseado no princípio da solidariedade. De acordo com a referida corrente, as contribuições posteriores à aposentadoria não necessariamente devem se reverter em prestações previdenciárias para o segurado, ainda mais porque, não fosse o princípio da solidariedade, também sob o prisma legal, não existe previsão de pagamento de benefícios em casos deste jaez para os que já se encontram aposentados.

De fato, nesse caso, os segurados não teriam nenhum incentivo para postergar o pedido de aposentadoria, pois o melhor a fazer seria requerer tão logo que possível a aposentadoria e, após, à medida do incremento do tempo de contribuição, renunciar várias vezes, em curtos intervalos de tempo, a fim de que os proventos fossem progressivamente aumentados, com o acréscimo do tempo de contribuição posterior à aposentadoria original.

A renúncia à aposentadoria previdenciária objetivando sua majoração, através da incorporação de novas contribuições vertidas após a concessão do benefício, encontraria óbice no ordenamento jurídico e afrontaria a garantia do ato jurídico perfeito, por ser prática expressamente vedada pelo art. 18, § 2º, da Lei 8.213/91: “O aposentado pelo Regime Geral de Previdência Social – RGPS que permanecer em atividade sujeita a este Regime, ou a ele retornar, não fará jus a prestação alguma da Previdência Social em decorrência do exercício dessa atividade, exceto ao salário-família e à reabilitação profissional, quando empregado”.

Assim, presente o princípio da solidariedade, não se poderia afirmar inconstitucionalidade na inexistência de contraprestação ao aposentado que retorna ao mercado de trabalho (com exceção do salário-família e da reabilitação). O princípio da solidariedade é, a propósito, a diretriz do sistema brasileiro, que segue a regra de repartição simples. Assim, não se cogitando da existência de um sistema de capitalização, não se poderia afirmar inconstitucionalidade pelo fato de o aposentado verter contribuições, mas não poder usufruir de nova aposentadoria com base nelas.

Registre-se que a Presidente da República vetou o trecho da Lei 13.183/2015 que tratava da desaposentação e dispensava a devolução dos valores recebidos, demonstrando que atualmente inexiste base legal para regular a questão[32].

Esta foi a teoria adotada pelo STF no julgamento do Recurso Extraordinário nº 381367/RS. Entendeu a Suprema Corte que não há previsão legal da desaposentação no direito brasileiro, embora seja uma matéria que possa ser livremente tratada pelo Congresso Nacional, por inexistir vedação na Carta da República.

2.3.2 Da admissibilidade condicionada à devolução dos valores recebidos

O segundo entendimento se posiciona no sentido de se admitir a desaposentação, reconhecendo os direitos previdenciários como disponíveis, entretanto, exigindo, para que o segurado fizesse direito à nova aposentadoria, a devolução dos proventos recebidos enquanto esteve aposentado.

Nesse sentido se manifestou o magistério jurisprudencial do Tribunal Regional Federal da 5ª Região[33]: "O pedido somente seria cabível se a demandante, ao requerer a desaposentação visando a (re)utilização do tempo de serviço nela já empregado, promovesse a devolução de todos os valores percebidos a título de proventos da aposentadoria por tempo de serviço, o que não é o caso dos autos".

Era a orientação, igualmente, da Turma Nacional de Uniformização (TNU)[34]: "é possível a desaposentação desde que haja a devolução dos proventos já recebidos".

De acordo com o entendimento das Cortes acima referidas, se o segurado pretende renunciar à aposentadoria proporcional para postular novo jubilamento, com a contagem do tempo de serviço em que esteve exercendo atividade vinculada ao RGPS e concomitantemente à percepção dos proventos de aposentadoria, deve ser demonstrada a restituição dos valores recebidos da autarquia previdenciária.

Argumenta-se que, acaso não fosse exigida a restituição dos valores recebidos a título de proventos, haveria nítida vantagem para os segurados que solicitam a aposentadoria proporcional e passam a receber a contraprestação do INSS, em relação aos que aguardam o cumprimento dos requisitos para o recebimento do benefício integral, vez que ambos vertem para a Previdência idênticas contribuições durante o período integral, mas apenas o primeiro já alcançou o recebimento de valores durante determinado período.

Seria imperioso, portanto, o prévio retorno ao "status quo ante", evitando-se, assim, a conferência de tratamentos jurídicos diversos a pessoas que encontram em situações idênticas.

Ademais, se os valores percebidos durante a aposentadoria não tiverem que ser devolvidos, todos os segurados passariam a requerê-la, como se fosse uma fase preparatória para posteriormente requerer a aposentadoria integral, o que não parece ter sido a intenção do legislador ao silenciar a respeito do tema, tendo em vista a legalidade estrita que rege a Administração Pública.

Além disso, a aposentadoria proporcional leva em consideração o tempo de contribuição, a idade do segurado e a expectativa de sobrevida na data da concessão. Assim, o benefício será diretamente proporcionalmente ao tempo de contribuição e à idade do segurado e inversamente proporcional à expectativa de sobrevida na data da aposentadoria. Em outras palavras, quanto maior for o tempo de contribuição e a idade na data do requerimento, maior será o valor do benefício e quanto maior for a expectativa de vida na data do requerimento, menor será o valor do benefício.

Nesse sentido, seria possível cogitar não apenas que os segurados pudessem renunciar à aposentadoria proporcional a fim de requer a integral como, em tese, poderiam renunciá-la mês após mês, até fazerem jus à integral, a fim de que o INSS recalculasse o valor do benefício. Afinal, o benefício aumentaria a cada novo requerimento mensal seja pelo aumento de tempo de contribuição, seja pelo aumento da idade do segurado, seja pela diminuição da expectativa de vida na data do novo requerimento.

Dessa forma, a devolução das quantias, além restabelecer o “status quo ante” e deixar de dar tratamento jurídico diverso a situações idênticas, desestimularia o segurado a requerer sucessivas renúncias da aposentadoria proporcional.

Diante de tal quadro, entende a segunda corrente que somente se poderia cogitar uma nova aposentadoria, com agregação de tempo posterior ao jubilamento, caso ocorresse a devolução dos valores recebidos, vez que todos os efeitos, neste caso, inclusive os pecuniários, estariam sendo desconstituídos. 

2.3.3 Da admissibilidade independentemente da devolução dos valores recebidos

O terceiro entendimento, agasalhado pelo STJ, admitia a desaposentação sem que o segurado tivesse que devolver os proventos recebidos enquanto esteve aposentado, por se tratar de direito patrimonial disponível.

De acordo com a referida corrente, o artigo 18, § 2º, da Lei 8.213/1991 realmente preceitua ser vedado ao aposentado do RGPS que voltar a contribuir para o sistema previdenciário o direito de postular qualquer outra prestação da Previdência Social que não seja o salário-família e a reabilitação profissional. Ocorre que tal dispositivo não se enquadra ao caso em análise, porquanto o ato administrativo pode ser revisto em existindo fato superveniente à sua concessão,  em que o segurado continuou contribuindo após a concessão do benefício de aposentadoria por tempo de contribuição. Assim, o citado artigo não obstaria a revisão, porquanto seu preceito reside tão-somente em vedar a concessão de outros benefícios previdenciários, tais como, auxílio-doença, auxílio-acidente, em relação à atividade laboral exercida pelo já aposentado.

Além disso, de acordo com o entendimento adotado pelo STJ, o ato de renúncia possui o caráter desconstitutivo, de forma que seus efeitos operam-se ex nunc, ou seja, não retroagem, sendo mantido o pagamento dos valores efetuados anteriormente. As consequências jurídicas do benefício renunciado são preservadas, de forma que o ato de concessão do benefício anterior restou legítimo.

O STJ inclusive decidiu em sede de recurso repetitivo (art. 543-C do CPC/1973)[35] que a renúncia ao benefício anterior, e o consequente aproveitamento do tempo para a concessão de outro benefício, não implicam a devolução dos valores pagos, nestes termos: "Os benefícios previdenciários são direitos patrimoniais disponíveis e, portanto, suscetíveis de desistência pelos seus titulares, prescindindo-se da devolução dos valores recebidos da aposentadoria a que o segurado deseja preterir para a concessão de novo e posterior jubilamento".

Desta feita, considerando que não se vislumbrou qualquer irregularidade na concessão do benefício anterior, entendeu o STJ que não haveria que se falar em devolução dos valores. Além disso, não se pode olvidar o caráter alimentar da aposentadoria percebida legalmente, o que lhe confere a característica da irrepetibilidade. 

Em verdade, a cessação do anterior liame, promovida com o ato de aposentação, implica a constituição de uma nova relação jurídica previdenciária detentora de um regramento específico, cujas limitações impostas se justificam em função da substancial e benéfica  modificação da situação fática do segurado.

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

NERY, Renildo Argôlo. O problema da desaposentação no direito brasileiro. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 22, n. 5238, 3 nov. 2017. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/61634. Acesso em: 23 nov. 2024.

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