Sumário. 1.As novas pessoas jurídicas de direito privado. 1.1.Evolução da pessoa jurídica no direito brasileiro. 1.2. A sistemática do novo Código Civil e a alteração em comento. 1.3. Uma crítica da técnica. 2.Exemplos do Direito Comparado. 2.1.Direito Português. 2.2.Direito Espanhol 3.Lacuna normativa e seu suprimento. 3.1. Normas e princípios constitucionais. 4.Conclusão
1.O advento do novo Código Civil (Lei 10.406/2002) trouxe um certo constrangimento a algumas entidades cujo limbo jurídico perpassa longa data. Partidos políticos e organizações religiosas, vendo-se acossados pelo rígido regramento legal do disposto nos artigos 53 e seguintes do referido diploma legal, não demoraram em buscar uma saída. Viram, portanto, tais limitações rapidamente acabarem com o advento da Lei 10.825, de 22 de dezembro de 2003 que já alterava o novíssimo diploma legal em comento (basta lembrar que o Código Civil brasileiro entrou em vigor em janeiro do mesmo ano, após mais de um quarto de século de discussão). É como se, no apagar das luzes e no acender dos fogos das festas de final de ano, se descobrisse que vinte e cinco anos de discussão deixaram para trás algo sobejamente importante, a criação de mais duas pessoas jurídicas autônomas: organizações religiosas e partidos políticos. Por hora, os clubes de futebol ficaram de fora desse repentino arroubo do legislador brasileiro.
1.1.O direito brasileiro tardou a reconhecer personalidade a entidades abstratas. O Código Comercial de 1850 era omisso a respeito, de modo que larga controvérsia veio a manter a dúvida sobre o reconhecimento de sua real personalidade. A partir do reconhecimento jurídico dos armazéns gerais e sindicatos (Decreto 1.102, de 21 de novembro de 1903, e a Lei 1.637, de 5 de janeiro de 1907, respectivamente) e posteriormente, com o advento do novo Código Civil (Lei 3.071, de 01 de janeiro de 1916), se consolidou a idéia de entidades fictícias com personalidade jurídica própria. Dispunha o art. 16 do Diploma Civil revogado que as pessoas jurídicas de direito privado eram apenas as sociedades civis, religiosas, pias, morais, científicas ou literárias, as associações de utilidade pública, as fundações e as sociedades mercantis. Mais adiante regulava numa mesma seção as sociedades ou associações civis. Pouco afeito a conceitos, o vetusto Código não deixava bem clara a distinção entre as diversas entidades elencadas no inciso I do art. 16, nem dava tratamento especial a alguma delas em detrimento das demais.
1.2.O novo Código Civil, como já dito, discriminou todas as pessoas jurídicas de direito privado e até mesmo conceituou algumas delas. Com as associações, ficou a incumbência de agregar todas as entidades coletivas de fins não econômicos (art. 53), deixando as coletividades de fins econômicos para a tipologia das sociedades (art. 981), permanecendo as fundações como entidades compostas unicamente por bens (art. 62-69).Tal taxatividade levava entidades religiosas e partidos políticos (estes últimos, que desde 1995, através da Lei 9.096, chegaram a ser considerados figuras autônomas) à alçada das regras referentes às associações. A alteração em comento recriou a figura jurídica própria do partido político e criou a nova entidade jurídica designada de organização religiosa.
Açodado pareceu o legislador em inovar num campo em que a experiência milenar ainda não ousara com tanto vigor. Se o Direito Civil é das mais antigas tradições jurídicas que se tem notícia (e se poderia dialeticamente contra-argumentar: portanto, cliente de contínuas mudanças), também é verdade que novas figuras jurídicas em regra nascem da experiência do direito na prática, tais como a jurisprudência, os usos e costumes. Figuras jurídicas novas, incluídas pelo legislador no novo Código Civil, tais como a lesão e o estado de perigo, a desconsideração da personalidade jurídica, a cláusula rebus sic stantibus, os direitos de personalidade (incluindo os da pessoa jurídica) só para citar alguns exemplos, são fruto de uma construção de muitas mentes e mãos, do longo diálogo entre a dogmática e a jurisprudência, entre o pensador e o aplicador do direito ante os fatos sociais, cuja vagarosa síntese foi precedida de debate e prática, decisões inovadoras e comentários de pessoas que pensam e estudam o direito (contra e a favor dessas mudanças), e não do súbito brilhantismo de um punhado de mentes isoladas. O direito, mais do que qualquer outro ramo do conhecimento, não admite leis reveladas a poucos iluminados desde os tempos de Moisés.
A manualística, apanhada de surpresa, devagar mas firmemente vem enxergando e traduzindo a novidade. Assim, há quem já ouse afirmar que "o dedo corporativo se mostra evidente na iniciativa e no espírito dessa nova disposição legal." [1]
2.Organizações religiosas são entidades que, no Estado democrático de direito, cingem-se na garantia constitucional da liberdade de culto e de associação (CF/88, art. 5º XVII e VI, respectivamente) para defender-se. Tal recurso aos direitos fundamentais, aliás, pressupõe outra assertiva, não tão simpática quanto a primeira, a de que tais entidades, sendo tuteladas pelas referidas garantias constitucionais, também estão sujeitas a elas, no sentido de respeitar de igual modo os direitos fundamentais dos seus participantes. De um certo modo a característica intersubjetiva do Direito enquanto fenômeno social se matiza de fortes cores neste contexto.
2.1.O direito de associação copulava, até dezembro de 2003, nas atividades sem finalidade econômica, através da figura jurídica da associação, regulada pela norma civil a partir do já citado artigo 53. A título comparativo, vê-se que igual tratamento dá o Código Civil Português, ao afirmar que "ARTIGO 157º. (Campo de aplicação) As disposições do presente capítulo são aplicáveis às associações que não tenham por fim o lucro económico dos associados, às fundações de interesse social, e ainda às sociedades, quando a analogia das situações o justifique." [2] Optando pela forma aberta, a norma civil portuguesa não faz distinção entre as diversas formas e finalidades que as associações podem revestir, seja artística, religiosa, cultural ou de entretenimento.
2.2.A experiência aqui, seja da práxis jurídica nacional, seja estrangeira, foi deixada claramente de lado. Se é o caso de se conceder tratamento especial às organizações religiosas, não seria necessária a criação de uma figura jurídica autônoma. O direito espanhol, através da Lei Orgânica 1/2002, de 22 de março do mesmo ano, reguladora do direito de associação, cataloga entidades como partidos políticos e organizações religiosas como associações em geral. Veja-se o teor da exposição de motivos:
"I - El derecho fundamental de asociación, reconocido en el artículo 22 de la Constitución Española, y de antigua tradición en nuestro constitucionalismo, constituye un fenómeno sociológico y político, como tendencia natural de las personas y como instrumento de participación, respecto al cual los poderes públicos no pueden permanecer al margen.
Nuestra Constitución no es ajena a estas ideas y, partiendo del principio de libertad asociativa, contiene normas relativas a asociaciones de relevancia constitucional, como los partidos políticos (artículo 6). los sindicatos (artículos 7 y 28) las confesiones religiosas (artículo 16) las asociaciones de consumidores y usuarios (artículo 51) y las organizaciones profesionales (artículo 52) y de una forma general define, en su artículo 22, los principios comunes a todas las asociaciones, eliminando el sistema de control preventivo, contenido en la Ley 191/1964, de 24 de diciembre, de Asociaciones, y posibilitando su ejercicio.
Consecuentemente, la necesidad ineludible de abordar el desarrollo del artículo 22 de la Constitución, mediante Ley Orgánica al tratarse del ejercicio de un derecho fundamental (artículo 81) implica que el régimen general del derecho de asociación sea compatible con las modalidades específicas reguladas en leyes especiales y en las normas que las desarrollan, para los partidos políticos, los sindicatos, las asociaciones empresariales, las confesiones religiosas, las asociaciones deportivas, y las asociaciones profesionales de Jueces, Magistrados y Fiscales. Con este objetivo se establece un régimen mínimo y común, que es, además, el régimen al que se ajustarán las asociaciones no contempladas en la legislación especial." [3]
Claro é o paradigma do texto normativo espanhol, que parece ser de todo ignorado pelos nossos legisladores: as diversas associações (no sentido lato, i.e., manifestações sociais de agregação social) podem sofrer tratamento diferenciado pelo legislador, sem que, com isto, se criem deformidades técnico-jurídicas, a exemplo dessas novas figuras alçadas pela malfadada alteração do Código Civil.
3.Faz-se neste ponto importante frisar que, quaisquer que sejam as normas internas destas entidades e seus procedimentos em relação aos direitos e deveres de seus membros, todas elas estão sujeitas às garantias constitucionais básicas, tais como o contraditório e a ampla defesa, a dignidade da pessoa humana, a igualdade entre outras, bem como ao preenchimento de lacunas quando carentes as normas internas ou legisladas a respeito. Assim, "para além de vincularem todos os poderes públicos, os direitos fundamentais exercem sua eficácia vinculante também na esfera jurídico-privada, isto é, no âmbito das relações jurídicas entre particulares." [4]
3.1.A técnica jurisprudencial hodierna avançou muito em termos de admitir a eficácia dos direitos fundamentais nas relações privadas, lançando mão, com freqüência, de argumentação principiológica para suprir lacunas normativas relacionadas ao trato privado. A ordem jurídica já não é composta apenas por regras, mas princípios que condicionam a aplicação destas mesmas regras. A lei, na experiência jurisprudencial moderna, deixa de ser o totem idolatrado dos positivistas e torna-se apenas mais um dado da construção da decisão justa no caso concreto. Seria uma ilusão pensar que tais entidades, malgrado lancem mão dos seus direitos constitucionais, estariam entretanto de fora de sujeitar-se a eles quando houver choque de interesses entre a norma garantidora e a práxis.
3.2.Além da inserção constitucional, as tradicionais técnicas hermenêuticas pode ser empregadas para suplementar regras privadas ou legisladas. Tal busca pela completude da ordem jurídica permite ao magistrado, em situações-limite, a criação de norma pelos recursos da analogia, princípios gerais do direito, costumes e até mesmo o seu próprio senso de justiça: a eqüidade. É muito amplo o espectro de aplicação desses instrumentos, de modo a garantir que nenhum litígio entre o indivíduo e seu grupo fiquem sem solução ou ao arbítrio do tiranete de plantão que ocupe algum cargo de direção numa destas entidades.
4.Desta forma, pode ser inócua e inútil tal alteração enfocada em tela. O remendo normativo comunga do infeliz pecado de tantas outras regras vaidosamente editadas pelo legislador: pretensão e ineficácia para os fins colimados.
Obras citadas
FREITAS GOMES, Luiz roldão. Noção de pessoa jurídica no direito brasileiro. http://www.femperj.org.br/artigos/civpro/acp15.htm Disponível em 17/08/2004.
SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia jurídica dos direitos fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003.
VENOSA, Silvio de Salvo. Direito Civil – Parte Geral. São Paulo: Atlas, 2004.
Notas
1 VENOSA, Silvio de Salvo. Direito Civil – Parte Geral. São Paulo: Atlas, 2004, 4ª ed., p. 298.
2 Código Civil Português (Decreto-Lei 47.344, de 25 de novembro de 1966.)
3 Exposição de motivos da Lei Orgânica 1/2002, de 22 de março de 2002.
4 SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia jurídica dos direitos fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003, p. 353.