Discute-se de longa data na doutrina se o Ministério Público no processo penal é parte ou fiscal da lei. A afirmação de que o MP é fiscal da lei é insustentável.
Quem é parte em processo judicial? É parte quem dele participa interessadamente, ou seja, com interesse, pouco importando se o interesse é próprio ou de terceiro. Sim, quem representa terceiro também é parte, pois que age no processo interessadamente, e, logo, com parcialidade. O interesse concebe a parcialidade sendo essa é inerente ao conceito de parte.
Incumbe, no processo penal, à acusação velar pelo interesse social de punição dos culpados, e a defesa, o encargo de proteger o interesse social de absolvição dos inocentes. Assim, o MP não é fiscal de lei nem age no processo como custos legis, já que, representando interesse, não é imparcial. Se fosse imparcial, não seria parte. Se fosse imparcial, o juiz seria dispensável. Imparcial é o juiz. A atribuição de ser imparcial é do juiz, não do Ministério Público, e não pode esse órgão tentar usurpar a função jurisdicional. O MP não é, nem pode, nem deve, ser imparcial. Do contrário não haveria o indispensável contraditório no processo penal.
A ação penal, o processo penal, funda-se na dúvida quanto a relação jurídica que vincula o Estado ao acusado, se é aquela relação jurídica em que o Estado detém o direito de punir (se o acusado é culpado – sujeito passivo da relação material), ou se é aquela outra em que o acusado detém o direito de liberdade (se o acusado é inocente – sujeito ativo da relação). Havendo essa dúvida, é pacífico, e é da sistemática da ordem processual, o MP deve acusar. Diante da prova duvidosa, deve denunciar. Na dúvida, deve realizar a persecução penal. O MP só seria imparcial se diante da dúvida estivesse obrigado a pedir a absolvição, ou a recorrer em favor do condenado, e como se sabe, não está obrigado. Excepcionalmente, quando as provas, com um bom grau de certeza, indicam a inocência do acusado, o MP pode pedir a absolvição. Pode até mesmo, nessa hipótese, recorrer em favor do acusado buscando o reconhecimento de sua inocência. Mas essas faculdades não constituem razões suficientes para considerar o MP como fiscal da lei, já que não são propriamente consequências da lei processual, e sim derivam do fato de que ninguém pode ser obrigado a litigar violando sua própria consciência.
A tudo isso poderia ser acrescentado o aspecto psíquico. O MP acusa com muita frequência (no seu dia-a-dia), e para acusar é preciso raciocinar de maneira investigativa (é preciso partir de hipóteses de comportamento criminoso), e sabe-se, essa forma de raciocinar acaba condicionando o juízo, o que torna muito difícil ao acusador, mesmo que queira, formar convicções isentas de parcialidade (condicionamento semelhante vale para o defensor). É justamente por essas razões de ordem psíquica que o sistema acusatório demonstrou-se no curso da história muito superior ao sistema inquisitivo para chegar mais próximo da verdade do que o inquisitivo (no inquisitivo, para julgar, antes o inquisidor precisa elaborar hipóteses acusatórias, e a seguir investigar as respectivas provas deformando a imparcialidade).
Por igual não nos convence a ideia de que o MP, mesmo atuando perante o Tribunal, o faça como custos legis. Essa é uma fábula criada pela doutrina e pela jurisprudência. A prática confirma nosso entendimento, já que a imensa maioria dos pareceres do MP em 2ª instância são no sentido de confirmar e/ou reforçar a tese acusatória apresentada nas razões ou contrarrazões da acusação lançadas em 1ª instância. Além do mais, o Procurador de Justiça ou Procurador Regional da República que atuam perante o Tribunal continuam sendo membros do Ministério Público, mesma instituição a que pertencem os colegas que firmam as razões recursais. Essa posição, a de pertencer ao MP, instituição encarregada da persecução de delitos, acrescida do fato de quem oferece razões ou contrarrazões ao recurso ser colega, retiram do Procurador a possibilidade de ser isento.
De qualquer forma, são compreensíveis as razões do MP defender a tese de que é fiscal da lei: concede mais credibilidade a suas manifestações. Mas se considerarmos o MP fiscal da lei, ele o é tanto quanto o defensor. Um fiscaliza a lei que manda punir os culpados, e outro a que ordena absolver os inocentes. Ambos são xerifes da lei penal. Ambos possuem direito à estrela no peito. O MP é fiscal das tipicidades da lei penal, a defesa dos vácuos existentes entre as tipicidades, e também, da efetividade das normas excludentes de tipicidade, de antijuridicidade, de culpabilidade e extintivas de punibilidade. Das tipicidades nasce o direito de punir. Nos buracos negros situados entre os tipos penais brota o direito de liberdade. A propósito, se for para estabelecer comparações, dá para sustentar que a defesa é mais fiscal da lei que o MP. O que é mais grave? O que viola com maior intensidade a ordem jurídica? Um culpado inocentado ou um inocente condenado e cumprindo pena por algo que não fez? Da resposta dá para extrair a conclusão de que o bem jurídico fiscalizado pela defesa (a liberdade do inocente) constitui bem maior do que o fiscalizado pela acusação (a punição do culpado). Finalizando, o registro de que há, também, os que sustentam que o MP é parte imparcial. Desmerece maiores comentários. O quadrado redondo, conforme de certa feita comentou o criminalista Felipe Lopes.