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Pela extinção da remessa necessária

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Embora tenha sido mantida no novo Código de Processo Civil, a remessa necessária ainda é objeto de questionamentos, sobretudo em face do princípio da isonomia, haja vista que a Fazenda possui superioridade técnica decorrente da sua litigância habitual.

RESUMO: O novo Código de Processo Civil manteve, no seu texto legal, um instituto processual alvo de profundas críticas por parte da doutrina brasileira: a remessa necessária. Ocorre que tal instituto processual vem sendo confrontado com princípios constitucionais, sobretudo o da isonomia, por colocar a Fazenda Pública em posição privilegiada frente ao particular durante o processamento dos litígios. O presente artigo tem por escopo abordar os principais argumentos acerca da utilidade ou não da remessa necessária, bem como sua conformidade com a Constituição Federal. Com suporte em pesquisa eminentemente documental, o estudo revelou a desnecessidade da remessa necessária como prerrogativa fazendária para a preservação do interesse público, ao revés, constatou-se que sua manutenção na ordem jurídica caracteriza flagrante violação ao princípio constitucional da isonomia.

Palavras-chave: Processo Civil. Remessa Necessária. Isonomia.

 


1 INTRODUÇÃO

Após a recente atualização do Código de Processo Civil, a remessa necessária foi um dos institutos jurídicos mantidos e reformados. Atualmente, está prevista no art. 496 do novo Códico Processual. Entre as inovações atinentes ao instituto, está o nomen juris, passando a denominar-se como remessa necessária — também conhecida por apelação ex officio, remessa ex officio, remessa de ofício, remessa obrigatória, reexame oficial, reexame necessário, reexame obrigatório, duplo grau de jurisdição obrigatório. Entretanto, Talamini (2016) comenta que a designação mais adequada seria reexame necessário, pois, além de ser amplamente adotada pela doutrina, o busílis do instituto é o reexame da sentença proferida pelo juízo a quo, e não a remessa do processo ao tribunal.

A remessa necessária, junto a prazos dilatados, intimações pessoais, isenções de custas, dispensa de preparo prévio, redução ou supressão do valor dos honorários de sucumbência, constitui uma das prerrogativas processuais conferidas à Fazenda Pública quando em Juízo. A respeito do tema, há tempos se discute a constitucionalidade do instituto sob enfoque.

Não obstante a larga aceitação da remessa necessária pela doutrina e jurisprudência, sendo, inclusive, conteúdo de súmulas dos tribunais superiores, mostra-se importante uma análise do instituto perante o princípio constitucional da isonomia, a fim de desvendar a sua necessidade diante da suposta desigualdade existente entre a Fazenda Pública e o particular.

A Constituição brasileira de 1988 consagra, em seu art. 5º, caput, o princípio da isonomia, segundo o qual todos são iguais perante a lei. Sob a perspectiva processual, traduz-se na igualdade de condições de atuação e paridade de armas entre as partes e encontra amparo legal no art. 139, inciso I, do novo Código de Processo Civil. No entanto, com fulcro no princípio da supremacia do interesse público sobre o particular, à Fazenda Pública foram conferidas algumas prerrogativas processuais, entre as quais está inserta a remessa necessária.

Além da aludida infringência à isonomia processual, a existência da remessa necessária tem revelado também ofensa aos princípios da duração razoável do processo e da efetividade, em face do retardamento excessivo do processo e da ineficácia do provimento jurisdicional de primeiro grau, respectivamente.

 


2 ASPECTOS RELEVANTES SOBRE O DUPLO GRAU DE JURISDIÇÃO

Antes de adentrar nas características próprias da remessa necessária, faz-se mister tecer algumas considerações a respeito do duplo grau de jurisdição, premissa da qual se retira o fundamento para existência do indigitado instituto no ordenamento jurídico pátrio.

Por grau de jurisdição, Araújo Júnior (2016) apregoa: "Todo o esforço e poder de investigação que são outorgados constitucionalmente ao Poder Judiciário para o julgamento de uma causa na sua acepção mais ampla". Ainda consoante a preleção do referido jurista, a Constituição Federal consignou, em seu texto, diretrizes para a promoção do grau de jurisdição, quais sejam: julgador competente, devido processo legal, contraditório e ampla defesa, e provas obtidas por meio lícitos. Logo, o grau de jurisdição se realizará sempre que "o juiz for competente, houver um devido processo legal que oferece aos acusados o contraditório e a ampla defesa com provas obtidas através de meios lícitos".

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Ainda sobre o tema, Moraiz (2013), ao citar Canotilho, destaca que as normas podem ser divididas em regras e princípios, residindo a diferença no grau de abstração das mesmas. No entanto, para o autor, dado o caráter restritivo das regras e valorativo dos princípios, o duplo grau de jurisdição não se insere em nenhuma das divisões, estando mais próximo de uma garantia. Nesse sentido, é o posicionamento do ex-ministro do Supremo Tribunal Federal, Joaquim Barbosa, segundo o qual o Pacto de São José da Costa Rica, convenção internacional de direitos humanos, tornou o duplo grau de jurisdição numa garantia fundamental.

Nesse trilhar, Mendes e Branco (2012) realçam o posicionamento do Supremo Tribunal Federal ao não compreender o duplo grau de jurisdição como um direito, senão nas hipóteses, expressamente, asseguradas na Constituição Federal, tais como as dos arts. 102, inciso II, 105, inciso II, e 108, inciso II. A fim de corroborar o entendimento adrede apontado, os autores acrescentaram à sua obra a ementa expressiva do ex-ministro Sepúlveda Pertence, no julgamento do Recurso em Habeas Corpus nº 79.785, que explina não ser possível, mesmo em face do art. 8º, 2, h, do Pacto de São José da Costa Rica, erigir o duplo grau de jurisdição em princípio e garantia constitucional, haja vista as inúmeras previsões, na Lei Fundamental, de julgamentos em única instância.

O duplo grau de jurisdição se estriba na possibilidade de a decisão de primeiro grau estar em desacordo com a ordem jurídica, oportunizando à parte prejudicada ter sua demanda reexaminada, em grau de recurso, pelo juízo ad quem, que poderá reformar a decisão do juízo a quo. Embora não esteja previsto, de forma expressa, na Constituição Federal, o duplo de grau de jurisdição é extraído da competência recursal atribuída aos tribunais, além de ser largamente disciplinado na legislação infraconstitucional.

No entanto, Moraiz (2013), categoricamente, defende que o ordenamento jurídico brasileiro não abarca o duplo grau de jurisdição, sendo, desacertadamente, invocado como sucedâneo recursal. Entre os argumentos defendidos pelo autor, mencionam-se: (a) a ratificação do Pacto de São José da Costa Rica se deu em 1992, antes da existência do §3º do art. 5º da Lei Maior, acrescentado pela Emenda Constitucional nº 45 de 2004, o que retira o caráter constitucional de suas normas; (b) o respectivo tratado não impõe o duplo grau de jurisdição, pois há de se observar o direito interno, no qual se prevê, expressamente, a competência originária do Supremo Tribunal Federal, órgão máximo da cúpula do Judiciário; (c) o Supremo já estabeleceu o caráter supralegal do Pacto de São José; (d) não se pode equiparar a decisão prolatada pela Suprema Corte, composta por 11 ministros, com as de um juiz de primeiro grau; e, por fim, (e) a necessidade de revisão constante das decisões judiciais ensejaria um ciclo vicioso que poria em xeque a ordem constitucional, cujo esteio é a segurança jurídica.

 


3 NOÇÕES HISTÓRICAS ACERCA DA REMESSA NECESSÁRIA

Segundo Cleide Previtalli Cais, citada por Didier Jr. e Cunha (2016), a remessa necessária, originariamente denominada recurso de ofício, tem sua origem na Roma antiga, em meio à cristianização do direito pagão. Sua criação tinha como alvo evitar erros e injustiças. Durante a Revolução Francesa, o instituto foi aperfeiçoado e passou a ser considerado fundamental para a democracia.

Consoante Ennio Bastos de Barros, também citado por Didier Jr. e Cunha (2016), o surgimento do presente instituto no Direito brasileiro remonta ao processo inquisitório lusitano, especificamente ao processo penal, como forma de proteção ao réu condenado à pena de morte.

Nessa linha, Alfredo Buzaid, em menção feita por Didier Jr. e Cunha (2016), ensina que, nas Ordenações Afonsinas, o recurso de ofício era interposto pelo próprio juiz em face das sentenças que tratavam de crimes de natureza pública ou cuja apuração se iniciasse por investigação, com o intuito de corrigir exageros do processo inquisitório. O instituto foi mantido nas Ordenações Manuelinas, período em que o juiz estava sujeito a graves sanções caso não interpusesse o recurso de ofício. Já nas Ordenações Filipinas, várias exceções foram outorgadas.

Como bem preleciona Júlio César Rossi, citado por Koehler (2016), a razão do recurso de ofício de existir no Direito lusitano se deve ao fato de servir de instrumento de controle dos poderes quase onipotentes do juiz no sistema inquisitorial de Portugal, que lhe permitia iniciar um processo e colher as provas para julgamento, o que, sem fiscalização por outro órgão judicante, poderia resultar em perseguição de inocentes. O autor ressalta que não havia motivos para a incorporação do instituto ao sistema brasileiro.

Malgrado sua origem no Direito Processual Penal, a remessa necessária, paulatinamente, foi introduzida nas causas civis. O Código de Processo Civil de 1939 já previa, no art. 822, a apelação ex officio. No Código de Processo Civil de 1973, manteve-se o recurso de ofício, porém foi retirado da seção de recursos por reclamos de parte da doutrina, inserindo-o na parte concernente à coisa julgada. O art. 475 do Código de 1973 determinava que algumas sentenças somente produziriam efeitos após a confirmação por tribunal, sob pena não transitarem em julgado. Já o Código de Processo Civil de 2015 manteve a disciplina do instituto, trazendo inovações quanto aos patamares de pisos para a sua ocorrência e quanto aos fundamentos das decisões para sua não ocorrência.

 


4 NATUREZA JURÍDICA DA REMESSA NECESSÁRIA

A doutrina e a jurisprudência já divergiram bastante em relação à natureza jurídica da remessa necessária. Além da mudança topográfica do instituto da seção dos recursos no Código de 1939 para a seção da coisa julgada no Código de 1973, encontrando-se, atualmente, na seção de sentença e coisa julgada no Código de 2015, a doutrina majoritária entende não se tratar de recurso devido à ausência das características próprias destes.

Consonate Koehler (2016), o instituto não é recurso, mas sim condição de eficácia da sentença e pressuposto do seu trânsito em julgado. Nesse sentido, o autor cita Cândido Dinamarco, para o qual o instituto exclui por completo a eficácia da sentença em virtude do seu efeito suspensivo, que não permite sequer a execução provisória da sentença.

No mesmo sentido, Nelson Nery Jr., aludido por Araújo Júnior (2016), identifica que "faltam-lhe voluntariedade, a tipicidade, a dialeticidade, o interesse em recorrer, a legitimidade, a tempestividade, e o preparo, características e pressupostos de admissibilidade de recursos". Araújo Júnior (2016) assinala ainda que, no caso de preparo, este é incabível de ser exigido da Fazenda Pública, pois ela está dispensada de arcar com as custas judiciais. Em complemento a Nelson Nery Jr., destaca a ausência do contraditório na remessa necessária, caracterizado pelas contrarrazões no sistema recursal. Por fim, sintetiza por que não se pode atribuir natureza recursal à remessa necessária, apresentando os seguintes argumentos:

a) inexistência de voluntariedade, pois o próprio juiz remete os autos ao tribunal, independentemente de requerimento da partes;

b) falta-lhe a tipicidade por não estar prevista no rol de recursos do art. 994 do Código de Processo Civil de 2015;

c) falta-lhe interesse em recorrer, visto que o magistrado não tem interesse na reforma de sua decisão;

d) falta-lhe dialeticidade, pois que o magistrado não apresenta razões para que a sua decisão seja reformada;

e) falta-lhe legitimidade, já que o magistrado não possui interesse em recorrer;

f) falta-lhe tempestividade, porquanto a remessa necessária ocorrerá a qualquer tempo, não transitando em julgado a decisão do juiz enquanto não for realizado o reexame de seu conteúdo;

g) inexistência de contraditório em virtude da não abertura de prazo para a outra parte pugnar pela manutenção da sentença.

Sobre o tema, Talimini (2016) afirma que a natureza recursal deve mesmo ser descartada, uma vez que a remessa necessária, ao ter como função um maior controle da qualidade da decisão proferida, configura-se como um meio de revisão das decisões judiciais. Nem todo meio de revisão das decisões judiciais é recurso. Logo, não seria apropriado enquadrar a remessa necessária como meio de impugnação de decisão judicial e tampouco como recurso.

Sob a mesma perspectiva, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) ratificou a natureza não recursal da remessa necessária, in verbis:

 

A remessa necessária, expressão do poder inquisitivo que ainda ecoa no ordenamento jurídico brasileiro, porque de recurso não se trata objetivamente, mas de condição de eficácia da sentença, como se dessume da Súmula 423 do STF e ficou claro a partir da alteração do art. 475 do CPC pela Lei 10.352/2001, é instituto que visa a proteger o interesse público. (BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 959.338 da 1ª Seção. Relator: Ministro Napoleão Nunes Maia Filho, 29 de fevereiro de 2012.)

 

De outra parte, Didier Jr. e Cunha (2016) apontam que há quem defenda a remessa necessária como espécie recursal a ser interposta, obrigatoriamente, pelo juiz, alegando que, embora a impugnação não seja voluntária, mas compulsória, existe ato de provocação do impulso oficial que determina a remessa dos autos ao juízo ad quem e se opera a transferência da conteúdo discutido na sentença (devolutividade). Além disso, reforçam que o tribunal irá proferir um acórdão que substituirá a sentença do juiz de primeiro grau, seja para mantê-la, seja para reformá-la, sendo irrelevante a ausência da voluntariedade da impugnação e de outros requisitos de admissibilidade recursal.

Os autores seguem discorrendo na defesa da natureza recursal da remessa necessária. Para eles, é um equívoco dizer que esta é uma condição de eficácia da sentença, pois sua definição seria, na verdade, baseada nos seus efeitos. Para tanto, entre outras hipóteses, exemplificam que, no caso de mandado de segurança, a sentença proferida contra a Fazenda Pública produz efeito imediato.

Outrossim, assevera que a remessa necessária não constitui condição para a formação da coisa julgada por ser um equívoco definir algo por seus efeitos, e não pelo que é. Ademais, os recursos também possuem esse efeito, o que não possibilitaria distinguir a remessa necessária daqueles.

E não é só. Didier Jr. e Cunha (2016) enfatizam que a remessa necessária é, deveras, um recurso. Conforme os doutos juristas, na maioria dos países, "os recursos se caracterizam por conter (a) provocação ao reexame da matéria e (b) impugnação da decisão recorrida". A diferença entre a apelação e a remessa necessária reside na declaração de vontade da impugnação, sendo aquela de impugnação voluntária, enquanto esta de impugnação compulsória, pois que decorre de força de lei. Portanto, na remessa necessária, assim como em qualquer outro recurso, há provocação e impugnação. Ao juiz cabe praticar o ato de impulso oficial (remessa) para que, consequentemente, ocasione a incidência da norma que impõe a impugnação (reexame).

Nessa esteira, Didier Jr. e Cunha (2016) reforçam ainda que não há um conceito universal de recurso, variando em cada sistema jurídico, e que, no Brasil, é possível sustentar a existência de recurso voluntário e recurso compulsório, desde que haja provocação e impugnação em ambos.

 

Sobre os autores
Alex Penha do Amaral

Especialista em Direito Processual Civil pela Universidade Federal do Amazonas.

Luiza Veneranda Pereira Batista

Delegada de Polícia do estado de Goiás. Especialista em Direito Constitucional. Especialista em Direito Processual Civil. Especialista em Direito Processual Penal. Especialista em Criminologia. Formada em Direito pela Universidade Federal do Amazonas.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

AMARAL, Alex Penha; BATISTA, Luiza Veneranda Pereira. Pela extinção da remessa necessária. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 23, n. 5312, 16 jan. 2018. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/62891. Acesso em: 24 nov. 2024.

Mais informações

Trabalho referente ao Curso de Pós-graduação "lato sensu" em Direito Processual Civil da Universidade Federal do Amazonas.

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