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Política Nacional de Inteligência e o fim do superagente

Agenda 19/02/2018 às 13:00

A PNI, ao focar em um sistema integrado de inteligência e elencar ameaças prioritárias, confere objetividade à atividade e "aposenta" o superagente, surpreendentemente apto a avaliar multiplicidade de conjunturas e dominar diferentes áreas do conhecimento.

O decreto 8.793, de junho de 2016, que fixa a Política Nacional de Inteligência (PNI), definiu os parâmetros de atuação da Atividade de Inteligência (AI). Afirmando que a atividade é exclusiva de Estado, com vistas a assessoramento oportuno, permanente, abrangente e confiável, desenvolvida por meio de doutrina comum, valores profissionais e observância ao ordenamento jurídico brasileiro e à ética, listou as principais ameaças à integridade da sociedade e do Estado e à segurança nacional.

As onze situações elencadas são espionagem, sabotagem, interferência externa, ações contrárias à soberania nacional, terrorismo, atividades ilegais envolvendo bens de uso dual e tecnologias sensíveis, armas de destruição em massa, criminalidade organizada, corrupção, ações contrárias ao Estado Democrático de Direito e ataques cibernéticos (os últimos são tanto meios de exploração das já conhecidas ameaças quanto, por sua extensão, especificidade e novidade, uma nova ameaça em si).[1]

Assim, a PNI representa um marco ao guiar as Atividades de Inteligência. Sem a definição legal, havia margem para que a identificação de temas de interesse tropeçasse em mitos e preconceitos como o que um país com tradição pacífica, como o Brasil, sem registro recente de conflitos internacionais ou grandes vulnerabilidades naturais, estaria menos suscetível a eventos danosos. Além disso, perceber ameaças é algo delicado: mais do que momento singular de análise, é sim um processo dinâmico e o que, no passado, não deteve valor estratégico pode ser, no presente e no futuro, ativo altamente relevante; forças um dia consideradas aptas a responder ameaças podem revelar-se antiquadas e ineficientes.

As novidades trazidas pela PNI coadunam tendências de adequação da Inteligência à conjuntura contemporânea. Para Beau (2000), a ampliação do conceito de ameaças abrangendo o campo econômico, por exemplo, é uma nova percepção que se impõe nas ações de Inteligência (mais distante da imagem estereotipada do agente secreto), buscando conformá-la à atual fase de relações econômicas do mundo moderno.

Ao enfrentar ameaças e riscos, a AI, seja na vertente de segurança orgânica (de prevenção) ou de segurança ativa (de resposta), ocupa-se de uma gama bastante variada de procedimentos, desde físicos, passando por comunicações e pessoal. Um bem pode ser suficientemente protegido pelo uso de portões, com catracas, acesso monitorado, chaves e senhas. Um saber pode ser resguardado pela sensibilização de seu detentor. Um documento pode ser classificado, criptografado, regrado em seus trâmites. Contudo, valores imaterais, como estabilidade política e prestígio internacional, demandam outro tipo de atuação. Frequentemente, o que ocorre é a combinação de diversos meios de proteção e a AI deve avaliar a pertinência e o grau dessa rede de segurança.

A PNI ressaltou que já não é possível distinguir entre os aspectos internos e externos da origem das ameaças, sendo necessário analisar e avaliar ambos os ambientes, nacional e internacional. Essa abordagem renova o olhar da AI: intuitivamente, costumamos relacionar o trabalho de Contrainteligência (a vertente que almeja a salvaguarda e a segurança da sociedade e do Estado, art. 1º § 2o da Lei 9.883, de 1999) com preocupação com o estrangeiro, afinal, a Inteligência adversa é associada à Inteligência estrangeira – a ideia de um inimigo externo, diferente de nós, costuma ser atraente e proporcionar um sentido de unidade, identidade nacional. Mas qual seria o interesse da AI em estrangeiros?

Cabe lembrar que o controle de entrada e saída de estrangeiros em portos, aeroportos e fronteiras, além da fiscalização da permanência desses no país, é atribuição policial. À AI caberia, exemplificativamente, acompanhar estrangeiros suspeitos de atuar em benefício de outros órgãos de Inteligência, os que têm vínculos com organizações estrangeiras e agem em detrimento do Brasil, as organizações não estatais e instituições estrangeiras interessadas em remeter pesquisas, tecnologias, informações sensíveis e/ou patrimônio genético brasileiro ao exterior.

Atualizando a visão do estrangeiro, ao elencar as principais ameaças a que a Inteligência deve se ater, a PNI não confere importância à nacionalidade do agente da ação contrária ao Estado brasileiro, não distingue nacionais e estrangeiros.

De todo modo, ter clareza sobre a quem interessa um bem ou conhecimento sensível requer a compreensão de conjunturas locais ou internacionais, identificação de circuitos de poder e alianças, projeção de tendências. Kramer e Heuer Jr (2007) alertam para a dificuldade em se perscrutar ameaças não só porque elas são, em geral, secretas, mas porque há crescente espionagem interna, realizada pelos próprios nacionais ou com o auxílio desses. Como exemplos de fatores hábeis a aumentar a vulnerabilidade, citam a expansão da internet e das tecnologias de informação, dos mercados, de turismo internacional, de intercâmbios mediante a globalização de pesquisa científica, entre outros.

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No contexto nacional, a PNI também reforçou a importância de fortalecer o Sistema Brasileiro de Inteligência (SISBIN) ao estabelecer como diretrizes, entre outros, o compartilhamento de dados e conhecimentos e o incremento da confiabilidade dos produtos do sistema. O alerta é para que os órgãos de Inteligência evitem a atuação concorrente e possam valer-se da disponibilidade sistêmica de conhecimentos.


O fim do “superagente”

Desde o momento da atribuição de valor a bens ou conhecimentos até a identificação de potenciais ameaças requeria-se da AI um trabalho grandioso: do profissional de Inteligência esperava-se que tivesse ampla compreensão do que fossem os “interesses do Estado e da sociedade” e, além disso, captasse os interesses adversos. Assim, colocado

... à disposição dos governantes dos países para que eles se informem antes de tomar decisões, na crença de que esta figura onipresente, onisciente, quase divina, seja capaz de conhecer com profundidade os assuntos que envolvem os interesses nacionais (RORATTO, 2012, p.37).

É importante ainda que o fizesse sem se deixar influenciar – ou observando ao máximo os limites dessa influência – por preferências ou preconceitos, vida pregressa, história acadêmica; afinal, a área de conhecimento que ao acaso domine, as instituições de pesquisa que tenha frequentado, um país ou continente com o qual tenha mais contato podem viciar análises.

A expectativa era de um profissional de tal modo especializado, mas também com conhecimento geral abrangente, agindo nas balizas do Estado Democrático de Direito. Que formação deveria ter tido? Qual rotina de trabalho deveria implementar? Que modelo organizacional deveria abrigá-lo? Refletir sobre essas questões é ter em conta que, se a AI for vulnerável, as demais vulnerabilidades magnificam-se – e, via inversa, uma atividade forte torna o próprio Estado forte.

No Brasil, uma dificuldade adicional é que “a ideia equivocada e negativa que muitos cidadãos brasileiros e, até mesmo, entidades públicas e privadas fazem da atividade de Inteligência pode representar vulnerabilidade grave à segurança do Brasil” (REBELLO, 2006, p.37).

A PNI, como já dito, diminuiu tais dificuldades ao deixar claras as ameaças prioritárias e as diferentes Inteligências que compõem o Sistema, liberando a cada uma delas para empenhar-se naquilo que é área própria, sem retrabalho e concorrência.

Atualmente, o SISBIN é um instrumento da PNI, composto por 38 órgãos (ABIN, 2017) que devem, no âmbito de suas competências, produzir conhecimentos, em atendimento às prescrições dos planos e programas de Inteligência[2]; planejar e executar ações relativas a obtenção e integração de dados e informações; intercambiar informações necessárias à produção de conhecimentos relacionados com as atividades de Inteligência e Contrainteligência; fornecer ao órgão central do sistema (ABIN), para fins de integração, informações e conhecimentos específicos relacionados com a defesa das instituições e dos interesses nacionais; e estabelecer os respectivos mecanismos e procedimentos particulares necessários às comunicações e ao intercâmbio de informações e conhecimentos no âmbito do Sistema, observando medidas e procedimentos de segurança e sigilo, sob coordenação da ABIN, com base na legislação pertinente em vigor (BRASIL, 2002).


Considerações finais

A PNI representa um divisor de águas para a AI. Sua orientação auxilia no reconhecimento mais nítido do que se deve proteger e dos meios de fazê-lo, tão variados quanto as ameaças: não se empreenderão desnecessários esforços com aquilo que, mesmo muito assediado, está suficientemente protegido e não se negligenciará o que, parecendo menos estratégico, está todavia facilmente suscetível a acessos indevidos, por exemplo.

A PNI não deixa dúvidas de que é endereçada aos órgãos que integram o SISBIN, quando diz que as principais ameaças listadas têm por objetivo balizar as “atividades dos diversos órgãos que integram o Sistema Brasileiro de Inteligência” (BRASIL, 2016). Caberia, dessa forma, aos integrantes do SISBIN nortear suas atividades no âmbito das orientações da PNI, não sendo necessário um “superagente” de Inteligência com conhecimento amplo e profundo sobre todas as áreas que põem em perigo a integridade da sociedade e do Estado e a segurança nacional.

A discriminação das ameaças em um diploma legal suscita também um trabalho mais objetivo, com maior controle das ações, além de planejamentos mais simples, focados e imparciais.

Apesar dessas contribuições para a AI, persistem lacunas e dificuldades: o “superagente” foi aposentado pela PNI, que entendeu suas limitações e a necessidade de um trabalho articulado com outros órgãos, mas o profissional de Inteligência que ficou em seu lugar, do órgão central ou do sistema integrado, ainda espera a regularização de seus direitos, deveres e prerrogativas (p.ex.: preservação de sua identidade, sigilo da atividade profissional, diferenciação regulada entre os que atuam em análise e os que se dedicam ao campo operacional...), na expectativa de lei ou emenda constitucional a enfrentar a questão, não abordada pela PNI.

Ademais, se a PNI deixa clara a necessidade de “conversar”, de construir Inteligência na cooperação e na interação, os modos de se conseguir isso ainda estão por ser criados – a interação será instrumentalizada por reuniões periódicas? Unificação metodológica? Mobilidade de pessoal entre órgãos? Compartilhamento de bancos de dados? Por conveniência ou por determinação legal? Serão privilegiadas operações conjuntas?

Uma outra crítica à PNI é que sua abrangência é limitada e não poderia ser efetivamente considerada nacional, porque seu alcance é o SISBIN; excluindo, portanto, níveis estadual, municipal, entidades do Judiciário e do Ministério Público, que são parceiros essenciais para a atividade de Inteligência.

À AI impõe-se também a demanda de não agir somente diante do dano ou da ameaça, sendo crescente a importância de projeção de tendências e cenários, a fim de produzir conhecimento em tempo de permitir a tomada de decisão hábil a, preventivamente, minimizar ameaças ou incrementar meios de enfrentamento, afastando, assim, a vulnerabilidade.

Portanto, a boa performance da Inteligência em um Estado moderno dependerá das respostas que der a esses desafios, que deverão ser objeto de aprofundamento e análises posteriores.


Referências

ABIN. Agência Brasileira de Inteligência. Composição do Sisbin. 2017. Disponível em http://www.abin.gov.br/atuacao/sisbin/composicao/ Acesso em 03 mar. 2017.

BBC Brasil. Especialistas acreditam que outro ataque cibernético pode ser iminente. Disponível em http://www.bbc.com/portuguese/internacional-39915317. Acesso em 16 maio 2017.

BEAU, Francis. Culture du renseignement et théories de la connaissance. Revue internationale d'intelligence économique. 2010/1. Vol 2. p. 161-190.

BRASIL. Lei 9883, de 7 de dezembro de 1999.

BRASIL. Decreto 4376, de 13 de setembro de 2002.

BRASIL. Decreto 8793, de 29 de junho de 2016.

KRAMER, Lisa & HEUER JR., Richards. America’s Increased Vulnerability to Insider Espionage. In: International Journal of Intelligence and CounterIntelligence, 20: 50–64, 2007. Acesso em 20 fev. 2013.

REBELLO, Claudia. Necessidade de Inteligência do Estado brasileiro. In: Revista Brasileira de Inteligência. Brasília: Abin, v. 2, n. 2, abr. 2006.pp.37-48

RORATTO, João Manoel. Acepção e conceitos de inteligência de Estado. In: Revista Brasileira de Inteligência. Brasília: Abin, n. 7, jul. 2012. pp-31-40.


Notas

[1] Em 12 maio 2017, por exemplo, um ataque cibernético afetou por vírus 125 mil sistemas de computadores em mais de 100 países (BBC Brasil, 2017).

[2] São instrumentos essenciais da Inteligência nacional: I – Plano Nacional de Inteligência; II – Doutrina Nacional de Inteligência; III – diretivas e prioridades estabelecidas pelas autoridades competentes; IV – SISBIN e órgãos de Inteligência que o integram; V – intercâmbio de dados e conhecimentos no âmbito do SISBIN, nos termos da legislação em vigor; VI – planejamento integrado do regime de cooperação entre órgãos integrantes do SISBIN; VII – capacitação, formação e desenvolvimento de pessoas para a atividade de Inteligência; VIII – pesquisa e desenvolvimento tecnológico para as áreas de Inteligência e Contrainteligência; IX – ajustes de cooperação mediante instrumentos específicos entre órgãos ou entidades integrantes da Administração Pública Federal (APF), das Unidades da Federação ou da iniciativa privada; X – recursos financeiros necessários à consecução das atividades de Inteligência; XI – controle interno e externo da atividade de Inteligência; e XII – intercâmbio de Inteligência e cooperação técnica internacionais.

Sobre os autores
Anna Cruz

Bacharel em Direito, mestre em Direitos Humanos (UFPA)

John da Silva Araujo

Doutor em Antropologia Social e Histórica (Université de Toulouse II)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CRUZ, Anna; DA SILVA ARAUJO, JOHN, John Silva Araujo. Política Nacional de Inteligência e o fim do superagente. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 23, n. 5346, 19 fev. 2018. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/61766. Acesso em: 21 nov. 2024.

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