Símbolo do Jus.com.br Jus.com.br

Dignidade humana – um direito em vida e no momento de sua terminalidade

A morte digna e suas implicações sócio-jurídicas

Agenda 18/11/2017 às 10:42

Antes de podermos falar abertamente em morrer e cuidados paliativos, devemos aprender a falar melhor sobre a própria vida e entender que a morte é conceitual, espiritual e filosoficamente diferente para cada ser humano.

Dignidade humana – um direito em vida e no momento de sua terminalidade

“Se quiseres poder suportar a vida, fica                                      pronto para aceitar a morte.”

                                                                                                                          Sigmund Freud


Para Heidegger, o homem está especialmente mediado por seu passado: o ser do homem é um "ser que caminha para a morte" - homines dolentes - e sua relação com o mundo concretiza-se a partir dos conceitos de preocupação, angústia, conhecimento e complexo de culpa.

Antes de podermos falar abertamente em morrer e cuidados paliativos, devemos aprender a falar melhor sobre a própria vida e entender que a morte é conceitual, espiritual e filosoficamente diferente para cada ser humano, haja vista que sua percepção se transforma de acordo com o próprio ciclo da vida e com o envelhecimento do ser humano.

Além disso, é importante compreender que a saúde se transformou em um “bem valioso”, transacionado no mercado, que promete uma vida mais longa e com mais qualidade a quem estiver disposto a vincular a sua vida ao complexo “médico-industrial”, tornando-se um “doente em suspenso” (como conceitua o jurista português, João Carlos Gralheiro). Dessa forma, à luz do espírito mercantilista dominante, a atividade médica revela-se como uma atividade económica dirigida à obtenção de lucros; e essa perspectiva de mercantilista provoca a dessacralização da prática médica e a desmistificação da profissão.

Como diz o jurista Guilherme Oliveira: “Estamos hoje em dia psicologicamente impreparados para o declínio, a deficiência, a doença e até a morte”.

A evolução médico-científica nos fez acreditar na infalibilidade dos tratamentos e procedimentos em saúde, levando a uma percepção irreal de que não morreremos, de que seremos curados sempre, de que seremos eternamente jovens e assim por diante, como se pudéssemos domesticar a incerteza. Logo, podemos concluir que alteramos a tradicional e óbvia vulnerabilidade da condição humana por um sentimento generalizado de imortalidade “clinicamente sustentada”.

Imediatamente, surge a de definição de Sir William Osler sobre a medicina (Aphorisms from his bedside teachings and writings, 1950), de que essa é a é uma ciência de incerteza e uma arte de probabilidade”.

De tal modo, como o conceito e entendimento da morte é oscilante, podemos dizer que, para o adulto, a morte pode depender da experiência física e psicológica pela qual se está passando. Já, para o idoso, a morte pode ser configurada em uma perspectiva de maior resignação.

Aliás, é perceptível que a maioria de nós não está preparada para enfrentar a morte, incluindo-se aí os pacientes e seus próprios familiares e cuidadores.

De acordo com OMS, os cuidados paliativos consistem na assistência ativa e integral a pacientes cuja doença não responde mais ao tratamento curativo.

A prática ainda é pouco discutida, sendo até negligenciada, em vários países.

É necessária uma determinação político-social-social, com a finalidade de criar políticas públicas e introduzir práticas voltadas para oferecer bem-estar e qualidade de vida a esses pacientes, bem como para lhes proporcionar assistência integral e digna, tanto quanto possível e até o fim da vida.

Além disso, precisamos aprofundar o debate sobre a proximidade e indeclinabilidade da morte e a terminalidade humana, de modo a avaliar a evolução das práticas da sociedade e das condutas éticas dos profissionais de saúde no que se refere aos cuidados paliativos.

A medicina mostra avanços no debate sobre temas como a ética da vida e peculiaridades relacionadas ao corpo, à bioética, às diretivas antecipadas de vontade e à dignidade da pessoa (em um campo macrossômico).

É preciso entender que, durante muito tempo, os pacientes fora de possibilidades terapêuticas de cura foram esquecidos pelos serviços de saúde (mistanásia), uma vez que o modelo biomédico, amplamente utilizado na época, não se preocupava com a “qualidade de vida” dos pacientes, considerando que o principal foco da medicina estava na doença e na cura dos doentes; o que culminou no surgimento de movimentos sociais em prol da morte “menos sofrida”, mais digna e com maior autonomia por parte do paciente, permitindo assim o desenvolvimento dos cuidados paliativos.

Assine a nossa newsletter! Seja o primeiro a receber nossas novidades exclusivas e recentes diretamente em sua caixa de entrada.
Publique seus artigos

Durante muito tempo, os profissionais de saúde tiveram atitudes bastante sedimentadas em uma concepção mecanicista da vida e, por isso, é possível observar atualmente as inúmeras dificuldades no reconhecimento da realidade complexa e pluridimensional do cuidado à saúde.

O que sabemos é que os esforços médicos para estender a vida perto do fim nem sempre se mostram alinhados às prioridades dos pacientes. Muitas vezes, os seus desejos nem sequer são levados em consideração pela equipe clínica. E a maioria dos óbitos é oriunda de uma série de tratamentos invasivos em doenças terminais, prolongando a estadia do paciente em instalações hospitalares (distanásia), quando muitos poderiam usufruir de cuidados paliativos, por exemplo. 

Foi apenas no século XX que os cuidados paliativos se tornaram modelo institucionalizado de assistência à saúde. Isso ocorreu em Londres, na Inglaterra, com a criação em 1967 do primeiro hospice moderno – o St. Christopher Hospice – pela enfermeira, médica e assistente social, Cicely Saunders e difundiu o conceito de cuidar e a proposta de manter o foco nas necessidades do paciente, até o fim de sua vida (com dignidade).

Assim, os cuidados paliativos surgiram ao longo do tempo como resultado de amplas transformações nas relações sociais e nas representações do processo de morte e do morrer, bem como em decorrência de transformações inerentes ao campo médico, principalmente com pacientes oncológicos.

No Brasil, o Rio Grande do Sul foi o primeiro estado a contar com o Serviço de Cuidados Paliativos.

Mas somente em 1997, com a fundação da Associação Brasileira de Cuidados Paliativos (ABCP), tomou-se a iniciativa de introduzir e promover os cuidados paliativos mediante a formação de profissionais de saúde.

O Instituto Nacional do Câncer (Inca) foi a primeira Unidade Hospitalar de Cuidados Paliativos, instalada pelo Ministério da Saúde, cuja filosofia se expandiu posteriormente para outras instituições e estados.

Podemos notar que a história dos cuidados paliativos é relativamente recente no Brasil, mas toda a reflexão sobre o assunto vem favorecendo um processo de cuidado e valorização do ser humano, inclusive no momento de terminalidade da vida.

Validamente, embora a morte faça parte do contexto da vida e da rotina do ambiente hospitalar, os integrantes da equipe multiprofissional de saúde – em geral – não estão preparados para enfrentar a morte e lidar com a perda de pacientes. Infelizmente, ainda não é rotina debater e falar sobre a morte nos próprios centros de ensino de saúde.

Podemos enxergar que somente os indivíduos seguros em relação aos seus sentimentos, e com atitudes naturais diante da vida e da morte, terão atingido um estágio social, psicológico e espiritual, que lhes conceda a aptidão compreensiva para poder auxiliar os pacientes.

Logo, a melhor conduta para com o ser humano no final da vida está diretamente relacionada com a dignidade da pessoa humana e o respeito às suas decisões sobre o processo de morte e morrer (princípio da autonomia do paciente), que envolve sobretudo a definição do tratamento de pacientes terminais com todos os dilemas éticos e impasses de natureza jurídica circundantes, fazendo com que não só os profissionais de saúde, mas também os estudiosos de diversas áreas, e até mesmo o público leigo, pensem de forma crítica a respeito das condutas éticas e juridicamente mais adequadas perante a terminalidade da vida humana.

Sem sombra de dúvidas, a morte é fenômeno multifacetado e repleto de dilemas éticos e profissionais e, em razão disso, acreditamos que os cuidados paliativos têm conquistado seu espaço gradativamente na sociedade contemporânea. No cenário brasileiro, nota-se claramente o processo de ampliação de sua importância para o bem-estar das pessoas que se encontram nos últimos dias de vida.

É preciso conceder ao paciente o capacidade de participar ativamente dos processos de tomada de decisão sobre sua saúde e bem-estar psicofísico e de contar com a possibilidade de viver dignamente o pouco de tempo de vida que ainda reste.

A sociedade e política pública de saúde precisam introjetar a necessidade do  suporte amplo a todos que participam do interregno da terminalidade, e não apenas ao paciente, pois o sofrimento potencial e luto são assuntos habitualmente descuidados.

Portanto, a evolução e desmistificação dos cuidados paliativos apresenta-se como desafio concreto aos serviços e equipes de saúde; de forma que possamos atender às necessidades humanas de maneira ampla e condigna.

No tocante à ética, o momento é de sopesar a dignidade humana perante a cercania da morte para além da dimensão material e da perspectiva complexo médico-industrial-hospitalar, implicando uma nova visão diante da singularidade de cada indivíduo, com seus aspectos biológicos (genéticos, bioquímicos, etc), fatores psicológicos (estado de humor, de personalidade, de comportamento, etc) e fatores sociais (culturais, familiares, socioeconômicos, médicos, etc...)

É preciso humanizar o tratamento sobre o fim da vida e acabar com diversos tabus, tanto dos profissionais da saúde quanto em pacientes, dos familiares, da religião e da própria sociedade na qual estamos inseridos. Portanto, para se aperfeiçoar os debates sobre os cuidados no fim da vida, é necessário levar o assunto para o seio familiar e, principalmente para as escolas de saúde, para que a morte seja vista de forma tão natural quanto o próprio nascimento.

Referências:

Brasil. Ministério da Saúde. Instituto Nacional de Câncer. Controle de sintomas do câncer avançado em adultos. Rev Bras Cancerol. 2000;46(3):243-56.

Tratado Brasileiro sobre Direito Fundamental à Morte Digna, Autor: Adriano Marteleto Godinho George Salomão Leite ,Luciana Dadalto, Editora: Almedina, 2017

World Health Organization. National cancer control programs: polices and management guidelines. 2ª ed. Genebra: WHO.

http://www.gazetadopovo.com.br/opiniao/artigos/pelo-direito-a-morte-digna-06so4j65arxmiokec84bpus6t

Brasil. Ministério da Saúde. Portaria nº 3.150, de 12 de dezembro de 2006. Institui a Câmara Técnica em Controle da Dor e Cuidados Paliativos. Diário Oficial da União. 13 dez 2006 [acesso 3 out 2012];(238): Seção I, p. 111. Disponível: http://pesquisa.in.gov.br/imprensa/jsp/visualiza/ index.jsp?jornal=1&pagina=111&data=13/12/2006

Pessini L. A filosofia dos cuidados paliativos: uma resposta diante da obstinação terapêutica. In: Pessini L, Bertachini L. Humanização e cuidados paliativos. 3ª ed. São Paulo: Loyola; 2006. p. 181-208.

Pessini L. Distanásia: até quando investir sem agredir? Bioética. 1996;4(1):31-43.

Sobre o autor
Tertius Rebelo

Advogado especializado e dedicado, principalmente, ao Direito Médico, coordena esta área de atuação do escritório, incluindo as ações de indenização pelo alegado erro médico envolvendo o profissional e os estabelecimentos de saúde, processos de sindicância e processos éticos no âmbito dos Conselhos Regionais de Medicina e Conselho Federal de Medicina.Tem atuação no gerenciamento dos riscos em questões ligadas à propaganda e publicidade em Medicina e demais normas éticas e administrativas. Ainda atua nas ações criminais envolvendo o ato médico, especialmente àquelas em que se discute a acusação de homicídio culposo, lesão corporal, dentre outras.- Membro da Comissão de Direito à Saúde da OAB/RN; - Integrante da Comissão de Revisão do Código de Ética Médica no RN; - Membro da European Association for Health Law; - Membro da World Association for Medical Law; - Diretor de Prerrogativas da Associação dos Advogados do RN – AARN; - Conferencista/Palestrante em Congressos e seminários sobre Direito Médico, Biodireito e Bioética; - Ex-Coordenador jurídico da secretaria municipal de saúde do Município de Guamaré Estado do Rio Grande do Norte, no período de janeiro de 2011 à de agosto de 2012 - Ex-Coordenador jurídico da secretaria municipal de saúde do Estado do Rio Grande do Norte, no período de abril de 2010 à de setembro de 2010; - Procuradoria da República no Rio Grande do Norte - Ministério Público Federal, atuando, no período de 15 de julho de 2005 até 11 de março de 2008, na função de assessor de gabinete do Procurador da República.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!