1 INTRODUÇÃO
O presente trabalho tem por tema e objetivo analisar a possibilidade de cumprimento de pena após confirmação de sentença penal condenatória em grau de recurso. É dizer, ao modo pergunta: confirmada a sentença em segunda instância, pode ser o Acórdão Penal Condenatório desde logo executado, ainda que pendente recurso? É com essa finalidade que se propôs o estudo.
Não é novidade, vale destacar, a importância que circunda o tema, relativo à possibilidade de cumprimento de pena após a confirmação de sentença penal condenatória em tribunal de segunda instância de julgamento, sendo esse, impende destacar, o objetivo principal do presente trabalho.
Para tanto, e tomando em conta a abordagem do assunto no HC 126.292/SP (Rel. Min. Teori Zavascki), julgado pelo pleno do Supremo Tribunal Federal em 17 de fevereiro de 2016, que autorizou o referido cumprimento, abrindo importante precedente, dividiu-se a análise em três temas principais.
O primeiro deles, e correspondente ao primeiro capítulo, são preliminares para uma adequada compreensão do tema principal. No mesmo, além de abordar a presunção de inocência no ordenamento jurídico nacional, buscou-se registrar considerações sobre teoria dos princípios, direitos fundamentais, mormente no que tange às suas características, bem como algumas obtemperações sobre a teoria do crime. Vale dizer, quanto à importância, que possuem íntima relação com o tema abordado entre os capítulos.
No segundo capítulo, por sua vez, procurou-se analisar a importância da teoria dos capítulos de sentença para uma adequada compreensão do assunto. No mesmo, impede obtemperar, pretendeu-se deixar consignada a topografia do estudo, fixando informações sobre teoria da decisão judicial, tanto na seara cível como penal, bem como os elementos que compõe a sentença, sem olvidar, por oportuno de enfrentar o tema principal em face dos recursos e seus correspectivos efeitos, visto que especificamente mencionado no julgado acima apregoado.
No terceiro capítulo, então, por tratar-se de uma análise de julgado, foram necessárias tessituras acerca da teoria dos precedente, embora sem descer às minúcias, posto que apenas para subsidiar a análise. No mesmo, mister o registro, foram destacados conceitos como o de ratio decidendi, assim como outros relativos à matéria, mormente do que diz respeito à importância dos fatos para uma adequada interpretação de precedentes.
No que tange ao julgado analisado, levando em consideração a já mencionada importância dos fatos, buscou-se trazer os elementos mais importantes sobre o mesmo, sendo inclusive a principal justificativa para o excesso de remissões a termos do julgado.
Ainda se buscou, neste capítulo, inclusive sendo seu principal objetivo, enfrentar o mérito do julgado, para, por fim, sistematizar o assunto, ainda que em linhas gerais, posto que para isso exigir-se-ia uma pesquisa especialmente voltada para tanto.
2 DO PRINCÍPIO DA PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA
2.1. ALGUMAS NOTAS INTRODUTÓRIAS
Tratar da possibilidade de cumprimento de pena após condenação em segundo grau exige, decerto, análises pautadas no princípio da presunção de inocência. Bem verdade, também, impõe considerações sobre a teoria dos princípios, pois, como se sabe, possuem uma lógica de interpretação diferenciada das regras.
Por fim, cumpre salientar que, tomando em conta que o status constitucional do princípio da presunção de inocência é de direito fundamental, também se impõeM algumas notas sobre o tema, mormente no que diz respeito às suas características, pois, à uma primeira vista, aparenta ser este o único direito fundamental que não se reveste da relatividade em face de outros direitos.
E por fim, em razão da íntima ligação entre os temas, serão tecidas considerações, ainda que breves, sobre a teoria do crime, posto que possibilitará uma compreensão mais adequada sobre o assunto em geral.
2.2 ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE TEORIA DOS PRINCÍPIOS
Cumpre destacar, ab initio, que não se pretende, com a análise que seguirá, esgotar a matéria relativa à teoria dos princípios. A intenção, tão somente, é a de oferecer um aporte teórico seguro para enfrentar o assunto objeto do presente trabalho.
À vista disso, e considerando a estreita relação que o assunto guarda com os estudos da hermenêutica jurídica, deve-se registrar, por exigência lógica, que a primeira noção a ser compreendida é a diferenciação existente entre texto e norma. Consoante os ensinamentos de Ávila (2004, pág. 22):
Normas não são textos nem o conjunto deles, mas os sentidos construídos a partir da interpretação sistemática de textos normativos. Daí se afirmar que os dispositivos se constituem no objeto da interpretação, e as normas, no seu resultado. O importante é que não existe correspondência entre norma e dispositivo, no sentido de que sempre que houver um dispositivo haverá uma norma, ou sempre que houver uma norma deverá haver um dispositivo que lhe sirva de suporte.
Tal nota é de suma importância na medida em que permite a elucidação de que nem sempre haverá um dispositivo que ofereça um aporte imediato, podendo ocorrer, por exemplo, que uma dada norma “x” decorra do regime e princípios adotados pelo Estado.
Veja, em particular, que a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, em seu Art. 5º, § 2º, reconhece essa possibilidade, na medida em que afirma que “os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte”.
Reconhecendo essa peculiaridade, mas com outros exemplos, são salutares as lições de Ávila (2004). De toda sorte, cumpre salientar, o mais importante é compreender essa particularidade, posto que, para o tema em análise, é inafastável a necessidade de compreender que objeto e resultado da interpretação não se confundem.
Com essas considerações, impende, doravante, registrar que também não se confundem regras e princípios. Sobre o assunto é oportuno destacar que várias teorias já foram levantadas, mas, por não se constituir na finalidade do presente trabalho, tomaremos como base, tão somente, as lições de Ávila que, em sua “Teoria dos princípios” (2004), propicia um panorama geral do assunto. De acordo com o autor (2004, pág. 28-29):
Alexy, partindo das considerações de Dworkin, precisou ainda mais o conceito de princípios. Para ele, os princípios jurídicos consistem apenas em uma espécie de normas jurídicas por meio da qual são estabelecidos deveres de otimização aplicáveis em vários graus, segundo as possibilidades normativas e fáticas.
Nesse passo, consoante os ensinamentos do autor supracitado (2004), diferencia-se os princípios das regras na medida em que estas não comportam aplicação graduada. Ou é aplicada, ou não é aplicada.
Com essas considerações, pode-se perceber a importância da distinção para o tema objeto do presente trabalho, pois, afinal, é um desrespeito ao princípio da presunção de inocência autorizar o cumprimento de pena após condenação em segundo grau de julgamento? Estar-se-á, ou não, ferindo a presunção de inocência ao possibilitar essa interpretação?
Antes de passar para o próximo tópico, ainda cumpre fazer duas ressalvas. A primeira diz respeito à própria abordagem que foi levada à efeito quanto à diferenciação entre regras e princípios. Claro que existem outros critérios distintivos, mas o exposto é suficiente para a análise que quis aqui ser realizada. A segunda, mais voltada ao tema do trabalho, é relativa à própria natureza da norma resultante da interpretação do Art. 5º, LVII da CRFB/1988 (Presunção de inocência: Regra ou princípio?). Antes de respondê-la, vale trazer algumas considerações sobre a teoria dos direitos fundamentais para, empós, enveredar na temática proposta.
2.3 ALGUMAS NOTAS SOBRE A TEORIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS
Por óbvio, a análise do tema objeto do presente trabalho não poderia se furtar a tecer considerações, ainda que gerais, sobre a teoria dos direitos fundamentais. Nesse particular, impende observar, sobreleva a necessidade de se debruçar nas características dos mesmos. Antes, porém, é oportuno salientar que não deve se confundir direitos fundamentais com direitos humanos. Embora guardem íntima relação, são categorias jurídicas diversas. Conforme os ensinamentos de Branco (2011, pág. 166):
[...] a locução direitos fundamentais é reservada aos direitos relacionados com posições básicas das pessoas, inscritos em diplomas normativos de cada Estado. São direitos que vigem numa ordem jurídica concreta, sendo, por isso garantidos e limitados no espaço e no tempo, pois são assegurados na medida em que cada Estado os consagra.
Direitos humanos, por sua vez, são aqueles ligados à própria natureza humana, não estando, assim, positivado em um dado ordenamento jurídico, mas na seara internacional. (Marmelstein, 2014) (Bonavides 2012).
Branco ainda afirma que (2011, pág. 166), “[...] São direitos postulados em bases jusnaturalistas, contam com índole filosófica e não possuem como característica base a positivação numa ordem jurídica particular”. Em matéria terminológica, vale dizer, Marmelstein (2014, pág. 23-24) afirma que a expressão “direitos fundamentais” ainda costuma ser confundida com outra, qual seja, “direitos dos homens”.
Sobre o assunto, eis as lições do mesmo (IBID. 2014, pág. 23) aduzindo que: “[…] os direitos do homem seriam valores ético-políticos ainda não positivados. Eles estariam em um estágio pré-positivo […]” e “possuem conteúdo bastante semelhante ao direito natural”. Dessa forma, os direitos dos homens, seriam categorias diferentes na medida em que não possuem positivação.
Vencida essas considerações iniciais, cumpre tecer considerações sobre as características dos direitos fundamentais. Para tanto, tomaremos, os ensinamentos de Branco (2011) que, inobstante reconhecer a dificuldade de enumerá-las, propõe as seguintes: a) universalidade e relatividade; b) historicidade; c) inalienabilidade/indisponibilidade; d) constitucionalização; e) vinculação dos poderes públicos, em suas três esferas; e, f) aplicação imediata.
A primeira característica, vale destacar, é tratada pelo autor com reservas. Isso porque, segundo o mesmo (IBID, 2011, pág. 162):
Não é impróprio afirmar que todas as pessoas são titulares de direitos fundamentais e que a qualidade de ser humano constitui condição suficiente para a titularidade de tantos desses direitos. Alguns direitos fundamentais específicos, porém, não se ligam a toda e qualquer pessoa. Na lista brasileira dos direitos fundamentais, há direitos de todos os homens – como o direito à vida –, mas há também posições que não interessam a todos os indivíduos, referindo-se apenas a alguns – aos trabalhadores, por exemplo.
Fica evidente, da crítica tecida, que a universalidade dos direitos fundamentais precisa ser compreendida na medida de à qual categoria de pessoas eles estão direcionados, havendo, nesse peculiar aspecto, direitos que incidirão de forma geral, enquanto outros apenas a grupos específicos.
Impende destacar, ainda, a característica da relatividade. Essa é de suma importância para o presente trabalho, mormente em razão do peculiar aspecto que parece assumir a presunção de inocência no ordenamento jurídico brasileiro (direito fundamental absoluto). Vale dizer, por indispensável, que o assunto será mais bem detalhado no próximo tópico.
Assim, seguindo a análise, cumpre trazer as lições do retro mencionado autor (2011, pág. 162), segundo o qual:
Tornou-se voz corrente na nossa família do Direito admitir que os direitos fundamentais podem ser objeto de limitações, não sendo, pois, absolutos. Tornou-se pacífico que os direitos fundamentais podem sofrer limitações, quando enfrentam outros valores de ordem constitucional, inclusive outros direitos fundamentais. Prieto Sanchis noticia que a afirmação de que “não existem direitos ilimitados se converteu quase em cláusula de estilo na jurisprudência de todos os tribunais competentes em matéria de direitos humanos”
É de se concluir, assim, que a característica da relatividade guarda íntima relação com a ideia de coexistência de direitos. Diante dessa premissa, não há com ser negada a necessidade de limitar direitos quando em confronto com outros de mesma natureza, pois, do contrário, estar-se-ia diante de um ordenamento jurídico incoerente e fadado à ruptura.
É nessa linha, inclusive, as lições de George Marmelstein (2014, pág. 366). Ainda que de forma excepcional, Bonavides (2012, pág. 579-580) também reconhece tal possibilidade. Aliás, é lícito antecipar, a possibilidade de cumprimento de pena após condenação em segundo grau de jurisdição não constitui propriamente uma relativização.
Registradas essas informações, ainda deve-se assinalar que os direitos fundamentais também possuem a nota da historicidade, na medida que estão ligados a um determinado contexto histórico. É nessa senda, inclusive, que se pode falar em gerações de direitos (tema que não será abordado por fugir ao assunto do trabalho ora apresentado) (BRANCO, 2011).
Cumpre, ainda, tecer considerações sobre a característica da inalienabilidade. Diz respeito, etimologicamente falando, à impossibilidade de alienação desses direitos. Conforme os ensinamentos de Branco (2011, pág. 165):
Os autores que sustentam a tese da inalienabilidade afirmam que ela resulta da fundamentação do direito no valor da dignidade humana – dignidade que costumam traduzir como consequência da potencialidade do homem de ser autoconsciente e livre. Da mesma forma que o homem não pode deixar de ser homem, não pode ser livre para ter ou não dignidade, o que acarreta que o Direito não pode permitir que o homem se prive da sua dignidade.
Pode-se pensar, do exposto, que haveria aí uma contradição em face da nota de serem os direitos fundamentais relativos. Na verdade, ela é apenas aparente, posto que a inalienabilidade diz respeito, mais especificamente, a atos voluntários de alienação de direitos, enquanto a relatividade se liga, mais intimamente, à possibilidade de restrição de direitos diante de conflitos em um dado caso concreto.
À vista disso, tome-se, agora, algumas considerações sobre a nota da indisponibilidade. Inobstante guardar margem de semelhança com a inalienabilidade, com ela não se confunde. Nesse peculiar aspecto, são preciosas as lições de Branco (2011, pág. 165), na medida em que aduz:
Uma vez que a indisponibilidade se funda na dignidade humana e esta se vincula à potencialidade do homem de se autodeterminar e de ser livre, nem todos os direitos fundamentais possuiriam tal característica. Apenas os que visam resguardar diretamente a potencialidade do homem de se autodeterminar deveriam ser considerados indisponíveis. Indisponíveis, portanto, seriam os direitos que visam resguardar a vida biológica – sem a qual não há substrato físico para o conceito de dignidade – ou que intentem preservar as condições normais de saúde física e mental bem como a liberdade de tomar decisões sem coerção externa.
Dessa forma, pode se perceber que existe margem possível de disponibilidade de alguns direitos fundamentais. Exemplo clássico, cumpre assinalar, é o da disposição do próprio corpo para fins científicos, prevista no Art. 14 do Código Civil, Lei 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Dessa forma, cumpre reconhecer, não se pode falar que todos os direitos fundamentais seriam indisponíveis.
Cumpre, doravante, tecer considerações sobre a vinculação dos poderes públicos, posto que, quanto à constitucionalização, já se falou quando fora registrado que os direitos fundamentais estão ligados à ideia de direitos positivados em um dado ordenamento jurídico, por meio da Constituição.
À vista disso, cumpre trazer, mais uma vez, as lições de Branco (2011, pág. 167), segundo o qual “O fato de os direitos fundamentais estarem previstos na Constituição torna-os parâmetros de organização e de limitação dos poderes constituídos” em suas diferentes esferas, quais sejam, o Executivo, o Legislativo e o Judiciário. Em razão disso, ficam vinculados na medida em que são limitados pelo dever de respeito aos Direitos Fundamentais previstos na Constituição Federal.
Além do mais, e aqui já se entra na última característica abordado pelo autor, os Direitos Fundamentais possuem aplicabilidade imediata. Sobre o assunto, eis as lições de Branco (2011, pág. 173) segundo o qual:
Verifica-se marcado zelo nos sistemas jurídicos democráticos em evitar que as posições afirmadas como essenciais da pessoa quedem como letra morta ou que só ganhem eficácia a partir da atuação do legislador. Essa preocupação liga-se à necessidade de superar, em definitivo, a concepção do Estado de Direito formal, em que os direitos fundamentais somente ganham expressão quando regulados por lei, com o que se expõem ao esvaziamento de conteúdo pela atuação ou inação do legislador.
E é justamente nessa linha de preocupação que exsurgiu a necessidade de garantir que os direitos fundamentais possuíssem aplicabilidade. Tal particularidade, vale o destaque, está reconhecida no nosso ordenamento jurídico por meio da Constituição Federal no seu Art. 5º, §1º da CRFB/88, sendo inclusive cláusula pétrea, conforme o art. 60, §4º, IV, da CRFB/88. À vista disso, vencidas essas questões propedêuticas, passar-se-á, doravante, a algumas tessituras sobre a presunção de inocência no ordenamento jurídico brasileiro.