9. A necessidade do advento de um critério uniforme e objetivo para a concessão do benefício da gratuidade
Segundo Bauman (2011, p. 355), citado por Isaia e Langner (2015, p.192), “o que a maioria de nós aprendeu de nossa experiência é que, hoje, nenhuma forma no mundo à nossa volta, por mais sólida que possa parecer, é imune a mudanças”.
Portanto, o aprimoramento do Poder Judiciário, tal como a dos demais organismos públicos e privados e, de resto, da sociedade em geral, exige diversas transformações, v.g., a adoção das novas tecnologias da informação e comunicação à disposição no mundo moderno, bem como é manifesta a necessidade do advento de um critério uniforme e objetivo para a concessão da gratuidade de justiça.
Isso se justifica a fim de que os hipossuficientes possam, efetivamente, receber tratamento isonômico em qualquer juízo ou tribunal pátrio e, de modo simultâneo, venha a ser fortalecida a segurança jurídica, através da interpretação e subsequente aplicação uniforme, estável e coerente da lei em todo o território nacional.
“Nesse sentido, o art. 926, CPC/2015 (Lei n. 13.105/2015), estabeleceu que os tribunais devem uniformizar sua jurisprudência e mantê-la estável, íntegra e coerente. Sem dúvida, o legislador conferiu um sentido bastante técnico a esses vetores principiológicos a partir de uma concepção de dignidade da pessoa humana, considerando os princípios da segurança jurídica, da proteção da confiança e da isonomia (art. 927, § 4.º, CPC/2015) [...]” (LENZA, 2015, p. 1065). destaque no original
Logicamente, o simples conceito formal de igualdade, previsto na CF, art. 5º, caput, não conduz, por si só, a um tratamento efetivamente justo, daí, surgiu a necessidade da adoção do conceito realista, que impõe a igualdade substancial ou material, a qual requer, em síntese, tratamento igual aos substancialmente iguais e desigual aos desiguais, na exata medida de suas desigualdades.
Como bem lembra Barroso (1999, p. 170/171):
“Vê-se, assim, que é possível discriminar em prol dos desfavorecidos economicamente, em detrimento dos mais abonados. Mas o tratamento desigual há de encontrar limites de razoabilidade para que seja legítimo. Este limite poderá vir expresso ou implícito no texto constitucional, e a conciliação que se faz necessária exige a utilização de um conceito flexível, fluido, como o de proporcionalidade.”
A toda evidência, pois, o princípio da isonomia não abre ensejo ao deferimento do benefício para quem não é pobre, na acepção legal do termo, pelo simples fato de ter declarado essa circunstância na petição inicial, reconvenção ou resposta, sobretudo quando os autos contêm indícios de que o postulante reúne condições de pagar as custas processuais, quer seja pela própria renda, que se revela suficiente, quer seja pela profissão declarada ou pelo vasto patrimônio existente, constituído por imóveis e veículos, inclusive de luxo e importados, típico das classes média e alta, ou porque reside em área nobre do município, possui endereço empresarial em valorizado centro comercial, faz frequentes viagens de lazer, até mesmo ao exterior, ou tão somente pelo substancial valor do negócio jurídico objeto do litígio.
Não se desconhece a distinção contábil entre potencial econômico e potencial financeiro, pois enquanto o primeiro está mais ligado ao acervo patrimonial líquido que a pessoa detém (bens e direitos, menos as obrigações), o segundo encontra-se diretamente relacionado ao orçamento positivo ou recursos disponíveis em caixa para saldar as obrigações pontualmente.
Ocorre, no entanto, que admitir tal tipo de diferenciação para conceder a justiça gratuita no Brasil, restringindo a análise ao campo financeiro, é tornar natimorta a regulamentação, pois, no dia a dia forense, é fato corriqueiro o postulante juntar apenas demonstrativos de dívidas e despesas diversas, alegando que não dispõe de liquidez imediata para pagar as custas, quando intimado para comprovar a alegada hipossuficiência.
Inegavelmente, toda pessoa – física ou jurídica –, antes mesmo de nascer ou ser constituída, já gera despesas, assim a simples existência de dívidas ou indisponibilidade de caixa não significa, necessariamente, que a parte é hipossuficiente, mas pode revelar apenas, em incontáveis casos, que se encontra em estado de inadimplência, sem justo motivo, em virtude de má gestão e excesso de gastos supérfluos por pura ostentação.
E em nenhum lugar do planeta, a obrigação tributária pode ficar restrita exclusivamente ao poder financeiro do contribuinte, porque senão o fato é que ninguém recolheria ao fisco os valores devidos a título de impostos, taxas ou contribuições.
A rigor, não se pode esquecer que a própria Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem, sempre invocada para explicar as origens históricas do amplo acesso à justiça no plano global, também estabelece, no Capítulo Segundo, pari passu com o citado direito fundamental, o dever de pagar impostos:
Artigo XXXVI. Toda pessoa tem o dever de pagar os impostos estabelecidos pela Lei para a manutenção dos serviços públicos.
Em admirável voto, o desembargador Rogério Medeiros13 delimita, com precisão, os deveres dos agentes públicos na gestão fiscal, por força da Lei Complementar n° 101/2001, inclusive dos magistrados, enquanto gestores da atividade arrecadadora, tornando imperioso o exame sistemático das regras sobre a justiça gratuita, com atenção à natureza tributária das custas judiciais, pois onde há função, não há autonomia da vontade. Salienta, em contrapartida, a exigência de inteira submissão das partes litigantes ao princípio da boa-fé, bem assim que seria discrepante da realidade a instituição de um sistema judiciário inteiramente gratuito, pois a gratuidade generalizada seria incentivo à litigância irresponsável, em detrimento desse serviço público indispensável que é a jurisdição.
A propósito, a ausência de critérios objetivos pode levar à insegurança jurídica e, não raro, ao demandismo inconsequente, através da invenção de lides artificiais, como restou constatado em um caso emblemático, no qual o juiz negou a gratuidade a um postulante perdulário, autodenominado comerciante, depois de apurar, através das faturas do cartão de crédito internacional, que ele frequentava restaurantes sofisticados de Belo Horizonte-MG, além de realizar inúmeros gastos supérfluos.14
Na Comarca de Governador Valadares-MG, em outro caso concreto, o benefício da justiça gratuita concedido ao autor pelo TJMG, em sede de agravo, foi revogado de ofício na sentença ao fundamento de que a simples declaração, elaborada com base no então vigente artigo 4º da Lei 1.060/1950, possuía presunção meramente relativa de veracidade, podendo ser desconstituída, diante de elementos concretos acerca da inexistência da hipossuficiência declarada pela parte. Após a coleta de robustas provas na fase instrutória da plena capacidade econômico-financeira de o beneficiário assumir o referido ônus, observado o direito ao contraditório e à ampla defesa, ele foi condenado a pagar as custas processuais em triplo. Em grau de apelação, o eminente relator do recurso reavaliou o seu posicionamento anterior e manteve integralmente a sentença, em bem fundamentado acórdão,15 ao confirmar que o postulante era médico, fazendeiro, empresário, executivo e proprietário de diversos bens móveis e imóveis, cuja renda mensal líquida superava fácil a casa das três dezenas de milhares.
Enfim, a falta de um regramento uniforme e objetivo para disciplinar a concessão da gratuidade judiciária, de preferência com base em critérios conjugados de renda e patrimônio, pode resultar em insegurança jurídica, gerada por meras convicções pessoais do julgador, desprovidas de amparo em princípios constitucionais ou na própria lei, como registrou Costa (2006), in verbis:
“Diante dessa ideologia pós-positivista e niilista, o problema da normatividade se dissolve num jogo de azar, como o ‘takará’ do anedotário. Segundo conta o vulgo, um amigo chamou um outro para jogar com aquelas cartas de naipes diferentes, cuja regra era justamente não ter regras. O primeiro amigo, diante da estupefação do outro, iniciou a partida, dividindo o baralho em dois montes, distribuindo nove cartas diferentes para cada jogador e tirando de um dos montes a sua primeira carta. Em seguida, descartou uma outra. Sem conhecer os naipes e as regras, o outro amigo procedeu da mesma forma. Após três ou quatro descartes, o primeiro amigo baixou todas as cartas em suas mãos e gritou: ‘Bati. Takará!’. Surpreso e sem entender o porquê do resultado, o outro amigo continuou jogando e vendo as sucessivas vitórias daquele que o havia convidado para o jogo. Cansado de perder, imaginou que a única regra válida para a aquele jogo seria a vitória de quem primeiro gritasse que havia vencido. E assim procedeu. Antes que o primeiro amigo batesse, ele se antecipou e gritou: ‘Bati. Takará!’. O seu amigo, porém, não se comoveu. Imediatamente deu a resposta: ‘Não, senhor. Eu bati. Olhe aqui: takará duplo!’. E jogou suas estranhas cartas sobre a mesa.
Quando as regras são criadas pelas razões superiores do aplicador, fundadas em suas conexões axiológicas e em seu ponto de vista, não há como se construir um sistema jurídico com um mínimo de segurança para os seus destinatários. O direito passa a ser área afeta aos adivinhos ou profetas, ou então um assustador jogo de Takará. Sem um mínimo de sentido comum à comunidade do discurso, vivido atematicamente no plano da ação comunicativa, não há como se construir um discurso prescritivo vivenciado simbolicamente como objetivação social que qualifica juridicamente o fático”.
10. Considerações finais
O uso regular da justiça gratuita merece todo o respaldo do Poder Judiciário, mediante a adoção de uma política pública institucional de caráter nacional, inclusive em nível orçamentário, para atender, quantitativa e qualitativamente, às variadas necessidades do expressivo número de jurisdicionados hipossuficientes, em razão das profundas desigualdades sociais existentes no Brasil.
Certamente, a médio prazo, a tendência será de aperfeiçoamento do sistema, de forma a dar maior amplitude ao direito fundamental do acesso à justiça, aperfeiçoar a segurança jurídica e conferir maior efetividade às decisões judiciais.
De modo diverso, o uso abusivo da justiça gratuita merece ser veementemente reprimido, com todo o rigor da lei, porquanto a cada porta que é aberta indevidamente para quem não faz jus ao benefício, outra se fecha para o verdadeiramente necessitado, porque os recursos orçamentários, humanos e estruturais, para absorver a cultura do demandismo judicial desenfreado em tempos de crise econômica, são limitados e esgotáveis.
Sabe-se que, a par disso, o porvir reclama outras estratégias inovadoras, como a abolição dos recursos meramente protelatórios, especialmente de figuras inexplicáveis como os “embargos infringentes” que, ao invés de terem sido levados à extinção pura e simples, foram alçados pelo NCPC à categoria de recurso automático, rebatizado por processualistas com o pomposo nome de “incidente de ampliação da colegialidade” ou “incidente da colegialidade qualificada” e jocosamente apelidado de “incidente de embarguinhos”, além da redução da injustificável inflação normativa brasileira e do atraso gerencial em todos os poderes, bem como um maior rigor no exame dos elementos informativos do interesse processual para ingressar na via judicial, e, sobretudo, de criar a cultura da conciliação na sociedade brasileira, em âmbito nacional, com a finalidade de aperfeiçoar o planejamento estratégico e garantir o cumprimento da execução orçamentária anual dos tribunais.
Definitivamente, pois, resta manifesto que a postulação e o deferimento indiscriminado da justiça gratuita, em vez de ampliar, causa sérios embaraços ao direito de ação dos hipossuficientes, porquanto o amplo acesso à justiça não impõe como pré-requisito a gratuidade universal do processo judicial, mas o acesso à ordem jurídica justa, mediante regras predefinidas para disciplinar a concessão do benefício, de preferência com base em critérios conjugados de renda e patrimônio.
É bom deixar claro que a indispensável adoção de critérios objetivos e mais rígidos jamais pode perder de vista a perspectiva citada por Pedroso (2011, p. 1/2) de que:
“Em termos amplos, [...] como defende Jacques Faget (1995), [...] o direito de acesso ao direito significa, num plano simbólico, a conquista da cidadania, o acesso ao estatuto de sujeito de direito e de direitos e, num plano instrumental, o acesso à informação sobre o direito e a capacidade de efetivação dos direitos, seja ofensivamente (mettre en oeuvre un droit), seja defensivamente (faire respecter son droit). Considerado em termos mais restritos, o acesso ao direito e à justiça representa os meios pelos quais os indivíduos conseguem aceder à informação jurídica e aos serviços jurídicos e resolver os conflitos em que são interessados, incluindo, assim, o acesso aos tribunais, à informação e consulta jurídica e aos mecanismos extrajudiciais de resolução de litígios (Barendrecht e Maurits, 2006). O acesso à justiça e ao sistema de justiça como um todo são, pois, matérias fundamentais para a vida em sociedade, daí que vários autores considerem que o objetivo principal de um regime de acesso à justiça deva ser o de assegurar que todos os cidadãos conseguem efetivar os seus direitos ao mais baixo custo, não só em termos de custos de litigação, mas também em termos de custos sociais (Evans, 1997)”.
Isso significa dizer que a gratuidade da justiça deve ser concedida para quem, de fato, precisa do benefício, sob pena de se abrir exageradamente a porta de entrada do Poder Judiciário e, no fim, se tornar extremamente complicado de encontrar a saída, a tempo e modo devidos, por causa da sobrecarga de processos e escassez de recursos humanos, estruturais e orçamentários.