DEFERIMENTO E INDEFERIMENTO DA PETIÇÃO INICIAL
No ordenamento jurídico brasileiro, de se atentar para a circunstância de que a disciplina jurídica do recebimento da petição inicial se encontra fundada, sobretudo, nos artigos 330 e 485, inciso I, ambos do Código de Processo Civil. E, nestes artigos se encontram as noções de inépcia e indeferimento, numa verdadeira relação de espécie e gênero, sendo aquela mais restrita que este, que a englobaria (embora no cotidiano forense se verifique que os profissionais, de forma atécnica, venham se utilizando de ambas as expressões como sinônimas).
De todo modo, insta salientar que, ao se analisar o argumento no sentido do recebimento, ou não, de uma petição inicial (e se considera proposta a demanda com o despacho ou distribuição de uma petição inicial) se trata de uma verdadeira questão em sentido técnico processual. Isso porque, conforme é cediço, a noção de questão se acha diretamente relacionada àquela de uma controvérsia instaurada no processo, ou melhor explicando, partindo-se do pressuposto que um ponto processual seja tudo aquilo sobre o que o Magistrado deva analisar para decidir, quando houver controvérsia a respeito de um ponto processual, estará caracterizada a questão sob o ponto de vista da técnica processual.
E tal questão, obviamente, estará ligada às mais das vezes, a uma noção de falta de pressuposto processual (e neste tópico se inserem os requisitos de regularidade da petição inicial, sobretudo os aludidos no artigo 219 e seus consectários do Código de Processo Civil) e de falta das antigas condições da ação (como é sabido o atual CPC parece não ter repetido a redação do artigo 301 CPC/73 que expressamente se referia a uma carência de ação, ou seja, afastou-se o novo diploma da orientação de Chiovenda que nos idos de 1.900 na Itália antevia condições da ação em categoria diversa dos pressupostos processuais – hoje não se vê mais sentido em tal separação, sendo certo que agora a possibilidade jurídica do pedido equivale a um exame de mérito e a legitimidade e o interesse são vistos como pressupostos processuais).
E vale ressaltar aí, a salutar lição do pragmático adágio de direito romano glosado pelo legislador medieval no sentido de que verba cum effectu sunt accipienda – que em tradução literal e livre implica na ideia de acordo com a qual a lei não possui palavras ou expressões inúteis (verdadeiro princípio geral de direito como aponta Carlos Maximiliano em seu conhecido Tratado de Hermenêutica Jurídica). Se a lei exige qualificação, essa somente não será cobrada se for impossível de ser obtida, o que deve ser informado ao Juízo na peça exordial.
Assim, se o Magistrado recebe a petição inicial, o que, às mais das vezes é feito de forma automática, com o lançamento de uma simples decisão “cite-se”, está, na verdade, proferindo uma decisão interlocutória (e não um simples despacho de mero expediente, como se poderia fazer crer), isso porque está implicitamente resolvendo uma controvérsia, e decidindo que o processo deve ser formado, estando ausentes todos os vícios mencionados no artigo 330 e seus consectários do Código de Processo Civil. Poder-se-ia, inclusive, pensar no sentido de uma preclusão lógica para indeferimento posteriores da petição inicial, por exemplo, na fase do saneamento eis que seria dever do Juiz já apontar previamente as falhas da exordial.
E observe-se no sentido de que se tem considerado com direito subjetivo da parte, emendar ou aditar a peça exordial com aproveitamento do processo, não se podendo extinguir de plano processos, por inadmissão da peça exordial, sem permitir o reparo de eventual falha – isso pode implicar até mesmo em casos da aferição da responsabilidade funcional do Magistrado – e vivemos tempos difíceis em que o descumprimento de prelados de legalidade podem ser vistos como atos de improbidade.
Do mesmo modo, se a indefere, estará proferindo sentença, ainda que terminativa (fundada no artigo 485, inciso I do mesmo diploma legal – com ênfase no fato de que poderá, inclusive, indeferir julgando o mérito, como ocorre no caso específico da prescrição e da decadência, ou quando já se tem decisão firmada em recurso repetitivo ou IRDR sobre o demanda e o julgamento depender exclusivamente de questões de direito), a qual, obviamente, deverá ser fundamentada (mesmo que de forma concisa, como analisado acima). Nesse caso, em havendo apelação, haverá que se aplicar o chamado efeito regressivo recursal (alguns a ele se referem como efeito diferido), com possibilidade do Magistrado rever seu próprio ato, antes da subida do recurso ao Tribunal.
Tal questionamento é de extrema importância, porque, em primeiro lugar, dependendo da opção do Magistrado, ou seja, deferimento ou indeferimento, poder-se-á ter uma decisão interlocutória ou uma sentença, o que, em primeiro lugar, refletirá na própria questão da possibilidade de recurso em face desta decisão. Ora, se fosse entendida tal espécie de decisão como despacho de mero expediente, não se trataria de ato judicial passível de recurso (quando muito poder-se-ia lançar mão de uma ação autônoma de mandado de segurança para a revisão do ato em 2ª Instância, posto que, conforme é cediço, não mais existe, desde a revogação do Código de Processo Civil de 1.939, a chamada correição parcial).
Mas, como dito acima, partindo-se do pressuposto segundo o qual ora cuidar-se-á de decisão interlocutória e ora cuidar-se-á de sentença, inequivocamente estará assegurado o direito de recurso da parte que não concordar com o teor da decisão (sendo importante não esquecer que, em cada caso, tratar-se-á de um recurso específico, seja de agravo de instrumento ou retido, seja a apelação).
Seja num ou noutro caso, inequivocamente, deverá ocorrer a motivação da decisão, sob pena de expressa nulidade, o que ganha capital importância quando o assunto se refere ao recebimento da petição inicial. Isso porque, pela práxis forense, analisando-se de forma maciça os processos recebidos diariamente nos Fóruns, perceber-se-á que os Magistrados, às mais das vezes, de forma lacônica, lançam a decisão “cite-se” ou equivalente “cite-se com as cautelas legais”, etc... O artigo 489 CPC veda decisões que se prestariam a serem aplicadas em qualquer tipo de situação (no âmbito penal o STJ tem anulado provas deferidas com a expressão “defiro” ou nos termos da cota do MP defiro.
Ora, como já visto, tal decisão tem natureza de decisão interlocutória, e, portanto, pode ser desafiada pelo recurso de agravo, de instrumento ou retido, assim, deve ser motivada, ainda que de forma concisa, o que, reitere-se, não vem ocorrendo. Bastaria, aliás, que o Magistrado alterasse sua decisão inicial para, por exemplo: “Presentes os requisitos do artigo 219 e seus consectários do Código de Processo Civil, e não vislumbrando as hipóteses do artigo 330 e consectários do mesmo codex, recebo a petição inicial e determino a citação do réu ou designo audiência de conciliação para o dia tal”.
Num caso como este, em que se está referindo o Magistrado a uma motivação concisa, percebe-se o claro atendimento à norma constitucional, prevenindo-se eventual alegação de ocorrência de nulidade processual, o que poderia ser obtido sem maiores ônus para o sistema judiciário, já assoberbado e azafamado pelo acúmulo de serviços que enfrenta de forma generalizado (isso porque, com a informatização, basta que se altere a decisão tradicional por essa ou por modelo congênere, desde que se faça um efetivo controle das petições iniciais, antes de recebê-las).
CONCLUSÕES
Ante todo o exposto, de se concluir que, ao receber uma petição inicial, o Magistrado, obviamente, estará proferindo uma decisão interlocutória, analisando questão implícita (se for incluída à indagação, a questão referente ao indeferimento, estar-se-ia inserindo a possibilidade de inclusão de sentenças terminativas e definitivas, estas últimas no caso da prescrição e da decadência). E, assim sendo, dúvida não há no sentido de que se trate de decisões que deverão ser, sempre, motivadas, sob pena de reconhecimento de sua nulidade.
Tal motivação, ademais, deverá ser expressa, ou, quando muito, concisa (nunca per relationem) eis que apta à formação de coisa julgada material (no caso das sentenças), com todas as implicações no que tange aos seus limites objetivos e subjetivos, devendo-se preconizar que, diante da gravidade da situação, não se admitiria uma regularidade meramente formal da liberdade pública referente ao dever de motivar, garantidor da imparcialidade dos órgãos jurisdicionais.
Por derradeiro, e, a contrario sensu, de se ponderar que, mesmo quando não se exigisse o rigor formal supramencionado, sempre deveria o Magistrado, para demonstrar sua imparcialidade, fundamentar, ainda que brevemente, suas decisões, mesmo que de recebimento, quando apenas resolve a questão implícita acerca do prosseguimento do feito. Isso porque, tal como já mencionado acima, mesmo com o acúmulo de serviços, não se pode olvidar que os avanços da informática permitem ao operador do sistema jurídico, preparar decisões sucintas em série, o que seria recomendável (obviamente somente seriam lançadas após o prévio exame da peça), com alusão ao fato de que petição reúne condições para ser recebida, estando ausentes os vícios que impediriam o seu recebimento.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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TARUFFO, Michele. La Motivazzione della sentenza civile. Pádova: Padova. Itália. 1975.
Notas
[1] MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 7ª Ed. São Paulo: Atlas. 2000. p. 431.
[2] GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel; CINTRA, Antônio Carlos Araújo. Teoria Geral do Processo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1989. p. 56.
[3] PERO, Maria Thereza Gonçalves. A motivação da Sentença Civil. São Paulo: Saraiva. 2001.
[4] DAVID, René. Os grandes sistemas de direito contemporâneo. São Paulo: Martins Fontes. 1998. p.284.
[5] SILVA, Júlio César Ballerini. Críticas ao Modelo de Arbitragem no Brasil. Revista Eletrônica da Faculdade de Direito da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais - Campus de Poços de Caldas. vol. I. 2001. Disponível na internet em: <www.pupcaldas/graduação/direito>.
[6] Taruffo, Michele, Apud PERO, Maria Thereza Gonçalves, op. cit. p.
[7] NERY JUNIOR. Nelson. Princípios do Processo Civil na Constituição Federal. 2ª edição. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995. p. 157.
[8] Pero, Maria Thereza Gonçalves, op. cit.
[9] NOJIRI, Sérgio, O Dever de Fundamentar as Decisões Judiciais. São Paulo: Revista dos Tribunais. pp. 27-28.
[10] NERY JÚNIOR, Nelson. Op. cit. p. 157.
[11] Pero, Maria Thereza Gonçalves, op. cit.
[12] Informativo STF nº 49.
[13] Informativo STF nº 61.
[15] Informativo STF nº 35
[16] STF. RE 179.557, Rel. Min. Ilmar Galvão, DJU 13.02.1998.
[17] NERY JÚNIOR, Nelson, Op. cit. p. 159.