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Teoria do Ordenamento Jurídico, de Norberto Bobbio.

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Agenda 02/11/2017 às 21:31

Capítulo IV – A completude do ordenamento jurídico

A ideia de que o ordenamento jurídico é completo surgiu num momento histórico muito específico, que foi aquele no qual os jovens Estados modernos buscavam legitimar seu monopólio da produção jurídica, o que já fora mencionado no Teoria da Norma Jurídica (BOBBIO, 2010, p. 23).

Assim, a ideia de completude tornou-se efetivamente um dogma para a corrente juspositivista, isto é, tornou-se um ponto de partida para o estudo do direito, posto que

Admitir que o ordenamento jurídico estatal não era completo significava introduzir um direito concorrente, romper com o monopólio da produção jurídica estatal. E é por isso que a afirmação do dogma da completude caminha pari passu com a monopolização do direito por parte do Estado. Para manter o próprio monopólio, o Estado deve servir a todos os usos. (p. 276)

Em resumo,

Nos tempos modernos o dogma da completude tornou-se parte integrante da concepção estatista do direito, ou seja, daquela concepção que faz da produção jurídica um monopólio do Estado. À medida que o Estado moderno crescia em potência, esgotavam-se todas as fontes do direito que não fossem a lei, ou seja, o comando do soberano. A onipotência do Estado canalizou-se para o direito de origem estatal, e não foi reconhecido outro direito a não ser aquele que era emanação direta ou indireta do soberano. [...] Uma expressão macroscópica desse desejo de completude foram as grandes codificações; e, observe-se, é justamente no interior de uma dessas grandes codificações que foi pronunciado o veredicto de que o juiz deve julgar permanecendo sempre dentro do sistema já dado. A miragem da codificação é a completude: uma regra para cada caso. (p. 276)

Uma das expressões desse positivismo jurídico pró-codificação foi aquela da Escola da Exegese, que surgiu na França e foi também para a Itália e Alemanha. Bobbio ressalta mais uma vez que “a escola da exegese e a codificação são fenômenos estreitamente vinculados e inseparáveis um do outro” (p. 277).

Crítica à completude

Em direção oposta à da Escola da Exegese, o jurista alemão Eugen Erlich vai criticar o monopólio estatista da produção jurídica e essa falsa crença da completude dos ordenamentos, o que é eventualmente é chamado pejorativamente de fetichismo legislativo. A corrente de Erlich e correlatos é chamada de escola do direito livre.

A escola do direito livre possuía algumas características:

Com a reação da escola do direito livre a esse juspositivismo hermético “o dogma da completude caía, como inútil e perigosa resistência à adequação do direito às exigências sociais” (p. 282). Assim, “passou a ocupar o seu lugar a convicção de que o direito legislativo era lacunoso, e que as lacunas podiam ser preenchidas não mediante o próprio direito estabelecido” (p. 282).

O espaço jurídico vazio (final do séc XIX)

O conceito de espaços jurídicos vazios foi uma espécie de “contrarreforma” do positivismo jurídico após o “golpe” que sofreu o dogma da completude do sistema, o qual, como visto acima, foi abalado irreversivelmente pelas críticas da escola do direito livre.

Considero este conceito uma “contrarreforma” na medida em que ele tenta reformular a tese da completude sob bases ligeiramente diferentes, uma vez que a tese original fora superada.

O primeiro esforço nesse sentido se deu com o jurista alemão Karl Bergbohn em 1892. Nos termos propostos por Bobbio, resumidamente, o que Bergbohm afirma é o seguinte:

Um caso ou é regulado pelo direito, e então é um caso jurídico ou juridicamente relevante, ou não é regulado pelo direito, e então pertence àquela esfera de livre manifestação da atividade humana, que é a esfera do juridicamente irrelevante. Não existe espaço para as lacunas do direito. [...] Um espaço intermediário entre aquele juridicamente cheio e aquele juridicamente vazio [...] não existe. Ou existe o ordenamento jurídico, e então não se pode falar de lacuna; ou existe a chamada lacuna, e então não existe mais o ordenamento jurídico, e a lacuna deixa de ser lacuna, pois não representa uma deficiência do ordenamento, mas seu limite natural. (p. 284)

Obs:

  1. Espaço jurídico cheio = é, para Bergbohm, o âmbito da atividade humana que é regulado por normas jurídicas (também chamada de esfera do juridicamente relevante).

  2. Espaço jurídico vazio = a parte da vida humana não regulada pelo direito, sendo indiferente a ele e, portanto, PERMITIDA. Ou seja, é a esfera do que é juridicamente irrelevante.

Crítica à teoria de Bergbohm: Esses conceitos de espaço jurídico cheio e vazio são bem problemáticos quando se pense na estrutura lógica das normas e do ordenamento jurídico. “Note bem que a esfera do permitido (em uma pessoa) está sempre ligada a uma esfera do obrigatório (em outra pessoa ou em todas as outras pessoas): isso significa que a esfera do permitido jurídico pode ser considerada do ponto de vista da obrigação (ou seja, da obrigação alheia de não impedir o exercício da ação lícita); e que o direito nunca permite sem, ao mesmo tempo, comandar ou proibir” (BOBBIO, 2010, p. 285). Ou seja, trata-se de um par de conceitos muito mal formulado, que parece tentar escapar da crítica ao dogma da completude de maneira apressada e pouco embasada.

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A norma geral exclusiva (início do séc XX)

Trata-se de mais uma teoria juspositivista que se desenvolveu em resposta à escola do direito livre, no afã de dar uma resposta mais satisfatória ao problema da completude/incompletude dos sistema jurídicos. Esta teoria foi inicialmente sustentada pelo alemão Ernst Zitelman em 1903, sendo seguido na Itália por Donato Donati em 1910.

Ao contrário da primeira teoria juspositivista, que dividia a atividade humana em dois campos distintos – um espaço regulado por normas (espaço jurídico cheio) e outro não regulado (espaço vazio) -, a teoria da norma geral exclusiva irá afirmar exatamente o inverso: não há espaço juridicamente vazio, o direito nunca está ausente da atividade humana, razão pela qual não há como se falar em lacunas.

Antes de apresentar o arcabouço teórico da norma geral exclusiva, é melhor partir do exemplo fornecido por Bobbio: “Uma norma que proíbe fumar exclui a proibição, ou seja, permite todos os outros comportamentos, exceto fumar” (2010, p. 287).

Destarte, as normas não existem sozinhas, mas aos pares: toda norma particular é acompanhada da norma geral exclusiva. Neste sentido, “nunca pode existir, para além das normas particulares, um espaço jurídico vazio, mas, para além dessas normas, pode existir toda uma esfera de ações reguladas por normas gerais exclusivas” (p. 287).

Segundo Zitelman:

Na base de toda norma particular, que sanciona uma ação com uma pena ou com a obrigação ao ressarcimento dos danos, ou atribuindo qualquer outra consequência jurídica, está sempre como que subentendida e não expressa uma norma fundamental geral e negativa, segunda a qual, prescindindo desses casos particulares, todas as outras ações permanecem isentas de pena ou de ressarcimento: toda norma positiva, com que se atribua uma pena ou um ressarcimento, é nesse sentido uma exceção daquela norma geral e negativa. Disso resulta que: caso falte uma semelhante exceção positiva não existe lacuna, porque o juiz pode a qualquer tempo, aplicando aquela norma geral e negativa, reconhecer que o efeito jurídico em questão não sobreveio, ou que não surgiu o direito à pena ou à obrigação ao ressarcimento. (apud BOBBIO, 2010, p. 288)

Segundo Donati:

Dado o conjunto dos dispositivos, que, ao prever determinados casos, estabelecem para eles a existência de determinadas obrigações, do conjunto dos mesmos dispositivos deriva, simultaneamente, uma série de normas particulares destinadas a estabelecer, para os casos por elas particularmente considerados, determinadas limitações, e uma norma geral destinada a excluir qualquer limitação para todos os outros casos, não particularmente considerados. Por força dessa norma, todo caso possível encontra no ordenamento jurídico o seu regulamento. Dado um determinado caso, ou existe na legislação um dispositivo que se aplique particularmente a ele, e desse dispositivo derivará para o mesmo caso uma norma particular; ou não existe, e então irá incidir na norma geral mencionada. (apud BOBBIO, 2010, p. 288).

Crítica de Bobbio à teoria da norma geral exclusiva: Para a teoria de Zitelman e Donati manter a aparência de completude, eles se valem de dois expedientes problemáticos: 1) ignoram a existência da norma geral inclusiva, que constitui uma alternativa à aplicação da norma geral exclusiva para resolver controvérsias desse tipo; 2) partem de um conceito estreito de lacuna, segundo o qual ela é apenas a ausência de uma norma;

Para explicar melhor esses dois expedientes problemáticos, e também para organizar melhor a crítica feita por Bobbio, é melhor partir do ponto 2.

As lacunas ideológicas

Esta teoria foi proposta por Brunetti. Segundo este jurista, existem algumas situações em que se discute sobre a completude:

  1. Considerando o ordenamento em si mesmo, sem compará-lo a nada: neste caso a pergunta sobre completude não faz sentido. Perguntar se um ordenamento jurídico é ontologicamente completo tem a mesma estrutura lógica de perguntar se o céu é completo, se o ouro é completo, se o azul é completo.

  2. Considerando o ordenamento a) em relação a um tipo ideal de ordenamento ou b) em relação ao conteúdo que ele pretende representar (p. ex. a vontade do Estado ou do povo): Aí temos como falar em completude ou incompletude. Note-se, portanto, que, para Brunetti, as lacunas só podem ser ideológicas, ou seja, só podem referir-se a um certo ideal ainda não alcançado, e não a uma completude ontológica que não tem sentido lógico algum, como demonstrado no “1”.

Vários tipos de lacunas

Nesta seção Bobbio apresenta mais 3 classificações de lacunas. São elas:

Heterointegração e autointegração

HETEROINTEGRAÇÃO = método de solução de lacunas que consiste basicamente em:

Assim, a heterointegração nos oferece 3 métodos distintos:

AUTOINTEGRAÇÃO = solução de lacunas buscada no interior daquele mesmo ordenamento lacunoso, mediante

ANALOGIA:

Conceito: Procedimento pelo qual se atribui a um caso não regulado por lei a mesma disciplina de um caso regulado de maneira semelhante.

A partir daí, é necessário entender a sua estrutura lógica e como se dá o problema da semelhança.

O raciocínio por analogia remonta a Aristóteles, sob o nome de paradigma. A fórmula do raciocínio por analogia pode ser expressa esquematicamente.

Esquema:

S é P

Z é semelhante a S

Z é P

Exemplos:

1)

Os homens são mortais;

Os cavalos são semelhantes aos homens;

Os cavalos são mortais;

2)

A guerra dos focenses contra os tebanos é ruim;

A guerra dos atenienses contra os tebanos é semelhante à dos f contra os t;

A guerra dos atenienses contra os tebanos é ruim.

Note-se que esta estrutura discursiva apresenta-se aparentemente como um silogismo simples, com apenas 3 termos, como o célebre “os homens são mortais; Sócrates é homem; logo Sócrates é mortal”.

No entanto, em ambos os casos há 4 termos em jogo, sendo que na 2ª premissa (ou premissa menor) há uma relação de semelhança ao invés de uma relação de identidade.

Sobre o exemplo 1, pode-se dizer que a conclusão extraída das suas premissas só é Verdadeira se os cavalos são semelhantes aos homens numa qualidade/predicado que seja a razão suficiente pela qual os homens são mortais. Portanto, a semelhança não deve ser uma semelhança qualquer, e sim uma SEMELHANÇA RELEVANTE (2010, p. 304).

Classificação das analogias:

Obs: Para diferenciar o ‘x’ do ‘z’, é necessário recorrer aos exemplos do livro (p. 307). Ex1: o art. 1577 do CC italiano trata das obrigações do locador em relação às reparações da coisa locada. A partir daí, pergunta-se se este artigo pode ser aplicado ao comodatário. Se a resposta for afirmativa, trata-se do ‘x’, porque com essa analogia cria-se uma regra que não existia para o comodatário (só para o locador).

Ex2: o art. 1754 do CC italiano define como mediador “aquele que põe em contato duas ou mais partes para a conclusão de um negócio”. Aí, pode-se perguntar se esse conceito estende-se a quem “induza à conclusão do negócio depois que as partes tenham iniciado os contatos sozinhas ou por meio de outro mediador”. Se a resposta for afirmativa, estaremos diante de ‘z’, já que o conceito de “mediador” foi apenas estendido/ampliado (e não aplicado para algo distinto, ao contrário do exemplo 1, no qual não é possível dizer que o conceito de locação foi estendido ao comodato, mas apenas que as disposições sobre locação foram usadas para criar uma nova norma específica para aquele determinado caso).

PRINCÍPIOS GERAIS DO DIREITO:

Curioso que, para Del Vecchio, este termo “princípios gerais do direito” deveria ser interpretado como “princípios gerais de direito natural”, o que o colocaria junto com os métodos de heterointegração (BOBBIO, 2010. p. 300). No entanto, trata-se deles aqui como princípios do direito positivo, razão pela qual estão aqui categorizados como autointegração.

Sobre esses princípios gerais, ressalte-se primeiro que o termo princípios não é utilizado em sua acepção estrita (de viés axiológico). Não há divisão aqui entre norma positiva e princípios: na verdade, esses princípios gerais nada mais são do que normas generalíssimas do sistema. Alguns doutrinadores consideram que só podem ser consideradas como princípios gerais as normas gerais que estão expressas, como Bobbio; outros, como Crisafulli, acreditam haver princípios gerais expressos e outros não expressos – estes últimos deduzíveis de normas específicas (ou menos gerais).


Capítulo V – Os ordenamentos jurídicos em relação entre si

Aceita a teoria pluralista institucional, segundo a qual existem não apenas inúmeros ordenamentos estatais, mas também ordenamentos não estatais – posto que onde há instituição humana, i. e. onde há um grupo social organizado, há direito-, podemos tratar de algumas classificações pertinentes e também de alguns problemas relativos à dinâmica entre esses ordenamentos.

1ª classificação:

Relações de subordinação x relações de coordenação (entre ordenamentos)

Como os termos sugerem, esta classificação tem uma dimensão hierárquica, e pressupõe um ordenamento superior (como uma CF) em relação a ordenamentos parciais (associações, partidos etc, que possuem estatuto próprio, mas cuja validade deriva do Estado).

2ª classificação:

a. Relações de exclusão total;

b. Relações de inclusão total;

c. Exclusão/inclusão parcial;

3ª classificação:

a. Indiferença: (ex: o estado não obriga a pagar dívidas de jogo)

b. Recusa: Aqui o estado não apenas é indiferente a outro ordenamento, como se porta de maneira diametralmente contrária. Assim, o que o ordenamento ‘a’ proíbe, o ord. ‘b’ obriga.

c. Absorção:

c.1. Recepção: um ordenamento (geralmente o estatal) absorve normas de outro ordenamento (geralmente o costume), transformando-o em direito positivo (exemplo: os códigos comerciais surgiram do costume dos comerciantes e navegadores, conforme Bobbio explica na p. 322);

c.2. Reenvio: um ordenamento (estatal) concede validade a outro ordenamento (costume) naquele âmbito particular dele, isto é, o estado renuncia a regular uma dada matéria e acolhe, naquele âmbito, a regulamentação estabelecida por outro ordenamento (ex: o estado brasileiro reconhecer o costume de alguns povos indígenas no âmbito próprio deles)

Ainda podemos classificas as relações entre os ordenamentos sob três ângulos distintos e complementares entre si:

1. Temporal – p. 325. Ex: A CF/88, a CF/67 e a CF/69 se deram no mesmo âmbito espacial e material, mas em tempos distintos.

2. Espacial = territorial (p. 329). Ex: O ordenamento brasileiro fica circunscrito no território brasileiro, embora coincida temporalmente e materialmente com outras constituições vigentes.

3. Material: (p. ex o ordenamento estatal é materialmente distinto do ordenamento da Igreja Católica, embora ambos possam existir num mesmo tempo histórico e num mesmo território).

Essa última classificação pode ser combinada com as anteriores no afã de se compreender a relação entre os ordenamentos. Por exemplo, sabendo que o ordenamento estatal e o religioso podem se sobrepor num mesmo território e no mesmo tempo histórico, é possível imaginarmos que entre eles deve haver alguma forma de subordinação/coordenação entre eles (ou então de indiferença/recusa/absorção etc).

Sobre o autor
Ricardo Gonçalves e Sousa

Bacharel em Direito pela Universidade Presbiteriana Mackenzie e advogado

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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