Introdução
Sabe-se que a trajetória filosófica de Marx, em seu momento incipiente, fora diretamente influenciada pelo trabalho dos chamados “jovens hegelianos”, também conhecidos como “hegelianos de esquerda”, círculo de intelectuais alemães dos quais Marx fez parte.
A respeito dos hegelianos de esquerda, é possível destacar o filósofo Ludwig Feuerbach como uma das principais influências do jovem Marx àquele momento. Feuerbach irá desenvolver uma crítica à religião na qual discutirá o que ele entende por alienação.
A categoria da alienação de Feuerbach, circunscrita no âmbito da teologia, será deslocada para o campo da ciência política com a publicação da Crítica da Filosofia do Direito de Hegel, em 1843, tornando-se então uma categoria fundamental no pensamento de Marx.
A respeito desse deslocamento da categoria da alienação, Marx aponta um expediente lógico sobre tal na Crítica da filosofia do direito de Hegel – Introdução:
A crítica arrancou as flores imaginárias dos grilhões, não para que o homem suporte grilhões desprovidos de fantasias ou consolo, mas para que se desvencilhe deles e a flor viva desabroche. A crítica da religião desengana o homem a fim de que ele pense, aja, configure a sua realidade como um homem desenganado, que chegou à razão, a fim de que ele gire em torno de si mesmo. [...] Portanto, a tarefa da história, depois de desaparecido o além da verdade, é estabelecer a verdade do aquém. A tarefa da filosofia, que está a serviço da história, é, depois de desmascarada a forma sagrada da autoalienação humana, desmascarar a autoalienação nas suas formas não sagradas. A crítica do céu transforma-se, assim, na crítica da terra, a crítica da religião, na crítica do direito, a crítica da teologia, na crítica da política. (MARX, 2013, p. 152, grifo nosso)
Subsequentemente, a partir dos Manuscritos Econômico-filosóficos (1844), notadamente dos ensaios A Questão Judaica, O trabalho alienado e Crítica da dialética e da filosofia de Hegel, Marx abandonará alguns fundamentos da sua própria filosofia – como a “sociedade civil”- num processo que culminará no seu materialismo histórico (ainda não consolidado nestes textos), além de desenvolver suas reflexões sobre a alienação sob outros ângulos que não diretamente o político, com destaque para a categoria do trabalho alienado.
1. Feuerbach e a alienação religiosa
Feuerbach empreende duras críticas à religião cristã em sua obra, sobretudo com a publicação do A essência do cristianismo em 1841, no qual trabalha com algumas categorias que merecem um olhar mais detido, como “gênero humano”, “essência do gênero” e a própria “alienação”.
Segundo o filósofo, a religião se funda na distinção entre o ser humano e o animal. É cediço que o homem possui consciência de si mesmo enquanto indivíduo, i. e. enquanto unidade, por assim dizer. Nisso, ele não difere dos animais, também capazes de distinguirem-se do que lhes é externo através de expedientes oriundos da sensibilidade. A essa consciência individual dá-se o nome de instinto.
O que distingue o homem do animal é, na verdade, a consciência de si enquanto gênero (humano). É a faculdade de enxergar como objeto a sua própria essência, de contemplar a sua própria natureza como algo externo a si. É justamente por ser capaz de ter por objeto a sua própria essência de gênero que o homem consegue apreender como objeto a essência de outros seres ou coisas.
O homem é para si ao mesmo tempo EU e TU; ele pode se colocar no lugar do outro exatamente porque o seu gênero, a sua essência, não somente a sua individualidade, é para ele objeto (FEUERBACH, 1988, p. 44)
Se o homem detém a prerrogativa de objetivar a própria essência do seu gênero - a qual, frise-se, extrapola a sua individualidade-, ele tem consciência da própria infinitude dessa essência, que subsiste à finitude do indivíduo enquanto unidade do seu gênero.
O homem realiza-se na sua essência, infinita, mas que se divide em três “forças” distintas: a razão, a vontade (livre-arbítrio) e o amor (sentimento). Em outras palavras, o homem realiza-se e confirma a sua humanidade pensando, querendo e amando. Essas três forças essenciais do gênero humano são sentidas pelo indivíduo como perfeições (1988, p. 48).
Para o autor, o cerne da religião corresponde à “consciência que o homem tem da sua essência [...] infinita” (1988, p. 44). Mais precisamente, sustenta o autor que a religião expressa a força do sentimento (p. 50), que é o que empresta o caráter divino e sagrado à religião.
Em suma, o homem, capaz de enxergar seu próprio gênero como objeto, é surpreendido pela grandeza e nobreza da essência humana – i. e. do sentimento-, e nesta surpresa opera uma distorção: crê que essa essência sentimental é um ser que existe efetivamente fora de si, uma outra essência apartada do próprio ser humano: o seu Deus. Deus é, nesta visão, a essência humana objetivada que é, subsequentemente, tornada um sujeito. Neste diapasão, a infinitude, a perfeição e divindade atribuídas a Deus são, na verdade, os predicados ou qualidades do próprio amor humano, que o ser humano expurgou de si.
Uma vez que se decidiu que o que é o sujeito ou a essência está meramente nas qualidades do mesmo, i. e., que o predicado é o verdadeiro sujeito, está também provado que, se os predicados divinos são qualidades da essência humana, também o sujeito dos mesmos pertence à essência humana (p. 66)
Ao se tomar a essência humana por Deus, o homem estabelece uma oposição entre o divino e o humano, que nada mais é que uma ilusória distinção entre essência humana e indivíduo. A partir dessa cisão operada pela religião, o homem se relaciona com sua própria essência, como se fosse ela uma outra essência, um outro ser.
Nisto consiste a alienação religiosa proposta por Feuerbach: o homem, ao crer que suas qualidades genéricas (a perfeição e infinitude do sentimento) formam um outro sujeito fora dele, expurga a própria essência humana de si mesmo. Inversamente, ainda, o homem se coloca como reles objeto deste sujeito fictício que é Deus.
2. A Crítica da Filosofia do Direito de Hegel e a alienação política
Muito embora o conteúdo crítico de Marx esteja limitado pelo estado enquanto pressuposto nesta obra – o que a distancia dos escritos da maturidade do autor, de caráter revolucionário -, nota-se nela um radicalismo que a distingue do pensamento dos demais hegelianos de esquerda.
Se as críticas à Hegel por parte dos jovens hegelianos consistiam em inventariar as contradições da sua filosofia a partir de uma perspectiva exógena – ou mesmo em denunciar o comportamento individual do Hegel, aludindo à sua ambição política na Universidade de Berlim -, Marx assumirá a postura da crítica imanente, que consiste em interpretar o objeto da sua crítica em sua lógica endógena, encontrando as inconsistências da filosofia hegeliana em seus próprios termos.
Trata-se da fase da “democracia radical” de Marx, na qual o autor tecerá uma série de críticas à concepção de estado de Hegel, considerada por ele uma expressão da alienação do homem, como se verá a seguir. Pode-se entender o termo “democracia radical” como o horizonte político de Marx àquele momento, horizonte este limitado pela presença do estado como pressuposto, como o ambiente adequado para a realização da sua democracia: “[...] todas as formas de estado têm como sua verdade a democracia e, por isso, não são verdadeiras se não são a democracia” (MARX, 2013, p. 57).
A radicalidade da sua concepção de democracia reside, basicamente, na sua visão jusnaturalista do direito, que questiona a legitimidade do estado no momento em que a existência deste colide com os interesses dos indivíduos que o compõem. Ao sustentar a existência de direitos preexistentes ao próprio estado, Marx defende o primado do homem real (2013, p. 56) sobre essa abstração nomeada estado. “O homem não existe em razão da lei, mas a lei existe em razão do homem” (2013, p. 56).
Uma lei, diz Marx, não obstante respeitar todos os requisitos formais para a sua validade, mesmo assim, pode não ser considerada como lei se não for o reconhecimento positivo da lei natural que a antecede e da qual ela deve ser a expressão, ou seja, a lei do Estado, a lei positiva, deve ser o reconhecimento (legal) de uma liberdade que preexiste a ela. (NAVES, 2008, p. 30)
Marx enxerga no idealismo de Hegel a mesma inversão de sujeitos engendrada pela religião, considerando que ele subjetiva a própria Ideia ou Espírito e toma-a como o sujeito da sua filosofia, como se verá no ponto 1.2.1.
O mesmo se dá em suas reflexões sobre o estado. A essência do estado, identificado com a Ideia, é na verdade um predicado do próprio gênero humano que, tomada como objeto num primeiro momento, é confundida pelo homem com algo que lhe é externo. Nesta distorção, o Estado torna-se o próprio sujeito, e o homem, seu objeto (MARX, 2013, p. 50). Assim se dá a alienação política.
Em suma, Hegel parte da Ideia como fundamento, como sujeito com um fim em si mesmo. O estado, neste caso, é um desdobramento da própria Ideia, subordinando-se a ela. Por outro lado, Marx tem no homem real o sujeito da sua filosofia, de tal sorte que o estado deve-se manter subordinado aos indivíduos que o compõem.
Se o indivíduo, como Marx afirma, só deve obediência às leis do Estado na medida em que estas correspondam às leis naturais da razão humana, então, o direito de um Estado que não esteja organizado racionalmente aparece como um não-direito. E é justamente a partir desse critério jusnaturalista que Marx vai julgar a organização política e jurídica do Estado prussiano. (NAVES, p. 29)
2.1. Sobre a alienação observada por Marx no idealismo de Hegel
Em seu Princípios da filosofia do direito, Hegel aduz: “O que é racional é real e o que é real é racional” (apud MASCARO, 2010, p. 239). Esta frase ilustra o seu rompimento com a dupla perspectiva sobre os objetos proposta por Kant - segundo a qual o homem nunca é capaz de conhecer a realidade em si mesma -, bem como sua aproximação com a metafísica cartesiana. Para Hegel, logo, há uma identidade entre o que é real e o que é racional.
Neste diapasão, o método dialético de Hegel revela o ser real concreto, o conhecimento da própria coisa em si mesma, a qual, segundo Alexandre Kojève, “não é apenas ser-estático-dado (sein), espaço e natureza, mas também devir (werden), tempo e história” (apud MASCARO, 2010, p. 245). Destarte, a história do ser incorpora-se ao próprio ser, o que torna a sua identidade dinâmica, não estática.
Ocorre que, a despeito da afirmação da identidade entre a realidade e a razão, sua filosofia acompanha a tradição idealista alemã, de tal sorte que a sua dialética, “arrastando imediatamente, no processo histórico, ideia e realidade, é movida pela primeira” (2010, p. 246). Ou seja: em Hegel há uma primazia da Ideia sobre o homem concreto. É ela que produz o homem e, nesta esteira, a sociedade civil e a família – e não o inverso.
Assim, segundo Marx, “se a Ideia é subjetivada, os sujeitos reais, família e sociedade civil, ‘circunstâncias, arbítrio’ etc. convertem-se em momentos objetivos da Ideia, irreais e com outro significado” (MARX, 2013, p. 36). Ao se tomar a Ideia como sujeito, o homem se reduz a um mero receptáculo dela.
3. A questão judaica e a alienação social
Os Manuscritos econômico-filosóficos foram escritos em 1844, pouco tempo após a publicação da Crítica da filosofia do direito de Hegel. A despeito do curto lapso temporal que os separa, há uma diferença fundamental entre eles, que reside no papel que o estado assume em cada um.
Conforme mencionado, o Marx da Crítica vê no estado o ambiente propício para a realização de uma democracia efetiva, não alienada, na qual o homem real estaria acima de Deus (da religião) e da lei (do estado), no momento em que eles colidissem com os predicados da essência do gênero humano.
A partir dos ensaios dos Manuscritos, notadamente em A questão judaica, Marx afirma que a emancipação do estado em relação à religião – i. e. a superação da alienação política, ao retirar-se Deus do fundamento do estado, colocando o homem em seu lugar – não redunda, por si só, na emancipação da sociedade.
Neste sentido, o autor fornece como exemplo a situação dos Estados Unidos de sua época, estado ateu com uma sociedade profundamente religiosa. Por que, então, a superação da motivação religiosa do estado norte-americano não redundou na emancipação do homem real (MARX, 1993, p. 53)?
Para explicar esta questão, se faz necessário apresentar uma dicotomia que acompanha a ciência política moderna: a oposição entre a vida pública (representada pelo estado) e a vida privada dos indivíduos (isto é, a sociedade civil), ou, nos termos de Marx, o “dualismo entre a vida individual e a vida genérica, entre a vida da sociedade civil e a vida política” (1993, p. 52). Tal divisão esteve presente em Hegel, e é certo que Marx a subscreveu na sua Crítica.
N’ A questão judaica, entretanto, Marx considera que tal dicotomia preserva a alienação do homem real, já que ela permite o deslocamento da religiosidade do campo da vida pública para a vida privada.
O homem emancipa-se politicamente da religião, ao bani-la do direito público para o direito privado. A religião já não é o espírito do Estado, em que o homem se comporta, se bem que de maneira limitada e numa forma e esfera particular, como ser genérico, em comunidade com os outros homens. Tornou-se o espírito da sociedade civil, da esfera do egoísmo e do bellum omnium contra omnes. Já não constitui a essência da comunidade, mas a essência da diferenciação. Tornou-se no que era originalmente, expressão da separação do homem da sua comunidade, de si mesmo e dos outros homens. É agora apenas a confissão abstracta da loucura individual da fantasia privada, do capricho. A infinita fragmentação da religião na América do Norte, por exemplo, já externamente lhe confere a forma de assunto estritamente privado. Foi relegada para o número dos interesses privados e banida da vida da comunidade enquanto tal. Mas ninguém deve iludir-se quanto aos limites da emancipação política. A cisão do homem em pessoa pública e pessoa privada, o deslocamento da religião do estado para a sociedade civil, não é uma fase, mas a consumação da emancipação política. Desta maneira, a emancipação política não abole, nem sequer procura abolir, a religiosidade real do homem. (MARX, 1993, p. 47-48)
Se o homem encontrava-se separado do seu gênero no âmbito da sua vida pública (na presença do estado religioso), a alienação vai se deslocar para o terreno da sociedade civil tão logo o estado se livre da religião. Ou seja, é na seara privada que o homem passará a exprimir seu distanciamento em relação à humanidade. Consuma-se, assim, a alienação social.
No referido ensaio, Marx procura demonstrar como se dá a alienação no âmbito da sociedade civil, analisando aspectos do sistema jurídico do estado francês e dos estados norte-americanos. Conforme mencionado, o estado moderno pressupõe a separação entre a vida pública e a vida privada, isto é, ela implica na divisão do ser humano em ser genérico (público) e em indivíduo (privado).
Nos modelos analisados pelo autor, o direito – i. e. o sistema jurídico – opera dentro da lógica alienada do estado, ao separar o homem real em citoyen e em homme, de forma a estabelecer de um lado os droits de l’homme (os direitos civis, individuais) e, de outro, os droits du citoyen (os direitos políticos, da vida pública). Nessa divisão, conclui Marx que o homme nada mais é que a expressão do homem egoísta (1993, p. 56), separado da comunidade da qual faz parte.
Para chegar a tal conclusão, Marx faz uma exegese da Constituição da República Francesa de 1793, mais especificamente do art. 2º da sua Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão:
Le peuple français, convaincu que l'oubli et le mépris des droits naturels de l'homme, sont les seules causes des malheurs du monde, a résolu d'exposer dans une déclaration solennelle, ces droits sacrés et inaliénables, afin que tous les citoyens pouvant comparer sans cesse les actes du gouvernement avec le but de toute institution sociale, ne se laissent jamais opprimer, avilir par la tyrannie ; afin que le peuple ait toujours devant les yeux les bases de sa liberté et de son bonheur ; le magistrat la règle de ses devoirs ; le législateur l'objet de sa mission. - En conséquence, il proclame, en présence de l'Etre suprême, la déclaration suivante des droits de l'homme et du citoyen.
Article 1. - Le but de la société est le bonheur commun. - Le gouvernement est institué pour garantir à l'homme la jouissance de ses droits naturels et imprescriptibles.
Article 2. - Ces droits sont l'égalité, la liberté, la sûreté, la propriété. (disponível em <http://www.conseil-constitutionnel.fr/conseil-constitutionnel/francais/la-constitution/les-constitutions-de-la-france/constitution-du-24-juin-1793.5084.html>, grifo nosso)
Segundo o preâmbulo da constituição francesa de 1793, o desprezo aos direitos naturais do homem seria a causa de toda a miséria do mundo. Neste cenário, o estabelecimento de leis escritas garantiria ao homem a proteção desses direitos que lhe são inerentes. Em seu artigo 2º, o legislador francês estabeleceu quatro direitos “naturais e imprescritíveis”: 1) Igualdade; 2) Liberdade; 3) Segurança; e 4) Propriedade.
Em que pesem os comentários feitos por Marx sobre cada um destes direitos, o fundamental é compreender que sua visão política contraria, a partir deste momento, as justificativas que o estado coloca para si – como no preâmbulo da Carta francesa de 1793, p. ex. . Ou seja, em A questão judaica Marx abandona o estado como pressuposto do seu horizonte político.
Assim, nenhum dos supostos direitos do homem vai além do homem egoísta, do homem enquanto membro da sociedade civil; quer dizer, enquanto indivíduo separado da comunidade, confinado a si próprio, ao seu interesse privado e ao seu capricho pessoal. O homem está longe de ser considerado, nos direitos do homem, como um ser genérico; pelo contrário, a própria vida genérica – a sociedade – surge como sistema que é externo ao indivíduo, como limitação da sua independência original. O único laço que os une é a necessidade natural, a carência e o interesse privado, a preservação da sua propriedade e das suas pessoas egoístas. (1993, p. 58)
Ora, se Marx passa a criticar a lógica do estado, é certo que não o fará diferente com a sociedade civil, uma vez que ambas pertencem a um mesmo projeto alienado de sociedade. “Este homem, o membro da sociedade civil, é agora a base e o pressuposto do Estado político” (1993, p. 61). Considerando que a sociedade moderna implica necessariamente na sua divisão em estado e sociedade civil, pode-se afirmar que a sociedade civil não sofre de alienação: ela é, enquanto tal, alienada.
4. O trabalho alienado
Desde a publicação da Introdução referente à Crítica da Filosofia do Direito de Hegel, Marx aponta para a superação do estado e da sociedade civil como fundamentos da ciência política moderna, o que continua a propor nos Manuscritos econômico-filosóficos.
Destaque-se que, nos Manuscritos, Marx procura desenvolver uma teoria do processo histórico e social a partir de uma categoria da economia política: o trabalho. Neste diapasão, a sociedade não é mais pensada como sociedade civil, dados os limites já expostos deste conceito. Desde a Introdução, Marx pinça uma esfera muito específica da sociedade civil, que tem para o autor “um caráter universal mediante seus sofrimentos universais”, e que “não pode se emancipar sem se emancipar de todas as outras esferas da sociedade e, com isso, sem emancipar todas essas esferas” (MARX, 2013, p. 162). Trata-se da esfera do proletariado, o coração (p. 163) da emancipação humana.
No ensaio O trabalho alienado, Marx desenvolve uma crítica à economia política – à categoria do trabalho - a partir da perspectiva filosófica da alienação. O conceito de trabalho alienado implica em cinco determinações, a saber:
a. Alienação do produto do trabalho: O proletário, esbulhado dos frutos do seu trabalho, relaciona-se com o produto do seu labor como algo que não lhe pertence, ainda que tenha investido a sua própria vida nesse labor. Assim, quanto mais o trabalhador produz, mais ele se exaure em função de um objeto que lhe é estranho.
A alienação do trabalhador no seu produto significa não só que o trabalho se transforma em objecto, assume uma existência externa, mas que existe independentemente, fora dele e a ele estranho, e se torna um poder autónomo em oposição com ele; que a vida que se deu ao objecto se torna uma força hostil e antagónica. (MARX, 1993, p. 160)
b. Alienação da atividade de trabalho: A alienação do trabalhador não se manifesta apenas no produto do trabalho, mas no própria atividade laboral, considerando que se trata de uma atividade não voluntária, portanto forçada. Obviamente ela não é forçada nos mesmos moldes que as formas de trabalho da antiguidade (escravidão) ou do medievo (servidão), uma vez que pressupõe a liberdade do trabalhador de vender a sua força de trabalho a quem bem entender. No entanto, trata-se de uma liberdade meramente formal, que equaliza artificialmente duas figuras radicalmente desiguais: a do trabalhador – cujo esforço produz frutos que não lhe pertencem – e a do empregador – proprietário dos meios de produção, o qual se apropria dos frutos do trabalho de outrem. Na relação de trabalho assalariado, o próprio trabalho – e não apenas os seus frutos – não pertencem ao trabalhador, já que não se trata de uma atividade espontânea e sim passiva, orientada pelos interesses do empregador.
c. Alienação do ser genérico: Sabe-se que o homem se diferencia do animal por ser consciente de sua dimensão genérica, o que significa dizer que sua própria humanidade se constitui para ele como um objeto. O mesmo pode-se dizer sobre a sua atividade vital, o trabalho: enquanto o animal é determinado por sua atividade vital, o homem faz dessa atividade um objeto da sua consciência, atuando livre e conscientemente no mundo objetivo. Com o trabalho alienado, no entanto, o homem perde essa liberdade e passa a ter na sua atividade vital - outrora expressão da sua própria liberdade e humanidade-, um simples meio de sua existência física, de sua sobrevivência.
d. Alienação dos homens entre si: Esta quarta determinação assemelha-se à terceira, porquanto a alienação do homem em relação ao gênero humano é, também, a alienação do homem em relação aos outros integrantes (i.e. unidades) do seu gênero.
e. Alienação da natureza: É através da ação do homem sobre a natureza que o homem exerce e expressa a sua humanidade, o seu gênero. Ao manipular a natureza, o homem está criando a sua própria natureza e a sua própria realidade. Assim, se o homem expressa o seu gênero através das suas atividades e, ainda, se estas atividades não são livres, é possível afirmar que as sua própria natureza fora-lhe alienada.
5. Crítica da dialética e da filosofia de Hegel
Neste último grande texto envolvendo o problema da alienação, a categoria do trabalho alienado assumirá um papel decisivo na formulação do método de Marx, a partir das suas considerações sobre a dialética de Hegel.
Sabe-se que a filosofia de Hegel rompe com a perspectiva kantiana ao reclamar o mundo objetivo ao homem, ao vindicar ao homem a sua realidade objetiva. Nesta esteira, por exemplo, as instituições criadas pelo homem (como o Estado) revelam as próprias faculdades humanas – ou melhor, as faculdades do espírito humano (1993, p. 244). Imperioso reiterar que Hegel defende a identidade entre a razão (espírito, Ideia) e a realidade, com a ressalva de que a razão estaria numa posição de primazia na sua filosofia, conforme mencionado na seção 1.2.1. Ou seja, o homem da filosofia hegeliana não é o homem real, sensível (1993, p. 248), e sim uma abstração, seja essa abstração o espírito, a Ideia ou a autoconsciência.
[...] uma vez que o pensamento imagina ser, sem mediação, o outro aspecto de si mesmo, a realidade sensível, e considera também a sua acção como acção real, sensível, assim o acto de abolir no pensamento, que deixa o seu objeto persistir no mundo real, julga tê-lo realmente suplantado. (1993, p. 255)
Sobre a dialética hegeliana, pode-se afirmar que a categoria da negação da negação tem o escopo de revelar o verdadeiro ser, a sua própria identidade, a qual, como visto anteriormente, é móvel e portanto revela-se como um processo e não como algo inerte. Da mesma forma se dá a identidade do homem: como processo, no qual a História incorpora-se à sua identidade. Soma-se a isso o papel de autocriação do homem que o trabalho assume em Hegel – ainda que o trabalho, aqui, também seja considerado abstratamente, como manifestação do espírito humano.
Marx subscreve a visão de Hegel sobre o papel central do trabalho no processo de autoprodução da humanidade, o que transparece nos seus textos posteriores, nos quais desenvolve seu materialismo histórico. Ademais, Hegel incorpora a história da humanidade na sua dialética, o que redunda em pensar a identidade do homem como algo coletivo, genérico (1993, p. 257). Observe-se que Marx ainda não abandonou o ser genérico feuerbachiano neste momento – enxergando em Hegel, inclusive, “a emergência da consciência genérica” (1993, p. 257).
Entretanto, ao situar esse processo de gênese do ser humano no terreno abstrato da Ideia, Hegel não põe o homem real como sujeito da sua filosofia, e sim o Espírito Absoluto (1993, p. 257), como se esse espírito precedesse o próprio homem. Retomando o raciocínio feuerbachiano, se o que se observa é a subjetivação de algum predicado do gênero humano, consequentemente aquele sujeito anterior – o homem real – é arrastado para a condição de objeto.
A respeito da categoria do Espírito Absoluto – abstrata, autoconsciente e sobre-humana-, Marx afirma que ela corresponde ao “espírito do mundo alienado, pensante dentro dos limites da sua auto-alienação” (1993, p. 242). Ou seja, a dialética hegeliana opera no interior da alienação que ela também reproduz, malgrado fornecer os instrumentos necessários para a sua superação.
REFERÊNCIAS
FEUERBACH, Ludwig. A essência do cristianismo. Tradução José da Silva Brandão. Campinas: Papirus, 1988;
MARX, Karl. Crítica da filosofia do direito de Hegel. 3ª ed. Tradução Rubens Enderle e Leonardo de Deus. São Paulo: Boitempo, 2013;
________. Manuscritos económico-filosóficos. Tradução Artur Morão. Lisboa: Edições 70, 1993;
________. O Capital – livro I: O processo de produção do capital. Tradução Rubens Enderle. São Paulo: Boitempo, 2014;
MASCARO, Alysson Leandro. Filosofia do direito. São Paulo: Atlas, 2010;
NAVES, Márcio Bilharinho. Marx - Ciência e Revolução. 2ª ed. São Paulo: Quartier Latin, 2008.