1. Considerações a respeito do indiciamento
O termo “indiciado” vem disposto inicialmente no art. 5º, § 1º, “b”, do Código de Processo Penal Brasileiro, que o trata de forma atécnica, pois a abertura do caderno inquisitivo – pelo requerimento do ofendido ou de que tiver a qualidade para representá-lo – não traz ao suspeito a qualidade de indiciado, devendo o indiciamento ser feito durante o inquérito policial, tendo como condição temporal limite o início do processo, que se consubstancia com o recebimento da denúncia pelo juiz, sendo que o desrespeito de tal limite pode configurar constrangimento ilegal e ser combatido por habeas corpus.
Ainda a respeito da questão de quando o indiciamento será feito, não basta observar o limite temporal supramencionado, devendo ser realizado tão logo quando existirem indícios razoáveis de autoria, evitando fazê-lo ao final do inquérito policial (no relatório final) se já houver previamente tais indícios, já que isso restringiria o viés defensivo do suspeito, agora indiciado. A defesa do indiciado se reflete em saber que este está sendo considerado – formalmente – o autor de uma infração penal, possibilitando-o de, por exemplo, constituir um advogado ou esclarecer algum ponto nevrálgico da investigação, o que possibilitaria até o seu desindiciamento pelo delegado de polícia[2].
Sobre o desindiciamento, este se mostra necessário quando o delegado de polícia passa a entender que o indiciado não tem relação com o fato criminoso, descrita tal circunstância de forma motivada para o destinatário imediato do inquérito policial e titular da ação penal, o promotor de justiça[3].
A disposição normativa a respeito do indiciamento se encontra na Lei n.º 12.830/2013 (dispõe sobre a investigação criminal conduzida pelo delegado de polícia), que versa em seu art. Art. 2º, §6º, que: “O indiciamento, privativo do delegado de polícia, dar-se-á por ato fundamentado, mediante análise técnico-jurídica do fato, que deverá indicar a autoria, materialidade e suas circunstâncias.”
Ressalta-se – conforme visto acima – que o indiciamento é ato privativo do Delegado de Polícia, não sendo possível qualquer interferência externa sobre tal ato, conforme já ratificou o Supremo Tribunal Federal:
(...) Sendo o ato de indiciamento de atribuição exclusiva da autoridade policial, não existe fundamento jurídico que autorize o magistrado, após receber a denúncia, requisitar ao Delegado de Polícia o indiciamento de determinada pessoa. A rigor, requisição dessa natureza é incompatível com o sistema acusatório, que impõe a separação orgânica das funções concernentes à persecução penal, de modo a impedir que o juiz adote qualquer postura inerente à função investigatória. Doutrina. Lei 12.830/2013. Ordem concedida. (STF, 2a Turma, HC 115.015/SP, Rei. Min.Teori Zavascki,j. 27/08/2013).
Em relação à natureza jurídica, o indiciamento é um ato administrativo vinculado, ou seja, havendo indícios de autoria ou participação na infração penal, deve o delegado de polícia indiciar o suspeito, não havendo discricionariedade em relação a esse ponto[4].
Sobre as consequências do indiciamento, há que se ressaltar a principal (e talvez até a única), que é em relação à vida social do indiciado – ou seja – de caráter extraprocedimental, e, ainda, extraprocessual. O indiciamento cria uma estigmatização social, desprovida de contraditório e permanentemente constatada nos registros policiais, o que pode resultar em vários constrangimentos na vida do indiciado[5].
Há que se destacar ainda a relação do indiciamento com o titular da ação penal, afinal tal ato está arraigado de particularidades jurídicas, visto que define – ainda que provisoriamente – a tipificação formal do crime, além de, verbi gratia, suas qualificadoras ou privilegiadoras. Dessa forma, mesmo não atrelando o membro do Ministério Público a seus termos, o indiciamento faz com que este deva se manifestar – mesmo que de forma indireta – a respeito, posicionando-se sobre o fato criminoso e o autor indiciado, por mais que seja pelo requerimento do arquivamento do inquérito policial[6].
Acontece que há várias nuances a serem exploradas a respeito do indiciamento, porque este carece de maior cuidado por parte do legislador, que deixou para a doutrina a missão de dispor sobre o assunto. Assim, versa Aury Lopes Jr. (2016) sobre o tema: “(...) gerando o mais absoluto confusionismo sobre o momento em que se produz e que efeitos jurídicos gera (direitos e cargas). O sistema jurídico brasileiro não define claramente quando, como e quem faz o indiciamento.”
2. Fundamentos e aplicação da Lei n.º 9.099/95 no âmbito da polícia judiciária
A lei que dispõe sobre os juizados especiais criminais tem por principal característica a descarcerização, através da não aplicação de penas privativas de liberdade, substituindo-as pelas penas alternativas. A lei em tela trouxe também o modelo consensual de Justiça, em que o acusado participa da escolha adequada da sanção penal a ser imposta, como, por exemplo, no aceite da proposta de transação penal feita pelo Ministério Público[7].
Os critérios do processo perante o Juizado Especial Criminal, contidos no art. 62, da Lei n.º 9.099/95, são: a oralidade, a informalidade, a economia processual e a celeridade. Tais princípios são aplicados para as infrações de menor potencial ofensivo, que são as contravenções penais e crimes com pena máxima abstrata não superior a 2 (dois) anos[8].
A oralidade pode ser observada na lei em comento na defesa preliminar oral (art. 81, “caput"), já a informalidade é refletida - por exemplo - no art. 81, §3º, que dispensa o relatório na sentença do magistrado. Por sua vez, a audiência única – prevista no art. 81, “caput" e §1º - demonstra a economia processual, e, por fim, a celeridade é consectário lógico dos demais princípios, mas também pode ser observada no art. 80, que dispõe que nenhum ato processual será adiado[9].
A doutrina (ALENCAR; TÁVORA, 2017) ainda divide o procedimento do Juizado Especial Criminal em preliminar e procedimento sumaríssimo propriamente dito. Interessa-nos a fase preliminar - que se divide em investigação preliminar (pelo termo circunstanciado de ocorrência) e audiência preliminar – especialmente no que se refere à esfera da polícia judiciária. Nas infrações de menor potencial, o delegado de polícia deverá proceder com a lavratura de um termo circunstanciado de ocorrência, e não com o inquérito policial. Todavia, poderá haver a realização deste, quando houver, por exemplo, conexão com outro crime que não seja de menor potencial ofensivo. Outra situação em que também se deve realizar o inquérito policial é com relação a certos procedimentos, como a dos delitos cometidos contra a mulher no âmbito de relação afetiva (Lei n.º 11.340/2006) e dos crimes militares (art. 90-A, da Lei n.º 9.099/1995).
Ainda em relação ao termo circunstanciado, este pode ser descrito como (ALENCAR; TÁVORA, 2017):
(...) uma investigação simplificada, com o resumo das declarações das pessoas envolvidas e das testemunhas, e eventualmente com a juntada de exame de corpo de delito para os crimes que deixam vestígios. Objetiva-se, como se infere, coligir elementos que atestem autoria e materialidade delitiva, ainda que de forma sintetizada. Nos autos do termo circunstanciado de ocorrência, o delegado tomará o compromisso do autuado de comparecer ao juizado especial em dia e horário designados previamente.
Quando o delegado de polícia finalizar o termo circunstanciado de ocorrência irá remetê-lo ao Juizado Especial Criminal, sendo que o magistrado irá dar vista do mesmo ao promotor de justiça, que irá dar continuidade conforme o seu entendimento, requerendo o seu arquivamento ou procedendo através da audiência preliminar[10].
3. Fundamentos e aplicação da lei n.º 11.340/06 no âmbito da polícia judiciária
A lei em tela veio a combater a violência de gênero que tem por característica intrínseca a cifra negra (parcela de infrações criminais que não são comunicados ao Poder Público), pois – em regra – ocorre no próprio seio familiar, deixando a mulher de denunciar o agressor (ou a agressora) e, ainda, mantendo o vínculo conjugal em virtudede uma ampla gama de motivos, principalmente pela dependência financeira, preocupação com os filhos e ainda pelo medo de ser morta em decorrência do término da relação[11].
Tal impunidade é agravada ainda por falta de apoio de terceiros, como se verifica na pesquisa realizada pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), publicado em 2014, que demonstra que a maioria da população acredita que não deve interferir, por exemplo, em brigas domésticas (na afirmação “Em briga de marido e mulher, não se mete a colher", 81,9% dos entrevistados concordaram, ainda que parcialmente, com a mesma). Assim, a população não está completamente conscientizada sobre o problema da agressão em ambiente doméstico, que não se traduz apenas na violência física (que teve maior repúdio pelos entrevistados, sendo que na afirmação “Homem que bate na esposa tem que ir para a cadeia", 91,4% dos entrevistados concordaram, ainda que parcialmente, com tal assertiva)[12].
O legislador abarcou no art. 7º desta lei um amplo rol de tipos de violência contra a mulher, que são: a violência física, psicológica, sexual, patrimonial e moral. Dessa forma, amplia-se a proteção da mulher, que se vê amparada por uma lei que observa as diversas peculiaridades nesse tipo de violência.
Importante decisão do Tribunal da Cidadania é aquela que permite a aplicação de medidas protetivas para a mulher independentemente de persecução penal, assim:
As medidas protetivas previstas na Lei n.º 11.340/2006, observados os requisitos específicos para a concessão de cada uma, podem ser pleiteadas de forma autônoma para fins de cessação ou de acautelamento de violência doméstica contra a mulher, independentemente da existência, presente ou potencial, de processo-crime ou ação principal contra o suposto agressor. (REsp nº 1.419.421-GO, Rel.Min. Luis Felipe Salomão, 4ª Turma, j. 11/02/2014)
Vale ressaltar que a lei em comento não é inconstitucional, pois é uma ação afirmativa, que visa à compensação e proteção de uma parcela da sociedade que teve determinados direitos tolhidos, no caso a questão da vulnerabilidade da mulher em relação ao homem. A Lei Maria da Penha tem o objetivo de intimidar a prática da violência doméstica, fundamentada no princípio da igualdade material[13].
No âmbito policial, o delegado de polícia tem grande importância no contexto da Lei n.º 11.340/06, pois esta dispõe de um capítulo próprio (capítulo III) a respeito das atribuições daquele em situações que envolvam violência doméstica contra a mulher. O delegado de polícia tem a nobre missão de, por exemplo, garantir proteção policial à vítima (art. 11, inciso I), encaminhar esta ao hospital e/ou ao Instituto Médico Legal (art. 11, inciso II), e informar à vítima sobre seus direitos conferidos pela Lei Maria da Penha (art. 11, inciso V).
Outra importante atribuição do delegado de polícia nesse contexto é - conforme o art.12, inciso III – remeter (em até 48 horas) expediente apartado ao juiz a respeito da concessão de medidas protetivas de urgência a serem aplicadas pelo magistrado. Ainda a respeito dessa atribuição, tamanha é a sua relevância que foi objeto de Projeto de Lei da Câmara (PLC n.º 7/2016),e previa em sua disposição a possibilidade do delegado de polícia determinar algumas das medidas protetivas da Lei n.º11.340/06 para vítimas que se encontrem em estado de risco e urgência, aumentando consideravelmente a efetividade de proteção à mulher. O projeto em questão – lamentavelmente – foi vetado pelo Presidente Michel Temer, principalmente por questões corporativistas, o que representa um grande retrocesso a respeito do assunto, já que impede o deferimento das medidas protetivas de forma imediata pelo delegado de polícia, tendo a mulher que aguardar a decisão judicial, enquanto em muitas vezes luta para se manter viva até que tal decisão seja efetivada.
4. Cabe o indiciamento em infrações de menor potencial ofensivo no contexto de violência doméstica contra a mulher?
O indiciamento deve ser analisado – preliminarmente – no contexto da Lei n.º 9.099/95, procedimento este em que as infrações de menor potencial ofensivo têm consequências brandas, conflitando assim com o constrangimento causado pelo indiciamento. A própria transação penal (tendo como pena restritiva de direitos ou multa) prevista no procedimento em questão não gera certidão de antecedentes criminais, ao contrário do indiciamento que acarreta ao indiciado o registro do mesmo nos assentamentos policiais. Assim, o indiciamento não seria proporcional na lei em comento[14].
Quanto à impossibilidade do indiciamento, ratifica a jurisprudência:
HABEAS CORPUS. LEI N.º 9.099/95, ART. 69. INDICIAMENTO POSTERIOR. PROPOSTA DE SUSPENSÃO JÁ ACEITA. CONSTRANGIMENTO. ORDEM CONCEDIDA. Pela ótica da Lei n.º 9.099/95, art. 69, uma das características do procedimento dos crimes de menor potencial ofensivo, submetido à competência dos Juizados Especiais, é a desnecessidade do inquérito policial, significando dizer que o indiciamento do autor do fato não resulta em medida mais coerente, ainda mais quando já aceita proposta de suspensão condicional. Ordem concedida para desconstituir o indiciamento do Paciente.(STJ - HC: 25557 SP 2002/0156507-4, Relator: Ministro JOSÉ ARNALDO DA FONSECA, Data de Julgamento: 28/10/2003, T5 - QUINTA TURMA, Data de Publicação: DJ 24.11.2003 p. 335)
Ressalta-se que as disposições da Lei n.º 9.099/95 não se aplicam nas circunstâncias da Lei n.º 11.340/06, conforme se verifica no art. 41 desta: “Aos crimes praticados com violência doméstica e familiar contra a mulher, independentemente da pena prevista, não se aplica a Lei n.º 9.099, de 26 de setembro de 1995)." A Súmula n.º 536 do STJ também coaduna com a disposição supracitada, assim: “A suspensão condicional do processo e a transação penal não se aplicam na hipótese de delitos sujeitos ao rito da Lei Maria da Penha." Como conseqüências práticas de tal fato, podem-se citar: não se lavra termo circunstanciado; não se aplicam os institutos despenalizadores (como a transação penal); e se afasta a competência dos Juizados Especiais Criminais, e, assim, o seu rito procedimental[15].
Importante salientar que o disposto acima também se aplica às contravenções penais, assim como já decidiu o STJ:
(...) Alinhando-se à orientação jurisprudencial concebida no seio do Supremo Tribunal Federal, a Terceira Seção deste Superior Tribunal de Justiça adotou o entendimento de serem inaplicáveis aos crimes e contravenções penais pautados pela Lei Maria da Penha, os institutos despenalizadores previstos na Lei n. 9.099/95, dentre eles, a suspensão condicional do processo. 4. Impetração não conhecida.(STJ - HC: 196253 MS 2011/0022515-7, Relator: Ministro OG FERNANDES, Data de Julgamento: 21/05/2013, T6 - SEXTA TURMA, Data de Publicação: DJe 31/05/2013)
Dessa forma, conclui-se que nas infrações de menor potencial ofensivo - se estiverem em contexto de violência doméstica e familiar contra a mulher - há o indiciamento do acusado, pois a restrição doutrinária pela impossibilidade de indiciamento na esfera da Lei n.º 9.099/95 é afastada pela Lei n.º 11.340/06, primando pelo combate à violência contra a mulher em detrimento do viés de abrandamento penal proposto pelo sistema dos Juizados Especiais Criminais.
Referências bibliográficas
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[2]DEZEM, Guilherme Madeira. Curso de direito processual penal. 2ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016.
[3]ALENCAR, Rosmar Rodrigues; TÁVORA. Curso de direito processual penal. 12ª ed. Salvador: Editora Juspodivm, 2017.
[4]AVENA, Norberto Cláudio Pâncaro. Processo penal. 9ª ed. São Paulo: Editora Método, 2017.
[5]GABRIEL, Anderson de Paiva; SOUZA, David Tarciso Queiroz de. Um indiciamento para quê?. In: SOUZA, David Tarciso Queiroz de; GUSSO, Rodrigo Bueno. Estudos sobre o papel da Polícia Civil em um estado democrático de direito. 1ª ed. Florianópolis: Empório do Direito, 2016.
[6]PAULA, Alan Pinheiro de; PEREIRA, André Luiz Bermudez. As diligências de investigação no Estado Democrático de Direito. In: GOSTINSKI, Aline; SOUZA, David Tarciso Queiroz de. Investigação preliminar e processo penal: novos desafios e perspectivas. 1ª ed. Florianópolis: Empório do Direito, 2017.
[7]OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Curso de processo penal. 21ª ed. São Paulo: Editora Atlas, 2017.
[8]ALENCAR, Rosmar Rodrigues; TÁVORA. Curso de direito processual penal. 12ª ed. Salvador: Editora Juspodivm, 2017.
[9]AVENA, Norberto Cláudio Pâncaro. Processo penal. 9ª ed. São Paulo: Editora Método, 2017.
[10]ALENCAR, Rosmar Rodrigues; TÁVORA. Curso de direito processual penal. 12ª ed. Salvador: Editora Juspodivm, 2017.
[11]INSTITUTO AVON. Pesquisa IBOPE. Percepções e reações da sociedade sobre a violência contra a mulher. São Paulo, 2009. Pesquisa. Disponível em: <http://www.spm.gov.br/lei-maria-da-penha/lei-maria-da-penha/2009-pesquisa-ibope.avon-violencia-domestica.pdf>. Acesso em: 04 nov. 2017.
[12]IPEA. SIPS: Sistema de Indicadores de Percepção Social. Tolerância social à violência contra as mulheres. Brasília, 2014. Pesquisa. Disponível em: <http://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/SIPS/140327_sips_violencia_mulheres.pdf>. Acesso em: 05 nov. 2017.
[13]LENZA, Pedro. Direito constitucional esquematizado. 18ª ed. São Paulo: Editora Saraiva, 2014.
[14]LIMA, Renato Brasileiro de. Código de processo penal comentado. 2ª ed. Salvador: Editora Juspodivm, 2017.
[15]AVENA, Norberto Cláudio Pâncaro. Processo penal. 9ª ed. São Paulo: Editora Método, 2017.