1) Relação do Direito Processual Penal com o Direito Constitucional e o Direito Penal.
Em 1959, Konrad Hesse, constitucionalista alemão publica “A Força Normativa da Constituição”, dando nova perspectiva à discussão iniciada quase cem anos antes, por Ferdinand Lassalle (1862).
A tese fundamental de Lassalle partia do pressuposto de que as questões constitucionais não são questões jurídicas, mas questões políticas. A Constituição de um país expressaria, assim, as relações de poder nele dominantes (poder militar, social, econômico, intelectual etc.), relações que, para Lassalle, são de natureza fática – e não jurídica. Esses fatores reais do poder consubstanciariam a constituição real. De outro lado, a constituição jurídica – na concepção de Lassalle – não passaria de “um pedaço de papel” cuja capacidade de regular a realidade seria condicionada à coincidência com os elementos reais de poder (constituição real).
Os acontecimentos que tomaram lugar durante a Segunda Guerra Mundial, contudo, fizeram surgir uma demanda urgente de limitação desses “fatores reais de poder”, já que todo o horror perpetrado pelo regime nazista – especialmente no que se refere à “Solução Final” - era absolutamente coberto pelo manto da legalidade. Pode-se dizer, portanto, com alguma segurança, que o segundo pós-guerra marca o fim do Estado de Direito, pilar fundante do Estado Moderno, que se transmuta e ressurge como Estado Constitucional de Direito.
A teoria sustentada por Konrad Hesse, assim, é fundamental nessa evolução. O autor, reconhecendo o cunho político das questões constitucionais, bem como a tensão inexpurgável entre os fatores reais de poder e a constituição jurídica, aduz que a Constituição
(...) não configura, portanto, apenas a expressão de um ser, mas também de um dever ser; ela significa mais do que o simples reflexo das condições fáticas de sua vigência, particularmente as forças sociais e políticas. Graças à pretensão de eficácia, a Constituição procura imprimir ordem e conformação à realidade política e social. Determinada pela realidade social e, ao mesmo tempo, determinante em relação a ela, não pode se definir como fundamental nem a pura normatividade, nem a simples eficácia das condições sócio-políticas e econômicas. A força condicionante da realidade e a normatividade da Constituição podem ser diferençadas; elas não podem, todavia, ser definitivamente separadas ou confundidas. (...) “Constituição real” e “constituição jurídica” estão em uma relação de coordenação. Elas condicionam-se mutuamente, mas não dependem, pura e simplesmente, uma da outra. [1]
Hesse refuta a concepção de Lassale de que a Constituição teria somente uma função justificadora das relações de poder dominantes. Para ele, apesar de ter vínculos com a realidade histórica que a condiciona e origina, a Constituição projeta sua eficácia no futuro e busca constituí-lo com base na natureza singular do presente. Assim, embora a Constituição (jurídica) não possa realizar nada por si só, ela pode impor tarefas. A Constituição transforma-se em força ativa na medida que orienta a conduta (principalmente estatal) segundo a ordem nela estabelecida. Eis a força normativa da constituição.
O reconhecimento da força normativa do texto constitucional tem um sem número de implicações para a Teoria do Direito. Aqui importa uma breve menção dos reflexos dessa mudança de paradigma no processo penal, considerando o advento da Constituição de 1988 e o extenso rol de direitos fundamentais nela consagrado, bem como a relação que se estabelece com o Código Processual Penal vigente, cuja edição data de 1941.
2.1 Constituição e Processo Penal
Como afirma Pacelli “A aludida legislação codificada refletia uma mentalidade tipicamente policialesca, própria da época, em absoluto descompasso com a Constituição da República, que já aspirava ares de maior participação popular. Certamente por isso, a preocupação com a afirmação de direitos e garantias individuais mereceu capítulo específico na nova ordem constitucional”[2].
O vigente CPP brasileiro foi inspirado na legislação italiana produzida na década de 1930, em pleno regime fascista, de modo que tem base num modelo autoritário; pautava-se então pela presunção de culpa, e nem mesmo a sentença absolutória era suficiente para restituir liberdade ao réu (redação antiga do artigo 596 do CPP).
A Constituição de 1988, a seu turno, instituiu um amplo sistema de direitos e garantias individuais, dentre os quais se destaca a presunção de inocência: “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória” (art. 5º, LVII, CF).
Veja-se que a Constituição é informada por um princípio absolutamente diverso daquele que inspirou a Codificação Processual Penal de 1941; a mudança é emblemática: da presunção de culpa à presunção de inocência. Isso implica uma mudança radical do papel do direito processual penal. Como propõe Aury Lopes Jr., implica, no mínimo, a necessidade de rediscutir-se o fundamento do processo penal contemporâneo.
Nesse ponto específico, algumas escolhas precisam ser feitas, especialmente no que toca à ideologia[3] fundamentadora da leitura do processo penal que se pretenda fazer; qualquer pretensão de neutralidade, aqui, só pode ser ingênua ou de má-fé.
Assim, estabeleça-se, desde logo, que a única leitura do processo penal compatível com a Constituição e com um projeto minimamente democrático, é a que concebe o processo penal como instrumento de efetivação das garantias constitucionais[4].
2.2 O princípio da necessidade do processo penal
Com a assunção estatal do monopólio da administração da justiça, surge para o Estado o poder-dever de tutelar as relações conflituosas que exsurgem do convívio social. Numa ampla gama de espécies de conflitos coloca-se o ilícito penal. Nesse sentido, vale a lição de Aury Lopes Jr.:
À medida que o Estado se fortalece, consciente dos perigos que encerra a autodefesa, assume o monopólio da justiça, ocorrendo não só a revisão da natureza contratual do processo, senão a proibição expressa para os particulares de tomar a justiça por suas próprias mãos. Frente à violação de um bem juridicamente protegido não cabe outra atividade que não a invocação da devida tutela jurisdicional. Impõe-se a necessária utilização da estrutura preestabelecida pelo Estado – o processo penal – em que, mediante a atuação de um terceiro imparcial, cuja designação não corresponde à vontade das partes e resulta da imposição da estrutura institucional, será apurada a existência do delito e sancionado o autor. O processo, como instituição estatal, é a única estrutura que se reconhece como legítima para a imposição da pena. [5]
O princípio da necessidade significa, em termos simples, que o Direito Penal é despido de coerção direta; dito de outro modo, significa dizer que o Direito penal é castrado, que “não tem atuação nem realidade concreta fora do processo correspondente”[6]. Assim, embora o Direito Penal faça a seleção dos comportamentos indesejados pelo ordenamento jurídico por meio dos tipos penais e comine uma pena pela violação de seus preceitos, esta pena somente pode ser imposta por meio de um processo.
A pena, portanto, depende da existência do delito cuja comprovação (ou não) será feita no processo penal; nessa dimensão, as regras processuais estabelecem o modo pelo qual se admite e se produz a constatação (ou refutação) dos pressupostos de aplicação da pena. Deve-se somar a essa dimensão da necessidade a função constitucional do processo[7], que deve ser concebido como um instrumento a serviço da concretização de um projeto democrático.
2.3 Breves considerações sobre os reflexos da teoria agnóstica da pena no processo penal
Como denota-se da exposição supra, o direito processual penal guarda estreitos laços com o processo penal, na medida em que é veículo necessário para a aplicação da pena. A pena, portanto, e as teorias que a ela dizem respeito - que buscam justificar sua existência - têm profundos reflexos na compreensão e instrumentalização do processo penal[8].
Salo de Carvalho sustenta que as teorias de fundamentação das penas operam como discursos de racionalização do poder soberano, “sobretudo porque o monopólio da coação legítima representa umas das principais conquistas da modernidade”[9]. O autor vai mais longe e afirma que, desde o ponto de vista da teoria política, o “uso da força e a reivindicação de sua legitimidade instauram a ordem jurídico-política”[10]. Ademais, importa esclarecer que a pena se constitui como um ato de violência programado politicamente e racionalizado (legitimidade) juridicamente. E é “exatamente por caracterizar-se como ato de violência, o discurso jurídico impõe que o exercício da força no interior da ordem política seja limitado por regras e legitimado por discursos (teorias da pena)”[11]. Caso não haja limitação e legitimação, o Estado acaba por equiparar-se a uma organização criminosa (Kelsen)[12].
Desse modo (bastante sucinto) pode-se dividir as teorias da pena em absolutas (também chamadas retributivistas) - as quais atribuem finalidade autônoma à pena, ou seja, a sanção é desvinculada teoricamente de qualquer feito ou projeção social – e relativas – as quais referem modelos punitivos direcionados a uma finalidade extrínseca – p. ex. prevenção de delitos.
Antes de ir adiante, essencial registrar a advertência de Salo de Carvalho de que “por mais (in)adequados ou ingênuos que possam parecer os fins atribuídos ou por mais por mais (ir)realizáveis que sejam os objetivos designados às penas, os instrumentos dogmáticos do direito penal serão naturalmente moldados e adequados a partir destas orientações. Isto porque é ínsita à ideia de finalidade a busca de sua operacionalização por meio de instrumentos (meios)”[13]. Os instrumentos dogmáticos do processo penal, igualmente, são moldados de acordo com a finalidade pretendida.
Isto quer dizer que a aceitação das teorias da pena ortodoxamente proclamadas tem reflexos no manejo não só do direito penal, mas também do processo penal.
Isso dito, a única teoria da pena compatível com a democracia parece ser a teoria agnóstica da pena (ou teoria negativa) – que, frise-se, não se encaixa em nenhum dos esquemas acima expostos. A teoria agnóstica pressupõe que o fundamento da pena é político, negando sua constrição ao jurídico. O grande mérito do deslocamento do fundamento da pena é acabar com o discurso de neutralidade (apoliticidade) do fenômeno punitivo, “cujo efeito é o de obscurecer a seletividade penal. Portanto, a pena, como um ato de coerção imposto pela agência punitiva, legitima-se e realiza-se no campo da política, e não no do direito. Desde a proposição agnóstica, a relação entre a pena criminal e o direito penal não é a de legitimação. Pelo contrário, a função do discurso e das práticas jurídicas é a deslegitimação dos excessos inerentes ao exercício político do poder de punir”[14].
Nesse contexto, um processo penal que absorva os pressupostos da Teoria Agnóstica da Pena[15] vê ainda mais reforçada a sua função constitucional, enquanto instrumento a serviço da concretização de um projeto democrático.
2) A verdade no processo penal
Muitos manuais de direito processual penal ainda, em pleno 2014, apontam a verdade real como “princípio” informador do direito processual penal. Ocorre que qualquer pretensão minimamente séria de construção de uma democracia não pode aceitar essa construção mitológica, de matriz inquisitória. Veja-se que colocar a verdade – de qualquer natureza – como finalidade do processo penal, aniquila – ou pelo menos diminui drasticamente - a função constitucional do processo penal.
Aury Lopes Jr. ensina que o mito da verdade real nasce na inquisição e, a partir daí, é usada para justificar os atos abusivos do Estado[16]. Veja-se que Aury Lopes Jr. e Salah Khaled Jr. sustentam que a noção de verdade processual, defendida por Ferrajoli, não rompe a ambição de verdade, mas apenas a disfarça, o que é insuficiente para “a concretização da estrutura acusatória de contenção regrada do poder punitivo. Em outras palavras, o argumento da verdade correspondente relativa permanece sendo utilizado para sustentar a busca da verdade pelo juiz, conformando um inaceitável ativismo judicial, que rompe com a estrutura acusatória do devido processo legal”[17].
Aqui, importa observar que Eugênio Pacelli de Oliveira, diverge dos autores acima citados: “(...) além do fato de não existir nenhuma verdade que não seja a processual, tal princípio [da verdade real], na realidade, na extensão que lhe se dá, pode ser – e muitas vezes foi e ainda é – manipulado para justificar a substituição do Ministério Público pelo juiz, no que se refere ao ônus probatório que se reserva àquele”[18].
Para Pacelli, a iniciativa probatória do juiz está limitada ao esclarecimento de pontos duvidosos sobre o material já trazido pelas partes, nos termos da nova redação do art. 156, II, do CPP. Todavia, como destaca Alexandre Morais da Rosa, se o in dubio pro reo for levado a sério, a dúvida do magistrado não enseja a produção de provas, mas impõe a absolvição do acusado.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CARVALHO, Salo. Penas e Medidas de Segurança no Direito Penal Brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2013.
HESSE, Konrad. A força normativa da constituição. Tradução de Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sergio Antônio Fabris Editor, 1991.
KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. Tradução de João Baptista Machado. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2009.
KHALED JR., Salah. A Busca da Verdade no Processo Penal: para além da ambição inquisitorial. São Paulo: Editora Atlas, 2013.
LOPES JR., Aury. Direito processual penal. 10 ed. São Paulo: Saraiva, 2014.
LÖWY, Michael. As Aventuras de Karl Marx contra o Barão de Münchhausen: marxismo e positivismo na sociologia do conhecimento. 10 ed. São Paulo: Cortez Editora, 2013.
PACELLI, Eugênio. Curso de Processo Penal. 18 ed. São Paulo: Atlas, 2014.