“Toda ação humana, quer se torne positiva ou negativa, precisa depender de motivação”. Dalai Lama
RESUMO
O presente ensaio jurídico tem por objetivo precípuo analisar a constitucionalidade da internação compulsória, como recurso para solucionar o problema do dependente químico de drogas ilícitas no Brasil. Ao analisar a questão da internação compulsória buscou-se discutir a aplicação do instituto, assegurando ao dependente químico os direitos fundamentais insculpidos na Constituição Federal de 1988, mais especificamente o direito à vida, à liberdade e à dignidade da pessoa humana. Metodologicamente realizou-se a pesquisa de cunho teórico-dogmático, composta de estudo bibliográfico, revisão de literatura sobre o tema. O estudo buscou ainda tecer considerações sobre a problemática das drogas ilícitas no Brasil; as políticas públicas voltadas para a solução da epidemia que se desenvolve nas cidades brasileiras. O estudo será dividido em 5 capítulos. O primeiro abordará a questão dos direitos e garantias fundamentais, conceitos características e classificação de tais direitos. O segundo se propõe a debater os princípios jurídicos basilares assegurados pela Constituição de 1988; o terceiro capítulo discutiu-se o instituto da internação compulsória, assim como a evolução do uso de drogas no Brasil. Em um quarto momento adentrou-se na questão da responsabilidade do Estado, da Sociedade e da Família. Finalmente, o estudo em tela teceu considerações pertinentes sobre a eficácia da internação compulsória, entendendo que o problema dos dependentes químicos de drogas ilícitas é hoje uma epidemia, e que ações governamentais e sociais precisam ser desenvolvidas.
Palavras-chave: Internação; Compulsória; dependentes; drogas; ilícitas.
Abstract
This monograph aimed to examine the constitutionality of compulsory admission, as a resource to resolve the problem of chemical dependent of illicit drugs in Brazil. In examining the issue of compulsory internment sought to discuss the application of the Institute, ensuring the fundamental rights insculpidos chemical-dependent on the Federal Constitution of 1988, more specifically the right to life, liberty and dignity of the human person. Methodologically there will be theoretical research-dogmatic, composed of bibliographic study, review of the literature on the topic. The study sought to weave yet considerations for problem of illegal drugs in Brazil; the public voted for the solution of the epidemic that develops in Brazilian cities. The study will be divided into 5 chapters. The first addressed the issue of the fundamental rights and guarantees, concepts, characteristics and classification of such rights. The second is to debate the princ.
Key words: Hospitalization; mandatory; dependents; drugs; illicit.
SUMÁRIO. 1. INTRODUÇÃO. 2. DOS DIREITOS E GARANTIAS FUNDAMENTAIS. 2.1 Conceito. 2.2 Dimensões de Direitos Fundamentais. 2.2.1 Direitos Fundamentais de Primeira Dimensão. 2.2.2.Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão. 2.2.3 Direitos Fundamentais de Terceira Dimensão. 2.2.4 Direitos Fundamentais de Quarta Dimensão. 2.3 Características dos Direitos e Garantias Fundamentais. 2.4 Classificação dos Direitos Fundamentais. 2.4.1 Dos Direitos Individuais e Coletivos. 3. PRINCÍPIOS JURÍDICOS BASILARES. 3.1 Direito à Vida. 3.2 A Dignidade da Pessoa Humana. 3.3 Direito à Liberdade. 4. INTERNAÇÃO COMPULSÓRIA. 4.1 A Evolução do Uso de Drogas Ilícitas no Brasil. 4.2 Internação Voluntária, Involuntária e Compulsória. 4.3 Responsabilidade do Estado, da Sociedade e da Família. 5. CONSTITUCIONALIDADE DA INTERNAÇÃO COMPULSÓRIA DOS USUÁRIOS DE DROGAS. 5.1 Políticas Públicas para o Tratamento do Dependente Químico. 5.2 A Internação Compulsória como Forma de Combate às Drogas. 6. CONSIDERAÇÕES FINAIS. Referências.
1. INTRODUÇÃO
A reflexão acadêmica será sempre motivada pelas mudanças vivenciadas pela sociedade; e os profissionais do Direito, acadêmicos, juristas serão sempre desafiados a pesquisar, debater e analisar as diversas condutas provocadas pelas novas situações ou relações pelas quais passa o sujeito enquanto membro dessa sociedade.
Necessário perceber, a propósito, que muito se tem dito sobre os desafios que tomam vulto ao debate jurídico, o consumo de drogas ilícitas pelos sujeitos toxicômanos no cenário contemporâneo, uma vez que assiste-se à proliferação do vício e os seus tratamentos, por vezes polêmicos, e, a proclamação das inúmeras tentativas de soluções para o caso em espécie, que enriquecem o debate jurídico. Contudo, não se pode ficar apenas confinado no debate. Necessário se faz apontar solução. É que, assiste-se, hodiernamente a uma verdadeira epidemia nas cidades brasileiras, principalmente nos grandes centros urbanos, nos quais as cracolândias se multiplicam. Não se pode negar a velocidade do crescimento de viciados em drogas ilícitas e a Ciência do Direito deve dar uma resposta a este caos social.
O estudo aqui desenvolvido objetivou discutir o instituto da internação compulsória do dependente químico de drogas ilícitas e se essa medida viola direitos constitucionais garantidos ao individuo.
Tomou-se como fundamento inicialmente a ideia de que a dependência química de drogas ilícitas é um problema mundial, enorme, que atinge famílias de todas as classes sociais. Tal questão parece de difícil solução, justamente, no mundo contemporâneo marcado por um niilismo, isto é, ausência de valores sem precedentes na História da humanidade.
É de incerteza e precariedade a situação do homem contemporâneo. Lembra a história de um andarilho que há muito caminha numa área congelada, e, de repente com o degelo, se vê surpreendido pelo chão que começa a se partir em mil pedaços. Rompida a estabilidade dos valores e os conceitos tradicionais, torna-se difícil prosseguir o caminho. (VOLPI, 1999, p. 8-11).
Quando se aborda a questão da internação compulsória é preciso o entendimento que o tema é divergente desde o início da discussão. Isso se deve ao fato de que muitos acreditam ser este o último recurso para resolver um problema sem solução; e que o dependente na maioria das vezes não está apto a entender que sofre de uma doença e que precisa de ajuda; no entanto muitos outros acreditam que ao se internar alguém sem seu consentimento, estariam sendo violados direitos básicos como a liberdade.
O presente estudo foi dividido em quatro capítulos, o primeiro capitulo abordou a questão dos direitos e garantias fundamentais, conceitos, características e classificação destes.
O segundo capitulo se propôs a discutir os princípios jurídicos basilares assegurados pela Constituição de 1988, como o direito à vida; à dignidade da pessoa humana; à liberdade.
No terceiro capitulo discutiu-se o instituto da internação compulsória; assim como a evolução do uso de drogas no Brasil; discutiu-se a responsabilidade do estado, da sociedade e da família.
O quarto capitulo foi desenvolvido com base na questão constitucional da internação compulsória dos usuários de drogas ilícitas; buscando abordar as políticas públicas focadas para o tratamento do dependente químico; e a internação compulsória como forma de combate às drogas.
Metodologicamente realizou-se pesquisa de cunho teórico-dogmático e, ainda, questões de neoconstitucionalismo que compreende a Constituição como estrutura de normas abertas. Compõe-se de estudo bibliográfico, documental, qualitativo, quantitativo; a partir de discussões doutrinárias, revisão da literatura sobre o tema ora proposto, inventário minucioso de publicações e artigos on-line, fóruns, artigos em revistas jurídicas e de educação, livros, objetivando compor os fundamentos do trabalho teórico.
. Finalmente o estudo em tela, teceu considerações pertinentes à questão das drogas ilícitas no Brasil, assim como da necessidade de novos debates e discussões sobre o instituto da internação compulsória como sendo um recurso eficiente para sanar o problema dos dependentes químicos de drogas ilícitas.
2. DOS DIREITOS E GARANTIAS FUNDAMENTAIS
2.1. Conceito
Ainda que o Ordenamento Pátrio e os principais doutrinadores nacionais não apresentem um conceito sedimentado de direitos fundamentais, a Constituição de 1988 inaugurou uma era de amplo respeito por esses direitos e profundo reconhecimento de sua efetividade.
Ao contrário das Constituições anteriores, a Constituição de 1988 positivou os referidos direitos no início de suas disposições (Titulo II), demonstrando a real preocupação com o ser humano, como figura maior dentro do Estado Democrático de Direito.
Nesse sentido, a Constituição de 1988, classifica o gênero direitos e garantias fundamentais em cinco espécies, a saber:
- Direitos individuais;
- Direitos coletivos;
- Direitos sociais;
- Direitos à nacionalidade;
- Direitos políticos.
Alexandrino e Vicente (2010, p. 35) destacam que os primeiros direitos fundamentais têm sua origem ligada a uma necessidade de se impor limites e controles aos atos praticados pelo Estado e suas autoridades constituídas.
Nasceram, pois, como uma proteção à liberdade do individuo frente à ingerência abusiva do Estado. Por esse motivo – exigirem uma abstenção, um não fazer do Estado em respeito à liberdade individual – são denominados direitos negativos, liberdades negativas, ou direitos de defesa. (ALEXANDRINO&VICENTE, 2010, p.35)
Logo, pode-se inferir que os direitos fundamentais surgiram como normas que buscam limitar a atuação do Estado, exigindo deste uma abstenção em favor de um bem maior, a liberdade do individuo, permitindo a este maior autonomia individual frente à ação do Estado.
Cumpre antes de adentrar-se na evolução dos direitos fundamentais em suas denominadas dimensões, fazer uma breve diferenciação entre direitos e garantias fundamentais.
A Constituição de 1988 em seu artigo 5º trata dos direitos e deveres individuais e coletivos, espécie do gênero direitos e garantias fundamentais (Título II). Nesse sentido, ainda que faça referência de modo expresso, apenas a direitos e deveres, elencou e consolidou também as garantias fundamentais.
Pedro Lenza destaca que:
Um dos primeiros estudiosos a enfrentar esse tormentoso tema foi o sempre lembrado Rui Barbosa, que, analisando a Constituição de 1891, distinguiu “as disposições meramente declaratórias, que são as que imprimem existência legal aos direitos reconhecidos, e as disposições assecuratórias, que são as que, em defesa dos direitos, limitam o poder. Aquelas instituem os direitos, estas as garantias; ocorrendo não raro juntar-se, na mesma disposição constitucional, ou legal, a fixação da garantia, com a declaração do direito. (LENZA, 2012, p.589)
A partir de tal conceituação, entende o autor que pode-se definir os direitos como bens e vantagens prescritos na norma constitucional, enquanto as garantias são os instrumentos através dos quais se assegura o exercício dos aludidos direitos (preventivamente) ou prontamente os repara, caso violados.
Após este breve esboço doutrinário, no qual foram tangenciadas cinco categorias do Direito Constitucional brasileiro, organizados de acordo com a vontade do poder constituinte originário. Ainda, de grande importância imediata para o presente trabalho, são os estudos das Gerações dos Direitos Fundamentais, hodiernamente, chamados: Dimensões.
2.2. Dimensões de Direitos Fundamentais
Tradicionalmente, os direitos fundamentais são classificados em gerações ou dimensões; a teoria da geração de direitos foi desenvolvida pelo então jurista Tcheco, naturalizado Francês Karel Vasak, em 1979; tendo como base o lema da Revolução Francesa, igualdade, liberdade e fraternidade. Passa-se, em seguida, ao estudo das Dimensões de Direitos Fundamentais e as suas fontes.
2.2.1. Direitos Fundamentais de Primeira Dimensão
Compreendem as liberdades negativas clássicas, que realçam o principio da liberdade. Lenza (2012) destaca que fatos históricos como a Carta Magna de 1215, assinada pelo rei “João Sem Terra”; Paz de Westfália (1648); Habeas Corpus Act (1679); Bill of Rights (1688); foram decisivos para o surgimento daquilo que se nomeou primeira dimensão. Referidos direitos dizem respeito às liberdades públicas e aos direitos políticos, ou seja, direitos civis e políticos a traduzirem o valor de liberdade.
A propósito, em seguida, colocam-se os Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão, o que se justifica por ser a própria obtenção histórica dos Direitos Constitucionais advindos da: Revolução Industrial e seus conflitos. É o Estado do Bem Estar Social ou Walfere Sate. Passa-se, desse modo, à análise dos Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão.
2.2.2. Direitos Fundamentais de Segunda Dimensão
A segunda dimensão busca sua inspiração na Revolução industrial européia a partir do século XIX. Período marcado pela insatisfação da classe trabalhadora com as precárias condições de vida e de trabalho.
Alexandrino e Vicente pontuam que:
Os direitos fundamentais de segunda geração correspondem aos direitos de participação, sendo realizados por intermédio da implementação de políticas e serviços públicos, exigindo do Estado prestações sociais, tais como saúde, educação, trabalho, habitação, previdência social, assistência social, entre outros. (ALEXANDRINO&VICENTE, 2010, p. 38)
Portanto, são os direitos positivos, que privilegiam os direitos sociais, culturais e econômicos, correspondendo, nesse sentido, aos direitos de igualdade.
Nesse sentido, busca-se em seguida abordar os Direitos Fundamentais de Terceira Dimensão, o que se justifica pelo fato destes não estarem relacionados individualmente, e tampouco, a determinada classe social, mas entrelaçados a interesses de coletividade.
2.2 3. Direitos Fundamentais de Terceira Dimensão
A terceira dimensão está diretamente ligada às mudanças e transformações da sociedade, principalmente as tecnológicas e cientificas. Somando-se as mudanças na população, entendida como sendo a sociedade de massa.
Novos problemas e preocupações mundiais surgem, tais como a necessária noção de preservacionismo ambiental e as dificuldades para proteção dos consumidores, só para lembrar aqui dois candentes temas. O ser humano é inserido em uma coletividade e passa a ter direitos de solidariedade. (LENZA, 2012, p.589)
Nesse sentido, é possível perceber que esta geração consagra os princípios de solidariedade e da fraternidade, “representam uma nova e relevante preocupação com as gerações humanas presentes e futuras.” (ALEXANDRINO&VICENTE, 2010)
Como consequência dos novos paradigmas da sociedade como a globalização e a criação do Estado Neoliberal, existe uma tendência de se buscar uma quarta dimensão de direitos o que se justifica por contemplar o direito ao pluralismo e o direito à informação.
2.2.4. Direitos Fundamentais de Quarta Dimensão
Pontua Pedro Lenza (2012) que conforme Norbetto Bobbio, referida geração de direitos decorreria dos avanços no campo da engenharia genética, uma vez que esses avanços colocariam em risco a própria existência humana, pois manipula-se o patrimônio genético.
Já se apresentam novas exigências que só poderiam chamar-se de direitos de quarta geração, referentes aos efeitos cada vez mais traumáticos da pesquisa biológica, que permitirá manipulações do patrimônio genético de cada indivíduo. (BOBBIO, 1992 apud LENZA, 2012, p. 589).
Pelo exposto, percebe-se que as dimensões acompanham as constantes e frequentes transformações pelas quais a sociedade sofre; o que leva ao surgimento de novos direitos com o objetivo de suprir as necessidades dos indivíduos no convívio social.
No tocante às dimensões dos direitos fundamentais já mencionados, cumpre destacar que há características de direitos e garantias fundamentais que devem ser discutidos, visto que aludidos direitos dizem respeito ao ser humano e às condições em que o mesmo vive e as constantes mudanças da sociedade e o aparecimento de novos direitos.
2.3. Características dos Direitos e Garantias Fundamentais
Inúmeras são as características pertinentes aos direitos e garantias fundamentais quando se aborda sua aplicação no mundo fático. Araújo e Nunes Júnior (1989) apud Lenza (2012, p. 590) definem características que norteiam estes direitos, a saber:
- Historicidade: possuem caráter histórico, nascendo com o Cristianismo, passando pelas diversas revoluções e chagando aos dias atuais.
- Universalidade: destinam-se, de modo indiscriminado, a todos os seres humanos.
A ideia de se estabelecer por escrito um rol de direitos em favor de indivíduos, de direitos que seriam superiores ao próprio poder que os concedeu ou reconheceu, não é nova. Os forais, as cartas de franquia continham enumeração de direitos com esse caráter já na Idade Média. (FILHO, 1999 p. 185).
- Limitabilidade: os direitos fundamentais não são absolutos (relatividade), havendo, muitas vezes, no caso concreto, confronto, conflito de interesses. A solução ou vem discriminada na própria Constituição (ex: direito de propriedade versus desapropriação), ou caberá ao intérprete, ou magistrado, no caso concreto, decidir qual direito deverá prevalecer, levando em consideração a regra da máxima observância dos direitos fundamentais envolvidas, conjugando-a com a sua mínima restrição.
- Concorrência: podem ser exercidos cumulativamente, quando, por exemplo, o jornalista transmite uma notícia (direito de informação) e, juntamente, emite uma opinião (direito de opinião).
- Irrenunciabilidade: o que pode ocorrer é o seu não-exercício, mas nunca a sua renunciabilidade.
- Inalienalibilidade: como são conferidos a todos; são indisponíveis, não se pode aliená-los por não terem conteúdo econômico-patrimonial.
- Imprescritibilidade: prescrição é um instituto jurídico que somente atinge, coarctando, a exigibilidade dos direitos de caráter patrimonial, não a exigibilidade dos direitos personalíssimos, ainda que não individualistas, como é o caso. Se não sempre exercíveis e exercidos, não há intercorrência temporal de não-exercício que fundamente a perda da exigibilidade pela prescrição.
Importante destacar que esse rol de características não se faz taxativo, uma vez que os direitos fundamentais devam ser vistos como normas abertas (princípio da não tipicidade dos direitos fundamentais), permitindo assim que se insiram novos direitos, ainda que não previstos pelo constituinte pátrio a época da elaboração da Constituição, no âmbito de direitos já existentes. (ALEXANDRINO&VICENTE, 2010, p.37).
Partindo do entendimento de que os direitos fundamentais têm o objetivo primeiro de promover a liberdade do ser humano, assim como buscar combater atos de opressão e cerceamento contra o individuo, ou seja, direitos essenciais à promoção da dignidade da pessoa humana, faz mister buscar classificar tais direitos para maior compreensão de seus papéis no Estado Democrático de Direito.
2.4. Classificação dos Direitos Fundamentais
Os direitos fundamentais foram concebidos á luz de valores universais e morais, buscando assegurar uma vida digna aos indivíduos, independente de sua cultura, crença, sexo, cor e raça.
2.4.1 Dos Direitos Individuais e Coletivos
Em seu artigo 5º, a Constituição de 1988 elenca os direitos individuais e coletivos. Importante diferenciá-los ainda que consonantes no sentido de que, entende-se serem direitos individuais os que visam à defesa de uma autonomia pessoal no âmbito da qual o individuo busque desenvolver as suas potencialidades e gozar de sua liberdade sem interferência indevida do Estado e do particular. Em outra esfera, compreende-se que os direitos coletivos destinam-se, não à tutela da autonomia da pessoa em si, mas à proteção de um grupo ou coletividade, no qual a defesa de seus membros é apenas reflexa ou indireta.
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade.
Pode-se inferir do dispositivo constitucional que o constituinte buscou estabelecer normas que preservassem o respeito ao ser humano e a seu próximo como condição de vivência digna entre todos, respeitando a condição humana.
Conclusa a explicação dos Direitos Individuais e Coletivos assentados no Artigo 5º da Constituição Federal de 1988, passa-se aos Princípios Jurídicos Basilares.
3. PRINCÍPIOS JURÍDICOS BASILARES
A Constituição de 1988 abriu um período de inovação e defesa do ser humano ao elencar inúmeros direitos basilares, que ainda que entendidos como inerentes ao indivíduo, passíveis de proteção constitucional.
3.1 Direito à Vida
Etimologicamente a palavra vida recebe inúmeras conceituações; segundo o Dicionário Michaelis, dentre essas pode-se enumerar a saber;
I - Atividade interna substancial por meio da qual atua o ser onde ela existe;
II - Duração das coisas; existência;
III - Espaço de tempo em que se mantém a organização dos seres viventes.
Independente de qual seja sua definição o direito à vida é o primeiro dos direitos naturais, logo seu caráter inviolável, intemporal e universal. A constituição de 1988, no artigo 5º garante “a inviolabilidade do direito à vida”.
A Convenção Americana sobre Direitos Humanos, assinada na Conferência Especializada Interamericana sobre Direitos Humanos, São José, da Costa Rica, de 1969, da qual o Brasil é signatário assevera em seu artigo 4 que:
1. Toda pessoa tem o direito de que se respeite sua vida. Esse direito deve ser protegido pela lei e, em geral, desde o momento da concepção. Ninguém pode ser privado da vida arbitrariamente.
A leitura dos referidos institutos leva ao entendimento de que é responsabilidade de todos os governantes assegurarem o direito a uma vida digna, garantindo-se as necessidades vitais básicas do ser humano, proibindo qualquer tratamento indigno.
O direito à vida é o mais fundamental direito tutelado pelo ordenamento jurídico. Mais do que essencial, é um direito "essencialíssimo", porque dele dependem todos os outros direitos, razão pela qual a sua proteção se dá em todos os planos do ordenamento: no direito civil, penal, constitucional, internacional etc. Como bem lembra Luiz Edson Fachin, o direito à vida é "condição essencial de possibilidade dos outros direitos. Desenvolve-se aí a concepção da supremacia da vida humana e que, para ser entendida como vida, necessariamente deve ser digna". (DELGADO, 2016)
O reconhecimento da vida como bem maior é pressuposto para o exercício e obtenção de todos os demais direitos.
Mas o homem não é uma coisa; não é portanto um objeto que possa ser utilizado simplesmente como um meio, mas pelo contrário deve ser considerado sempre em todas as suas ações como fim em si mesmo. Portanto não posso dispor do homem na minha pessoa para o mutilar, o degradar ou o matar. (KANT, 2007, p.70)
Logo, faz-se necessário abordar o segundo direito assegurado na Constituição de 1988, Dignidade da Pessoa Humana, por ser este extensão do Direito à Vida.
3.2. A Dignidade da Pessoa Humana
Em sua Fundamentação da Metafísica dos Costumes, Kant (2007, p.69), afirma que “age de tal maneira que uses a humanidade, tanto na tua pessoa como na pessoa de qualquer outro, sempre e simultaneamente como fim e nunca simplesmente como meio”.
Com base em tal definição pode-se compreender que para Kant, além de compreender que é detentor de dignidade, o ser humano deve estender este entendimento a todos os demais seres humanos, buscando a sua defesa frente a qualquer lesão que a coloque em risco.
A dignidade é um valor espiritual e moral inerente à pessoa, que se manifesta singularmente na autodeterminação consciente e responsável da própria vida e que traz consigo a pretensão ao respeito por parte das demais pessoas, constituindo-se um mínimo invulnerável que todo estatuto jurídico deve assegurar, de modo que, somente excepcionalmente, possam ser feitas limitações ao exercício dos direitos fundamentais, mas sempre menosprezar a necessária estima que merecem todas as pessoas enquanto seres humanos. (MORAES, 2014, p. 54)
A Constituição de 1988 elenca como um dos fundamentos do Brasil enquanto Estado Democrático de Direito, a dignidade da pessoa humana. Dispõe o artigo 1º, III, in verbis:
A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:
III- a dignidade da pessoa humana.
Por todo o elencado, entende-se que o princípio da dignidade da pessoa humana é fundamento para todos os demais que dele advém, incluindo aquilo que é objeto constante de busca pelos seres humanos ao longo de sua evolução, a liberdade em todas as suas manifestações dentro da sociedade.
3.3. Direito à Liberdade
O direito à liberdade consiste na prerrogativa fundamental que investe o ser humano de um poder de autodeterminação ou de determinar-se conforme a sua própria consciência.
Não basta que atribuamos liberdade à nossa vontade, seja por que razão for se não tivermos também razão suficiente para a atribuirmos a todos os seres racionais. Pois como a moralidade nos serve a lei somente enquanto somos seres racionais, tem ela que valer também para todos os seres racionais; e como não pode derivar-se senão da propriedade da liberdade, tem que ser demonstrada a liberdade como propriedade da vontade de todos os seres racionais, e que não basta verificá-la por certas supostas experiências da natureza humana (se bem que isto seja absolutamente impossível e só possa ser demonstrado a priori), mas sim temos que demonstrá-la como pertencente à atividade de seres racionais em geral e dotados de uma vontade. (KANT, 2007, p. 95).
A liberdade é nesse sentido algo que só seria possível a partir das atitudes e ações dos seres humanos, dotados de vontades, porém, para que essa liberdade seja efetiva e real não pode estar fundamentada no único ser; mas em todos enquanto sociedade.
O ordenamento pátrio elenca em seu artigo 5º, inúmeros incisos que asseguram as múltiplas liberdades a serem preservadas e defendidas em território nacional. Compreende inúmeras liberdades fundamentais, a saber:
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
IV - é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato;
VI - é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e as suas liturgias;
IX - é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença;
XIII - é livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer;
XV - é livre a locomoção no território nacional em tempo de paz, podendo qualquer pessoa, nos termos da lei, nele entrar, permanecer ou dele sair com seus bens;
XVII - é plena a liberdade de associação para fins lícitos, vedada a de caráter paramilitar;
LIV - ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal;
LXVI - ninguém será levado à prisão ou nela mantido, quando a lei admitir a liberdade provisória, com ou sem fiança;
Pode-se inferir que o constituinte de 1988 buscou garantir o direito a liberdade em todos os segmentos, desde os mais básicos como a inviolabilidade do lar, aos mais complexos como a liberdade daqueles que ainda que em desrespeito a uma lei do ordenamento nacional venha ser preso.
Montesquieu definiu a liberdade como algo que consiste em se poder fazer aquilo que as leis permitem, logo, a liberdade advinda da Constituição seria fundamento da liberdade do cidadão, uma vez que “a liberdade é o direito de fazer tudo quanto às leis permitem; e, se um cidadão pudesse fazer o que elas proíbem, não mais teria liberdade, porque os outros teriam idêntico poder.” (MONTESQUIEU, 1997)
A percepção de que a liberdade, a dignidade da pessoa humana e a vida devam ser os pilares de uma sociedade que busca respeitar o ser humano, como seu bem maior, frequentemente é confrontada com decisões que de alguma forma são vistas como cerceamento desses direitos assegurados pela Constituição.
Nesse sentido, fez-se necessário abordar e adentrar nas questões atinentes à internação involuntária ou compulsória de dependentes químicos frente aos princípios basilares do ordenamento pátrio.
4. INTERNAÇÃO COMPULSÓRIA
4.1 A Evolução do Uso de Drogas Ilícitas do Brasil.
O uso de droga no Brasil vem suscitado inúmeros debates e pesquisas nos diversos segmentos da sociedade. Mais do que uma questão penal, muitos entendem que este é um problema social e acima de tudo de saúde.
A propagação descontrolada do uso de drogas no Brasil trouxe de volta à realidade brasileira a prática da internação involuntária, algo que não se via há mais de 30 anos com tanta frequência, com o advento das leis antimanicomiais instituídas no País desde a década de 80.
O Brasil é o segundo maior consumidor de cocaína e derivados, atrás apenas dos Estados Unidos, de acordo com o segundo Levantamento Nacional de álcool e drogas (LENAD), realizado pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), o referido estudo, mostra que o país responde hoje por 20% do mercado mundial da droga.
Pelo exposto pode-se perceber que o problema da dependência química tem proporções enormes no Brasil e visivelmente um fenômeno de difícil solução.
Ainda que diversos sejam os tipos de drogas espalhados pelo Brasil, no entanto o crack é considerado o maior de todos os males relacionados à dependência química, isso pode ser comprovado pelos números alarmantes do crescimento das cracolândias pelo País. Segundo Manso (2011), em 17 capitais brasileiras, já existe atualmente 29 cracolândias com alta concentração de consumidores. Estas se caracterizam como sendo itinerantes e vão se movimentando conforme as ações da polícia e brigas entre traficantes. Destaca-se ainda que nenhuma capital se compara a São Paulo.
Mapeamento realizado pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), entre 2011 a 2013, com mais de 32.359 pessoas, sendo que 24.977 responderam ao questionário nos próprios domicílios e 7.381, nos locais de uso de droga, destaca que cerca de 20% dos frequentadores das chamadas cracolândias são mulheres. (O DIA/2014).
Ao se defrontar com números cada vez maiores de dependência química e muitas vezes a incapacidade do dependente em buscar ajuda para dirimir seu problema, a internação compulsória para muitos parece ser a única solução, no entanto esta opção tem suscitado inúmeros debates e polêmicas, o que faz necessário abordar as diferenças conceituais sobre o tema.
4.2 Internação Voluntária, Involuntária e Compulsória
Mister se faz antes de adentrar nas questões conceituais fazer alusão ao dispositivo legal atinente à internação no Brasil, a Lei 10.216 de 2001, que trata sobre a proteção e direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais elenca tipos de internações previstos e seus requisitos, a saber:
Art. 6o A internação psiquiátrica somente será realizada mediante laudo médico circunstanciado que caracterize os seus motivos.
Parágrafo único. São considerados os seguintes tipos de internação psiquiátrica:
I - internação voluntária: aquela que se dá com o consentimento do usuário;
II - internação involuntária: aquela que se dá sem o consentimento do usuário e a pedido de terceiro; e
III - internação compulsória: aquela determinada pela Justiça.
Pelo exposto entende-se ser voluntaria a internação na qual o usuário tem consciência do que irá ocorrer e consente com essa ação. Nesse sentido, pontua Santoro Filho (2012, p.41), que a internação voluntaria, também chamada de consentida, se dá com o consentimento do usuário que, para tanto deverá assinar uma declaração de que optou por esse regime de tratamento, sob pena de ser considerada involuntária. Destaca ainda que o término da internação voluntária dar-se-á por solicitação escrita do próprio paciente ou por determinação do médico assistente, quando constatada a desnecessidade de sua continuidade.
Feitas as devidas considerações, passa-se à análise do instituto da internação involuntária ou compulsória, no qual residem os conflitos e debates do direito.
De acordo com a Lei 10.216/01, em seu artigo 9º, in verbis:
A internação compulsória é determinada de acordo com a legislação vigente, pelo juiz competente, que levará em conta as condições de segurança do estabelecimento, quanto à salvaguarda do paciente, dos demais internados e funcionários.
Frente à questão do dependente químico, que em fases avançadas de dependência, não possui condições de ser o senhor de seu próprio entendimento, cabe à família ou ao Estado interná-los, mesmo contra sua própria vontade; sendo justamente nesse momento que se abrem os debates frente aos preceitos de liberdade e dignidade da pessoa humana previstos na Constituição de 1988.
Destaca-se que, ainda que a Lei 10.2016 tenha sido publicada há mais de 10 anos, especificamente em 2001, somente a partir de 2011 a internação compulsória começa a ser efetivamente implantada.
O primeiro estado a firmar parcerias com o Tribunal de Justiça, o Ministério Público e a Ordem dos Advogados do Brasil, por meio de uma Comissão Antidrogas, foi o estado de São Paulo. (SOUZA&SILVA, 2014).
Por todo o exposto, por ser uma questão polêmica, uma vez que envolve princípios basilares como a vida e a dignidade da pessoa humana, a internação compulsória abre diversas discussões, entre elas a quem realmente cabe a responsabilidade em relação ao dependente químico, recairia sobre a família, ao Estado e a Sociedade em geral? Buscando responder a tal questionamento é que se busca analisar o papel de cada um desses segmentos, como será possível inferir a seguir.
4.3. Responsabilidade do Estado, da Sociedade e da Família
Incontestável que o problema da dependência química no Brasil deve ser algo a ser analisado e debatido em todos os segmentos da sociedade, além da família, Estado e Sociedade como um todo, é preciso à promoção de estudos e trabalhos sociais para prevenção das drogas, e não apenas o tratamento dos usuários.
Pesquisadores brasileiros, mais especificamente da Universidade Federal de São Paulo, divulgaram em 2014, o maior estudo mundial do perfil de famílias de dependentes de drogas do Brasil e as dimensões dos transtornos psicológicos e físicos causados aos parentes mais próximos ao usuário.
Antes de ser um mal social, a dependência química de drogas ilícitas causa danos e complicações no seio da família, primeiro segmento da sociedade a ser vítima dos resultados causados pelo uso de drogas.
O Levantamento Nacional de Família dos Dependentes químicos promovido pela Unifesp – Universidade Federal de São Paulo com mais de 3142 familiares de pacientes em tratamento ambulatorial ou internação traçou o perfil dos usuários e de suas famílias.
As famílias são predominantemente compostas ou dirigidas por mulheres, com idades que variam entre 17 e 65 anos. Sendo que mais da metade das responsáveis pelo tratamento do dependente são também “chefes” de família.
Segundo a pesquisa ao serem questionados sobre o que levou o familiar a usar drogas as respostas vão desde más companhias ao fato de terem nascido assim.
Como pode ser percebido, a questão da dependência química, não encontra um fator especifico que motive alguém a passar a fazer uso de drogas.
Além disso, a dependência desencadeia inúmeras consequências negativas no seio familiar, com impactos negativos e imprevisíveis nas relações interpessoais.
5. CONSTITUCIONALIDADE DA INTERNAÇÃO COMPULSÓRIA DOS USUÁRIOS DE DROGAS
5.1. Políticas Públicas para o Tratamento do Dependente Químico
Qual deve ser o comprometimento a ser avocado pela República Federativa do Brasil, quando se fala em políticas públicas brasileiras voltadas para a questão do dependente químico de drogas ilícitas no Brasil? Fazendo um breve recuo histórico é necessário destacar que até o início dos anos 90, estas estavam a cargo dos Centros de Referência Nacional. Vale frisar que assim como países do continente europeu, os Estados Unidos e Austrália, o Brasil voltou sua atenção para pessoas usuárias de drogas, a partir da ameaça advinda da epidemia de HIV/AIDS. (ANDRADE, 2011).
Nesse período surge um conjunto de políticas, práticas e programas que buscariam a redução dos danos gerados à saúde, ao meio social e econômico, advindos do uso de drogas ilícitas, denominado PRD – Programa de Redução de Danos. O objetivo do programa consistiria em beneficiar não só o usuário, mas também sua família e a comunidade.
Redução de danos complementa outras medidas que visam diminuir o consumo de drogas como um todo. É baseada na compreensão de que muitas pessoas em diversos lugares do mundo seguem usando drogas apesar dos esforços empreendidos para prevenir o início ou o uso contínuo do consumo de drogas. [...] É portanto essencial a existência de informações, serviços e outras intervenções de redução de danos que ajudem as pessoas a se manter seguros e saudáveis. (IHRA, 2010, p.1)
Pode-se perceber que inicialmente a redução de danos seria baseada em princípios de garantia a saúde pública e direitos humanos, primando pelo respeito e a tentativa de diálogo com os usuários.
Importante reiterar que o PRD, seria programa complementar; em contrapartida na seara estatal as primeiras ações efetivas ocorreram a partir da instituição da Resolução 03, de 2005, do CONAD – Conselho Nacional Antidrogas, que aprovou a Política Nacional sobre Drogas, apresentando pressupostos, objetivos e diretrizes.
A partir da Política Nacional sobre drogas ilícitas, em 2006, foi criado o SISNAD – Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas, tendo como objeto primeiro cumprir metas e estratégias elencadas na Lei 11.343/06.
Art. 3o O Sisnad tem a finalidade de articular, integrar, organizar e coordenar as atividades relacionadas com:
I - a prevenção do uso indevido, a atenção e a reinserção social de usuários e dependentes de drogas;
II - a repressão da produção não autorizada e do tráfico ilícito de drogas.
Nesse sentido ficaria a cargo da União o poder de instituição, e aos Estados e Municípios, seriam os executores dessas políticas.
Importante destacar que com o advento da Lei de Drogas (Lei 11.343/06) extingui-se a pena de prisão para o usuário e o dependente, ou seja, para aquele que tem droga ou planta para consumo pessoal. A legislação passa ainda a distinguir o traficante profissional do eventual, que trafica pela necessidade de obter a droga para o consumo próprio e que passou a ter direito a uma sensível redução de pena.
Por conseguinte, diversas tem sido as medidas legais, com o fim de obstaculizar a expansão do tráfico e da dependência de drogas ilícitas. Respectivamente, dois textos legais, foram editados em 2009 e em 2010 visando combater a epidemia, no território nacional, em torno das drogas ilícitas, principalmente, contra o estabelecimento da dominância do Crack.
O decreto 7179 de 2010 instituiu a Plano integrado de enfrentamento contra o crack e outras drogas ilícitas, tendo como objetivos:
Art. 2o São objetivos do Plano Integrado de Enfrentamento ao Crack e outras Drogas:
I - estruturar, integrar, articular e ampliar as ações voltadas à prevenção do uso, tratamento e reinserção social de usuários de crack e outras drogas, contemplando a participação dos familiares e a atenção aos públicos vulneráveis, entre outros, crianças, adolescentes e população em situação de rua;
II - estruturar, ampliar e fortalecer as redes de atenção à saúde e de assistência social para usuários de crack e outras drogas, por meio da articulação das ações do Sistema Único de Saúde - SUS com as ações do Sistema Único de Assistência Social - SUAS;
III - capacitar, de forma continuada, os atores governamentais e não governamentais envolvidos nas ações voltadas à prevenção do uso, ao tratamento e à reinserção social de usuários de crack e outras drogas e ao enfrentamento do tráfico de drogas ilícitas;
IV - promover e ampliar a participação comunitária nas políticas e ações de prevenção do uso, tratamento, reinserção social e ocupacional de usuários de crack e outras drogas e fomentar a multiplicação de boas práticas;
V - disseminar informações qualificadas relativas ao crack e outras drogas; e
VI - fortalecer as ações de enfrentamento ao tráfico de crack e outras drogas ilícitas em todo o território nacional, com ênfase nos Municípios de fronteira.
Pelos objetivos elencados pode-se perceber que o programa visa entender e disciplinar a questão da dependência química em drogas ilícitas como um problema de saúde pública. Logo, devendo-se buscar a redução de danos como princípio maior. Nesse diapasão cidades como Rio de Janeiro e São Paulo, onde se localizam os maiores índices de usuários de drogas ilícitas, começaram desde 2011 a recorrerem a um instituto polêmico, e que tem levado a muitos debates, a questão da internação compulsória ou involuntária de dependentes químicos.
5.2 A Internação Compulsória Como Forma de Combate às Drogas
Um dos traços mais marcantes e tristes na vida do dependente químico de drogas ilícitas, além da perda da sua vida simbólica, reside, exatamente, no tema escolhido para dissertação do final do curso de Direito: “a internação compulsória do dependente químico”. A questão da internação compulsória voltou ao debate midiático depois das iniciativas dos Estados de São Paulo e Rio de Janeiro, como recurso para retirada de dependentes químicos de drogas ilícitas das denominadas cracolândias, aliás, denominação rasteira e tosca oriunda do senso comum. É uma questão adicional das crenças populares. O senso comum devido à falta de conhecimento sistemático acerca das questões que dizem respeito à Ciência cria nomes infelizes e desumanos.
Medida polêmica divide opiniões nos diversos setores da sociedade, uma vez que para muitos, ao se buscar internar alguém de forma involuntária se estaria desrespeitando direitos basilares previstos na Constituição, como o direito à liberdade; em contrapartida há aqueles que veem neste instituto da internação a garantia de um bem maior, que seria o direito à vida.
A linha de raciocínio indicada aqui é sobre as condições, logicamente, necessárias e suficientes para salvaguardar a vida. Para que tal ocorra, entende-se que a atenção que deve ser oferecida à saúde do viciado e dependente de drogas ilícitas é a sua internação voluntaria. A corrente que propõe e defende a internação involuntária justifica tal medida extrema diante da incapacidade do viciado e dependente químico em discernir o certo e o errado. Tenciona necessariamente proteger a vida, que sua segregação da vida social e civil não é algo inadvertido. Em outras palavras, trata-se de uma medida deliberada por autoridades competentes. Dessa forma, por uma questão de necessidade conceitual, Franco leciona:
Quando a situação fática dos mais de 2 milhões de usuários apresenta um cenário degradado e insustentável, lançados na sarjeta à própria sorte, medidas como a internação compulsória ou involuntária podem ser plenamente adotadas dentro de um Estado de Direito em que todos são iguais perante a lei, garantidos o direito à vida e à liberdade. [...] Não há que se falar em ofensa ao princípio da dignidade humana, quando nada resta de dignidade à situação dessas pessoas. (FRANCO, 2016)
No entanto o citado autor pontua que o debate sobre a internação compulsória não deve ser pautado apenas no campo teórico. Reiterando que ao se analisar os dois lados da divergência; deve ter em mente que jamais o caso concreto deve ficar fora da discussão.
Necessário se faz aludir no sentido de que, a questão da internação compulsória ou involuntária de dependentes químicos não é um instituto atual e tão fora da realidade brasileira, uma vez que há muitos anos famílias mais abastadas, com condições financeiras para custear clinicas particulares já fazem isso com seus entes, ora dependentes.
Em contrapartida, os que não possuem recursos, e muitas vezes perderam qualquer vínculo familiar precisam de ações governamentais para que consigam sair da condição que estão vivendo. As ações desenvolvidas em buscam inicialmente o convencimento do usuário, evitando assim sua internação forçada.
Franco (2016) assevera que quando se fala em convencimento, os profissionais da saúde possuem a difícil tarefa de levar o dependente a pensar em sua real situação e aceitar ajuda. O trabalho desses profissionais consiste em uma aproximação realizada através de uma abordagem multidisciplinar; a ideia não é convencer o dependente a parar de usar drogas, mas a de reconstruir sua identidade se seu circulo de referência, que engloba o familiar, social e profissional. Nesse sentido a interrupção do uso de drogas, seria uma consequência da conscientização e da retomada desses valores.
Importante pontuar que mesmo aqueles que defendem a internação compulsória, reiteram que, a eficácia do processo só é possível com a estruturação das unidades de tratamento, uma vez que a quantidade de CAPS (Centro de Atendimento Psicossocial) e outras instituições destinadas a receber o dependente estão longe de atender a quantidade de viciados que perambulam pelas cidades brasileiras.
Ferreira (2013) complementa no sentido de que, a ideia da internação compulsória que se busca, da forma correta como deve ser realizada, não se pauta em mero recolhimento, privando o individuo de sua liberdade de forma arbitrária, sem lhe oferecer um tratamento médico multidisciplinar adequado; mas sim uma internação que possibilite desintoxicação, e atividades que abram caminho para a inserção na sociedade.
O principio constitucional estatuído no artigo 1º, inciso III, da Constituição de 1988: “dignidade da pessoa humana” é um valor de estrutura aberta, imprescindível norma constitucional, que demanda uma hermenêutica integradora e lúcida com o sistema jurídico brasileiro e está à disposição do processo de democratização do país. Tal principio fornece coerência e bom senso como valor metodológico e existencial para a Ciência do Direito.
6. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Quando se analisa a internação compulsória à luz da Constituição o impasse se torna ainda mais complexo, uma vez que os legisladores pátrios também divergem quanto à utilização ou não da medida. No entanto, os números alarmantes de dependentes levam a sociedade a exigir um posicionamento não só dos legisladores, uma vez que a maioria das decisões ainda busca regramento nas decisões dos tribunais em suas diversas esferas.
Nesse sentido, o estudo desenvolvido procurou examinar os direitos do dependente químico de drogas ilícitas enquanto indivíduo, mas também enquanto membro de uma família, sociedade e de um Estado Democrático de Direito.
Incontestável que a questão das drogas é um problema social, uma vez que atinge o individuo enquanto dependente em todos os segmentos de uma existência; uma vez que o usuário, com o intuito de dar vazão a seu vicio perde a consciência de princípios básicos inerentes ao homem médio enquanto membro de uma sociedade.
Assim sendo, o estudo demonstrou que por maior que seja a polêmica; o instrumento da internação compulsória passa a ser executado amplamente pelos órgãos públicos como último recurso para o problema das drogas no país; entendido pelos seus defensores não como um desrespeito a direitos constitucionais; ao contrário como sendo a garantia desses, uma vez que a saúde é um direito fundamental do individuo a ser amplamente garantido pelo Estado.
Após o estudo, por mais conflitante que seja o debate, mas à luz da Constituição e o princípio da dignidade humana acredita-se que a internação é o meio de garantir ao individuo, à família, e a sociedade princípios basilares como liberdade e vida digna; uma vez que não se pode falar em dignidade diante de um mal que assola e adoece uma sociedade.
Este estudo implica considerável relevância no sentido de que as questões polêmicas de uma sociedade consistem no elemento primeiro do Direito, uma vez que cada problema vivenciado abrange todos os princípios fundamentais, bem como direitos e garantias.
Ao final do presente estudo não se propõe em momento algum esgotar o tema, posto ser o mesmo pautado em discussões e análises que apenas se iniciam; não se propôs também abordar todos os temas correlatos uma vez que a sociedade e os indivíduos nela inseridos apresentarão constantemente questões a serem debatidas à luz do Direito.
Referências
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