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O DIREITO PENAL MILITAR E A LEI MARIA DA PENHA:

DISCUSSÃO SOBRE A FAMÍLIA, PROTEÇÃO DA MULHER E DA REGULARIDADE DAS INSTITUIÇÕES MILITARES

Agenda 26/01/2018 às 13:57

DISCUSSÃO SOBRE A FAMÍLIA, PROTEÇÃO DA MULHER E DA REGULARIDADE DAS INSTITUIÇÕES MILITARES.

RESUMO

O presente estudo expõe a problemática existente, diante da qual se deparam os operadores do Direito, frente a situações, in thesi, amparadas pela Lei nº 11.340/06, denominada Lei Maria da Penha, que tão somente incide na legislação penal comum, quando envolvam a mulher militar da ativa, vítima de violência de gênero, e o(a) agressor(a) também militar da ativa, ensejando discussões homéricas quanto à sua aplicação no caso concreto, frente à legislação penal militar. Buscou-se, através de pesquisas bibliográficas, analisar as concepções de estudiosos, doutrinadores e juristas acerca deste delicado tema, a fim de elucidá-lo, sob o ponto de vista da família, proteção da mulher e da regularidade das instituições militares. O que se coloca em questão são direitos fundamentais, porém, de um lado, relacionados à violência de gênero e, de outro, à regularidade das instituições militares. Dessa forma, enumeram-se três teorias: Teoria do Crime Comum, na medida em que a ofensa restringe-se ao âmbito doméstico-familiar ou às relações íntimas de afeto; Teoria do Crime Militar, quando essa ofensa extrapola esses domínios, afetando a regularidade das instituições militares, cujos princípios fundamentais são a hierarquia e a disciplina e; Teoria Mista ou Teoria Conciliadora, que tipifica a conduta como crime militar, aplicando-se os institutos protetivos da Lei Maria da Penha. Portanto, tal entendimento não é pacífico, entretanto, com argumentos sólidos, demonstra-se que atualmente esta última teoria (Conciliadora) remedeia a problemática de maneira mais acertada. O avanço social, que promoveu o acesso das mulheres aos quadros das Forças Armadas e Auxiliares, não fora previsto ou fora negligenciado pelo legislador, que não contemplou o Direito Penal Militar, como sempre olvidado, fomentando tais discussões acerca do assunto, dessa forma, conclui-se que para a exata resolução do problema, faz-se extremamente necessário e urgente uma reforma da legislação penal castrense.

Palavras-chave: Família. Mulher. Instituições Militares. Lei Maria da Penha. Direito Penal Militar.

ABSTRACT

The present study exposes the existing problematic, against of which the operators of law came across, faced with situations, in thesi, protected by Law nº 11.340/06, denominated Maria da Penha Law, which only deals with common criminal law, when involving the military woman of the active, victim of gender violence, and the aggressor also military of the active, leading to Homeric discussions as to its application in the specific case, in relation to military criminal legislation. Through bibliographical research, it was sought to analyze the conceptions of scholars, indoctrinator and jurists on this delicate subject, in order to elucidate it, from the point of view of the family, protection of woman and of the regularity of military institutions. What is at issue are fundamental rights, but, on the one hand, related to gender-based violence and, on the other, to regularity of military institutions. In this way, three theories are enumerated: Common Crime Theory, insofar as the offense is confined to the domestic-family sphere or the intimate relations of affection; Military Crime Theory, when this offense extrapolates these domains, affecting the regularity of military institutions, whose fundamental principles are the hierarchy and the discipline and; Mixed Theory or Conciliatory Theory, which typifies conduct as a military crime, applying the protective institutes of the Maria da Penha Law. Therefore, this understanding is not peaceful, however, with solid arguments, it is demonstrated that currently this latter theory (Conciliatory) corrects the problem in a more correct way. The social advance, which promoted the access of women to the staff of the Armed Forces and Auxiliary, had not been foreseen or had been neglected by the legislator, who did not contemplate Military Criminal Law, as always forgotten, fomenting such discussions on the subject, in this way, it is concluded that for the exact resolution of the problem, it is made extremely necessary and urgent a reform of the military criminal legislation.

Key-words: Family. Woman. Military Institutions. Maria da Penha Law. Military Criminal Law.

1 INTRODUÇÃO

A família, Instituição mater, base fundamental da sociedade, com a evolução dos tempos e a globalização, também sofreu mudanças em sua constituição e finalidade, influenciadas por hábitos e costumes que, consequentemente, repercutiram no Direito, criando situações inovadoras perante a real necessidade da sociedade, dessa forma, a definição de “entidade familiar” prevista em nossa Carta Magna tornou-se ultrapassada:

Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado.

[...]

§ 3º Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento.

§ 4º Entende-se, também, como entidade familiar a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes. (BRASIL, 1988, grifo nosso).

Nesse sentido, a Instituição Família passou e vem passando por mudanças, das quais precisamos nos adaptar, pois vivemos em um Estado Democrático de Direito e a nossa Constituição Federal, em seu artigo 3º, tratou dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, destacando-se, respectivamente, os incisos I e IV, a saber, “construir uma sociedade livre, justa e solidária” e “promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”.

Dessa forma, aquele padrão preestabelecido pela sociedade e consolidado nas leis sofreu modificações, as concepções a respeito do tema foram alterando-se, sendo comum encontrarmos, atualmente, a família monoparental - constituída pelo pai ou mãe e
o filho; a família formada apenas por irmãos; por primos; por tios e sobrinhos; por avós e
netos; a família formada por homossexuais, sem filhos, com filhos de um deles
ou até com filhos adotados conjuntamente etc.. Portanto, hoje, a finalidade dessa união chamada Família não mais se resume na geração de filhos, mas sim na construção de uma relação de afeto:

A liberação sexual, sem dúvida, em muito contribuiu para a formação desse novo perfil de família. Não há mais necessidade do casamento para uma vida sexual plena. (...) O objetivo dessa união não é mais a geração de filhos, mas o amor, o afeto, o prazer sexual. Ora, se a base da constituição da família deixou de ser a procriação, a geração de filhos, para se concentrar na troca de afeto, de amor, é natural que mudanças ocorressem na composição dessas famílias. Se biológica-mente é impossível duas pessoas do mesmo sexo gerarem filhos, agora, como o novo paradigma para a formação da família – o amor, em vez da prole – os “casais” não necessariamente precisam ser formados por pessoas de sexo diferentes. (MASCHIO, 2002, p. 1).

Entretanto, essa união baseada no afeto, no amor, por motivações diversas, às vezes transforma-se no ódio, gerando discussões e violência, o que frequentemente observamos em nosso cotidiano e na mídia, ocasionando, quando se torna insustentável, a desestruturação da entidade familiar.

O Estado, através de seu ordenamento jurídico, que deve evoluir com a sociedade, regulando as mudanças que ocorrem em seu meio, visando a preservar a Instituição Família, garantiu no § 8º do art. 226 da CF/88 assistência, bem como a criação de mecanismos para combate à violência: “O Estado assegurará a assistência à família na pessoa de cada um dos que a integram, criando mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações.”.

Destarte, atualmente, como instrumento de maior importância no combate à violência familiar, temos a Lei 11.340/06, a famigerada “Lei Maria da Penha” (LMP), cuja finalidade é coibir e prevenir a violência de gênero, isto é, proteger a mulher, que normalmente figura no polo passivo da relação, em uma condição vulnerável de hipossuficiência, de ordem física e/ou econômica, sendo subjulgada pelo(a) agressor(a).

A LMP apresenta-se de forma extremamente ampla, no que se refere ao seu alcance, atinge o seio familiar, que compreende a comunidade de pessoas que são ou se consideram aparentadas, unidas por laços naturais, por afinidade ou vontade expressa; a unidade doméstica, caracterizada por um espaço físico de convívio permanente de pessoas; além de qualquer relação íntima de afeto, sendo indiferente a existência de coabitação, com o(a) agressor(a) que conviva ou tenha convivido. Outrossim, com relação à violência, exemplifica as seguintes formas: física, psicológica, sexual, patrimonial e moral.

Nesse contexto, sua atuação se dá por meio de uma série de mecanismos protetivos à mulher vítima de agressão: de cunho preventivo; assistencial; disciplinando a atuação de órgãos policiais, Ministério Público, Judiciário, Defensoria Pública e; através da aplicação de medidas protetivas de urgência, que obrigam o(a) agressor(a) ou, aplicáveis à ofendida.

Trata-se, portanto, de uma lei mista, que tão somente incide no Direito Penal Comum (DPC), abordando aspectos penais (majorando a pena na legislação penal comum), processuais (estabelecendo ritos em processos) e tutelares (determinando medidas protetivas).  Dessa forma, este diploma legal configura-se de maneira bastante completa, exceto por um detalhe: o Direito Penal Militar (DPM), ramo autônomo do Direito, foi relegado pelo legislador (como sempre), não sendo contemplado pela LMP.

Qual o prejuízo disso? Voltemos a dizer, a legislação deve acompanhar a evolução da sociedade, pois que o nosso legislador olvidou-se da existência do outro ramo do Direito – o Direito Penal Militar –, ao qual se submetem, essencialmente, os militares (homens e MULHERES) que, em dado momento de suas vidas, podem vir a se relacionar entre si, constituir uma família e ter filhos e/ou FILHAS, que também poderão escolher a profissão militar.

Nesse cenário, esses homens e mulheres militares, unidos entre si por relações doméstico-familiares ou íntimas de afeto, assim como qualquer ser humano, também estarão suscetíveis aos males dessa sociedade, entre eles a violência, que poderá acometer a mulher militar aos moldes da LMP, caracterizando, em tese, um crime comum, portanto previsto no Código Penal Comum (CPC), no entanto, tal conduta também poderá estar tipificada com igual definição no Código Penal Militar (CPM), tratando-se, atendidas certas condições, em tese, de crime impropriamente militar[1], desse modo, chegamos a nosso impasse:

Pela conduta praticada (única), poderia o(a) agente militar responder penalmente pelos crimes previstos, em ambos os Códigos? Por exemplo, responderia por lesão corporal no CPC (§ 9º do art. 129) e, também, no CPM (art. 209)? Até um leigo concordaria ser uma imposição excessivamente injusta. Pois bem, obviamente, em virtude do principio non bis in idem.

Diante desse problema, surgem três teorias a respeito da natureza jurídica do fato: Teria do Crime Comum, Teoria do Crime Militar e Teoria Mista ou Conciliadora. Esta última tipifica a conduta como crime militar, mas aplica os institutos protetivos da Lei Maria da Penha, revelando-se, atualmente, como a mais indicada para remediar a questão, enquanto aguardamos uma reforma na legislação penal castrense, conforme será demonstrado ao longo deste trabalho.

2 DIREITO PENAL MILITAR

O Direito Penal Militar trata-se de um ramo autônomo do Direito, desconhecido por muitos operadores desta ciência, pois é olvidado desde os bancos escolares. Antigamente, o estudo das normas penais castrenses possuía caráter obrigatório nas faculdades de Direito, porém, atualmente, é regado, destinando-se àqueles que, notoriamente, buscam uma especialização, apreciam e, de alguma forma, identificam-se com a profissão militar.

Esse ramo é de grande importância no cenário jurídico, pois regula não, simplesmente, uma atividade profissional, mas sim, a vida de uma classe distinta de indivíduos, que se obrigam a enfrentar o perigo, entregando suas vidas, caso a situação assim o exija, denominando-se “tributo de sangue” (tributus sanguinis). Tal circunstância específica traduz-se em um juramento realizado pelo militar quando ingressa na corporação.

Essa “atividade”, em virtude de sua previsão e extrema relevância constitucional (assunto a ser abordado adiante), entre outras atribuições, versa  a respeito da – defesa da Pátria, de sua soberania, Instituições, da lei e da ordem, bem como da polícia ostensiva e preservação da ordem pública, além da execução de atividades de defesa civil –, elevando-se à categoria de missão.

As Instituições Militares, que dispõe de grande efetivo e aparato bélico, agem em nome do Estado, a fim de cumprir sua missão constitucional, inclusive com o uso da força (proporcional, moderada e necessária), dessa forma, faz-se necessário a existência de mecanismos de controle rígidos, evitando-se dissidências, rebeliões, revoltas, entre outros atos de indisciplina, que venham afrontar o regime ou o Estado Democrático de Direito.

Nesse sentido, as bases fundamentais do diploma repressor castrense são a “hierarquia” e a “disciplina”, conforme podemos verificar nos arts. 42 e 142 da CF/88:

 Art. 42 Os membros das Polícias Militares e Corpos de Bombeiros Militares, instituições organizadas com base na hierarquia e disciplina, são militares dos Estados, do Distrito Federal e dos Territórios. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 18, de 1998).

[...]

Art. 142. As Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem. (BRASIL, 1988, grifo nosso).

Portanto, dentre os bens jurídicos a serem protegidos na vida castrense, a “hierarquia” e a “disciplina” destacam-se como os de maior relevância, pois são os pilares do militarismo, assim, elevados a bem jurídico constitucionalmente tutelado. Dessa forma, esses valores sustentam a regularidade das instituições militares, isto é, das Forças Armadas (FA) e Forças Auxiliares (FAux).

Essa regularidade caracteriza-se por um modo de vida singular, com um ordenamento jurídico próprio, ao qual se submetem os militares, consubstanciando-se pelo fiel cumprimento de leis, estatutos, códigos, regulamentos, instruções, ordens de superiores (verbais ou escritas) etc., rotinas regradas, comportamento adequado..., evidenciando uma identidade coletiva:

O militar (federal ou estadual) no exercício de suas atividades constitucionais fica sujeito às leis especiais, entre elas o Código Penal Militar, o Código de Processo Penal Militar, o Estatuto dos Militares, e os regulamentos disciplinares, estaduais ou federais. O Código Penal Militar traz os crimes militares em tempo paz, e em tempo de guerra. O regulamento disciplinar é o diploma castrense que trata das transgressões disciplinares, às quais estão sujeitos os militares pela inobservância dos princípios de hierarquia, disciplina e ética. (ROSA, 2007, p. 10).

Dessa forma, além dos bens da vida, tendo em vista a missão constitucional desempenhada pelas Forças Armadas e Auxiliares, destinadas a garantir a segurança externa do Estado e a ordem interna, direta ou indiretamente, sempre estará sendo tutelada a regularidade das instituições militares, de maneira que o bem jurídico penal militar poderá ser composto, integrando-se à tutela dos direitos fundamentais.

Assim, acerca da eventual complexidade do bem jurídico penal militar, assevera Neves e Streifinger (2005, p. 16) que:

[...] qualquer que seja o bem jurídico evidentemente protegido pela norma, sempre haverá, de forma direta ou indireta, a tutela da regularidade das instituições militares, o que permite asseverar que, ao menos ela, sempre estará no escopo de proteção dos tipos penais militares, levando-nos a concluir que em alguns casos teremos um bem jurídico composto como objeto de proteção do diploma penal castrense. (NEVES; STREIFINGER, 2005, p.16).

Ainda, conforme Santos (2009), o Direito Penal Militar trata-se de uma ordem normativa especial, porque se aplica essencialmente a militares, em virtude da natureza do bem jurídico tutelado:

[...] trata-se de uma ordem normativa especial, com princípios e diretrizes próprias, na qual a maioria das disposições é aplicável somente aos militares e, excepcionalmente, a civis que cometem crimes contra as instituições militares, diferentemente do que ocorre no Direito Penal comum, em que as normas aplicam-se a todos os cidadãos, indistintamente. O Direito Penal Militar é especial não só porque se aplica, em princípio, a uma classe ou categoria de indivíduos, mas também pela natureza do bem jurídico tutelado, as instituições militares, com princípios rígidos de hierarquia e disciplina, armadas e encarregadas de cuidar da defesa territorial, da ordem interna e da segurança das pessoas, em situações adversas ou que gerem conflitos. (SANTOS, 2009, p. 19).

Todas essas peculiaridades inerentes ao DPM tornam-no, portanto, um ramo especial e autônomo do Direito que, igualmente, exige uma justiça especializada, dada a importância da missão constitucional realizada pelas FA e FAux, habituada e conhecedora das normas castrenses, da vida militar, da estrutura e funcionamento das Organizações Militares, características fundamentais para termos um julgamento isento e justo.

É necessário que os diversos fatores intrínsecos e extrínsecos (influenciadores de conduta), tais como elementos psicológicos e culturais, riscos, aspectos técnicos, operacionais, criminológicos, sejam plenamente analisados e considerados durante o processo, a fim de incutir no indivíduo o temor da pena, caso viole os limites legais, bem como garantir-lhe segurança e uma retaguarda jurídica no desempenho de suas funções, refletindo em bons serviços prestados à sociedade.

Assim, de acordo com Silva (2009):

[...] a finalidade das Justiças Militares é garantir, no âmbito de sua
competência especializada, a efetiva prestação jurisdicional, com celeridade
e independência, protegendo os bens jurídicos tutelados pela lei penal
militar, controlando as ações e atos disciplinares, visando a manutenção da
ordem, da disciplina e da hierarquia das instituições militares. (SILVA, 2009, p. 13).

Conforme veremos adiante, a Justiça Militar possui previsão expressa na Constituição Federal e competência para processar e julgar os crimes militares, próprios ou impróprios, previstos no Código Penal Militar. Divide-se em Justiça Militar Federal e Justiça Militar Estadual: a primeira, competente para processar e julgar militares (federais e estaduais) e civis; enquanto, a segunda, competente para processar e julgar os policiais militares e bombeiros militares (militares dos Estados).

Ainda, em relação à Justiça Militar Estadual, a CF/88, em seu art. 125, § 3º, autorizou a sua criação, por meio de lei estadual, mediante proposta do Tribunal de Justiça:

Art. 125. Os Estados organizarão sua Justiça, observados os princípios estabelecidos nesta Constituição.

[...]

§ 3º A lei estadual poderá criar, mediante proposta do Tribunal de Justiça, a Justiça Militar estadual, constituída, em primeiro grau, pelos juízes de direito e pelos Conselhos de Justiça e, em segundo grau, pelo próprio Tribunal de Justiça, ou por Tribunal de Justiça Militar nos Estados em que o efetivo militar seja superior a vinte mil integrantes. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 45, de 2004). (BRASIL, 1988, grifo nosso).

Portanto, em destaque, o segundo grau será constituído pelo “próprio Tribunal de Justiça” ou, somente nos Estados cujo efetivo militar for superior a vinte mil integrantes, “por  Tribunal de Justiça Militar”. Atualmente, embora todas as unidades da federação possuam Justiça Militar Estadual, apenas três Estados possuem Tribunal de Justiça Militar (Minas Gerais, Rio Grande do Sul e São Paulo).

Quanto ao Ministério Público, em âmbito federal, temos a previsão constitucional no art. 128, inc. I, “c”, que define um órgão próprio, especializado no DPM, “o Ministério Público Militar”, porém  nos Estados não existe a especialização do órgão, isto é, os promotores e procuradores de justiça, pertencem à carreira do Ministério Público Estadual e são designados para atuarem junto a Corte Castrense.

No DPM, o sujeito passivo de todos os crimes militares, direta ou indiretamente, será o Estado, representado pela Administração Pública Militar, Federal ou Estadual, em decorrência da relevância do bem jurídico tutelado (regularidade das instituições militares), nesse sentido, a ação penal é pública, sendo promovida, privativamente, pelo Ministério Público (Militar ou Estadual).

Em regra, a ação penal militar é pública incondicionada, contudo o CPM também prevê a possibilidade da ação penal pública condicionada, que dependerá de requisição do Ministério Militar, então “ Ministérios da Marinha de Guerra, do Exército e da Aeronáutica Militar”, atualmente, Ministério da Defesa, ou do Ministério da Justiça, nos casos expressamente estabelecidos, conforme arts. 121 e 122 do CPM c.c. art. 29 do Código de Processo Penal Militar (CPPM):

Art. 121. A ação penal sòmente [sic] pode ser promovida por denúncia do Ministério Público da Justiça Militar.

Art. 122. Nos crimes previstos nos arts. 136 a 141, a ação penal, quando o agente for militar ou assemelhado, depende da requisição do Ministério Militar a que aquêle [sic]  estiver subordinado; no caso do art. 141, quando o agente fôr [sic] civil e não houver co-autor [sic] militar, a requisição será do Ministério da Justiça. (BRASIL, 1969b).

Art. 29. A ação penal é pública e sòmente [sic] pode ser promovida por denúncia do Ministério Público Militar. (BRASIL, 1969c).

                Caso o particular também figure no polo passivo, existe a possibilidade da propositura de queixa, através da “ação penal privada subsidiária da pública”, quando esta não for intentada no prazo legal, pois apesar de não prevista na legislação militar, a CF/88, em seu art. 5º, inc. LIX, não faz nenhuma distinção entre o DPC e o DPM. Se o Ministério Público não oferecer a ação no prazo estabelecido em lei, o particular ofendido ou o seu representante legal poderá fazê-lo: “LIX - será admitida ação privada nos crimes de ação pública, se esta não for intentada no prazo legal;” (BRASIL, 1988).

Destarte, por se tratar de norma constitucional de eficácia plena, nesse aspecto modificou o CPM e o CPPM, afastando a exclusividade da ação penal militar do Ministério Público no caso de inércia. Por exemplo, em um caso de homicídio, no qual os envolvidos (autor e réu) sejam militares, se o Ministério Público não propuser a ação penal no prazo previsto, a família da vítima poderá constituir um advogado para que este proceda ao oferecimento de uma queixa-crime, conforme art. 3º, “a”, do CPPM c.c. art. 30 do Código de Processo Penal Comum (CPPC):

Art. 3º Os casos omissos neste Código serão supridos:

a) pela legislação de processo penal comum, quando aplicável ao caso concreto e sem prejuízo da índole do processo penal militar; (BRASIL, 1969c).

Art. 30.  Ao ofendido ou a quem tenha qualidade para representá-lo caberá intentar a ação privada. (BRASIL, 1941).

Essa hipótese assegurada pela CF/88 permite uma efetividade à ação penal, cuja interessada também é a vítima, que pode, inclusive, recorrer à Justiça, a fim de receber uma indenização por danos morais e materiais. Além disso, o Ministério Público não perde a titularidade da ação penal, podendo a qualquer momento com fundamento nas normas processuais, aditar a queixa, repudiá-la e oferecer denúncia substitutiva (art. 29 do CPPC).

Em virtude desse regime jurídico rigoroso, cabe salientar que os institutos despenalizadores presentes na Lei 9.099/1995, têm sua aplicação expressamente proibida no âmbito da Justiça Militar, de acordo com o art. 90-A do referido diploma: “As disposições desta Lei não se aplicam no âmbito da Justiça Militar. (Artigo incluído pela Lei nº 9.839, de 27.9.1999)” (BRASIL, 1995).

A Lei nº 9.099/1995, através dos critérios processuais da oralidade, simplicidade, informalidade, economia processual e celeridade, tem como objetivo a conciliação ou a transação, sempre que possível, visando a evitar uma pena privativa de liberdade, sendo este o espírito da Lei, conforme seu art. 2º.

Dessa forma, verifica-se claramente a incompatibilidade da Lei com a Justiça Castrense, que trás em seu bojo os valores da hierarquia, disciplina e ordem, constitutivos do DPM, nesse sentido, segundo Assis (1996, p. 37-44), acerca da inaplicação das medidas despenalizadoras, depreendemos o seguinte:

a) pela leitura dos arts. 29, 31 e 33 do CPPM, a regra da ação penal militar é que ela seja    pública incondicionada, sendo incoerente a exigência de representação nas lesões culposas e nas lesões leves dolosas;

b) a suspensão condicional do processo enfraquece os valores das instituições militares na medida em que a impunidade gerada pela sua propositura certamente incentivaria a quebra da disciplina;

c) a composição civil já é um dos efeitos da sentença penal condenatória, conforme preceitua o art. 109, I, do CPM;

d) as penas restritivas de direitos e de multa, prescritas no art. 76 da Lei 9.099/1995, não possuem previsão na legislação penal castrense.

Alguns doutrinadores e juristas entendem que o art. 90-A é inconstitucional, com base no Princípio da Igualdade, estabelecido no art. 5º da CF/88, que veda a “distinção de qualquer natureza”. Logo, a norma jurídica não poderia diferenciar o indivíduo militar do civil, quando se tratam de situações idênticas, como, por exemplo, em uma operação conjunta entre a Polícia Militar e a Polícia Civil, na qual um agente militar e outro civil, ambos praticam lesão corporal dolosa leve, ao conter um cidadão agressivo. O militar responderá no CPM, enquanto o civil (caso a vítima represente) responderá no CPC. Portanto, os que seguem esse posicionamento defendem a aplicação da Lei 9.099/1995, quanto aos crimes militares impróprios.

As penas previstas no CPM são divididas em duas espécies, principais e acessórias, sendo previstas, respectivamente, nos arts. 55 e 98, in verbis:

Penas principais

Art. 55. As penas principais são:

a) morte;

b) reclusão;

c) detenção;

d) prisão;

e) impedimento;

f) suspensão do exercício do pôsto [sic], graduação, cargo ou função;

g) reforma.

Penas Acessórias

Art. 98. São penas acessórias:

I - a perda de pôsto [sic] e patente;

II - a indignidade para o oficialato;

III - a incompatibilidade com o oficialato;

IV - a exclusão das fôrças [sic] armadas;

V - a perda da função pública, ainda que eletiva;

VI - a inabilitação para o exercício de função pública;

VII - a suspensão do pátrio poder, tutela ou curatela;

VIII - a suspensão dos direitos políticos. (BRASIL, 1969b, grifo do autor).

Ademais, entre outras peculiaridades do DPM, a Lei nº 12.403/2011 somente alterou a legislação processual penal comum, quanto às medidas cautelares, não se aplicando ao DPM, a exemplo da prisão temporária (Lei nº 7.960/1989), bem como do instituto da fiança, dos quais inexiste qualquer menção no Direito Penal Castrense, não obstante, o CPPC veda expressamente sua concessão, conforme o inciso II do art. 324: “Não será, igualmente, concedida fiança: [...] II - em caso de prisão civil ou militar;” (BRASIL, 1941).

A legislação processual penal castrense prevê o instituto da “menagem” (art. 263 – 269 do CPPM), que poderá ser concedido pelo juiz, nos delitos cuja pena privativa de liberdade máxima não supere a quatro anos, consideradas a natureza do crime e os antecedentes do acusado. Consiste em uma prisão-liberdade, isto é, revela dupla natureza jurídica, pois, enquanto forma de prisão provisória (menagem-prisão), não existem os rigores do cárcere, assemelhando-se a uma prisão especial e; enquanto forma de liberdade provisória (menagem-liberdade), assemelha-se à fiança no DPC, sendo uma alternativa ao cárcere.

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Diante do exposto, procurou-se apresentar um panorama geral do DPM, que embora possua um caráter especial, suas normas integram-se ao ordenamento jurídico pátrio, que deve estar em conformidade com a Carta Magna, sujeitando-se aos seus princípios fundamentais estabelecidos, dentre os quais, destacam-se os seguintes:

O Princípio da Dignidade da Pessoa Humana (inc. III do art. 1º, da CF/88), valor absoluto inerente ao ser humano, constituindo-se o princípio máximo do Estado Democrático de Direito; Princípio da Legalidade (inc. II do art. 5º, da CF/88), que visa a combater o poder arbitrário do Estado, uma vez que o cidadão somente será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa por força de normas devidamente elaboradas num processo legislativo constitucional; Princípio da Inocência (inc. LVII do art. 5º, da CF/88), que confere ao militar os mesmos direitos que são assegurados ao civil, quando é levado a julgamento perante seus pares, em decorrência da prática de ato ilícito penal, administrativo ou civil; Princípio do Contraditório e Ampla Defesa (inc. LV do art. 5º, da CF/88) e Princípio do Devido Processo Legal (inc. LIV do art. 5º, da CF/88), a respeito dos quais, Rosa (2007) afirma que:

          [...] no Direito Penal Militar, assim como no Direito Penal, ninguém pode ser condenado sem a existência de provas concretas que demonstrem a autoria e a culpabilidade. O jus libertatis é um direito fundamental do cidadão, não admitindo meras ficções para ser cerceado. A prova é feita de forma dialética, devendo existir igualdade entre defesa e acusação na busca da verdade dos fatos. No campo disciplinar, assim como ocorre no Direito Penal, vige o princípio da verdade real, e não formal, como ocorre no processo civil. (ROSA, 2007, p. 4).

2.1 REGIME CONSTITUCIONAL DOS MILITARES

           Conforme verificamos, os militares estão sujeitos a um regime jurídico peculiar,  cujos pilares fundamentais são a hierarquia e a disciplina e, exercem atividades excepcionais, elevadas a categoria de missão constitucional. Dividem-se em Forças Armadas e Forças Auxiliares, sendo Instituições permanentes e regulares, isto é, servem à Nação e integram o Estado Brasileiro, portanto, são vitalícias e essenciais à manutenção do Estado Democrático de Direito.

            As Forças Armadas têm seu regime constitucional, essencialmente, previsto no Capítulo II (“Das Forças Armadas”) do Título V (“Da Defesa do Estado e Das Instituições Democráticas”), nos arts. 142 e 143 da CF/88, transcritos abaixo, sendo constituídas pela Marinha, Exército e Aeronáutica, cuja autoridade suprema é o Presidente da República. Seus membros são denominados “militares” e sua área de atuação abrange todo território nacional (além de missões no exterior), caracterizando-se, tipicamente, pela “defesa da pátria” e “garantia dos poderes constitucionais” e, atipicamente, por iniciativa de quaisquer dos poderes constitucionais, pela “garantia da lei e da ordem”:

Art. 142. As Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem.

§ 1º Lei complementar estabelecerá as normas gerais a serem adotadas na organização, no preparo e no emprego das Forças Armadas.

§ 2º Não caberá habeas corpus em relação a punições disciplinares militares.

§ 3º Os membros das Forças Armadas são denominados militares, aplicando-se-lhes, além das que vierem a ser fixadas em lei, as seguintes disposições:

I - as patentes, com prerrogativas, direitos e deveres a elas inerentes, são conferidas pelo Presidente da República e asseguradas em plenitude aos oficiais da ativa, da reserva ou reformados, sendo-lhes privativos os títulos e postos militares e, juntamente com os demais membros, o uso dos uniformes das Forças Armadas;

II - o militar em atividade que tomar posse em cargo ou emprego público civil permanente, ressalvada a hipótese prevista no art. 37, inciso XVI, alínea "c", será transferido para a reserva, nos termos da lei;

III - o militar da ativa que, de acordo com a lei, tomar posse em cargo, emprego ou função pública civil temporária, não eletiva, ainda que da administração indireta, ressalvada a hipótese prevista no art. 37, inciso XVI, alínea "c", ficará agregado ao respectivo quadro e somente poderá, enquanto permanecer nessa situação, ser promovido por antiguidade, contando-se-lhe o tempo de serviço apenas para aquela promoção e transferência para a reserva, sendo depois de dois anos de afastamento, contínuos ou não, transferido para a reserva, nos termos da lei;

IV - ao militar são proibidas a sindicalização e a greve;

V - o militar, enquanto em serviço ativo, não pode estar filiado a partidos políticos;

VI - o oficial só perderá o posto e a patente se for julgado indigno do oficialato ou com ele incompatível, por decisão de tribunal militar de caráter permanente, em tempo de paz, ou de tribunal especial, em tempo de guerra;

VII - o oficial condenado na justiça comum ou militar a pena privativa de liberdade superior a dois anos, por sentença transitada em julgado, será submetido ao julgamento previsto no inciso anterior;

VIII - aplica-se aos militares o disposto no art. 7º, incisos VIII, XII, XVII, XVIII, XIX e XXV, e no art. 37, incisos XI, XIII, XIV e XV, bem como, na forma da lei e com prevalência da atividade militar, no art. 37, inciso XVI, alínea "c";

IX -  (Revogado pela Emenda Constitucional nº 41, de 19.12.2003)

X - a lei disporá sobre o ingresso nas Forças Armadas, os limites de idade, a estabilidade e outras condições de transferência do militar para a inatividade, os direitos, os deveres, a remuneração, as prerrogativas e outras situações especiais dos militares, consideradas as peculiaridades de suas atividades, inclusive aquelas cumpridas por força de compromissos internacionais e de guerra.

Art. 143. O serviço militar é obrigatório nos termos da lei.

§ 1º Às Forças Armadas compete, na forma da lei, atribuir serviço alternativo aos que, em tempo de paz, após alistados, alegarem imperativo de consciência, entendendo-se como tal o decorrente de crença religiosa e de convicção filosófica ou política, para se eximirem de atividades de caráter essencialmente militar.

§ 2º As mulheres e os eclesiásticos ficam isentos do serviço militar obrigatório em tempo de paz, sujeitos, porém, a outros encargos que a lei lhes atribuir. (BRASIL, 1988, grifo nosso).

Quanto às Forças Auxiliares, são constituídas pelos membros das Polícias Militares e Corpos de Bombeiros Militares dos Estados, do Distrito Federal e dos Territórios (abolidos pela CF/88), tendo como comandante supremo, de forma similar à esfera federal, o respectivo governador. Seu regime constitucional está previsto na CF/88, no art. 42, da Seção III (“Dos Militares Dos Estados, Do Distrito Federal e Dos Territórios”), do Capítulo VII (“Da Administração Pública”), do Título III (“Da Organização Do Estado”), onde são denominados “militares dos Estados, do Distrito Federal e dos Territórios”:

Art. 42 Os membros das Polícias Militares e Corpos de Bombeiros Militares, instituições organizadas com base na hierarquia e disciplina, são militares dos Estados, do Distrito Federal e dos Territórios.

§ 1º Aplicam-se aos militares dos Estados, do Distrito Federal e dos Territórios, além do que vier a ser fixado em lei, as disposições do art. 14, § 8º; do art. 40, § 9º; e do art. 142, §§ 2º e 3º, cabendo a lei estadual específica dispor sobre as matérias do art. 142, § 3º, inciso X, sendo as patentes dos oficiais conferidas pelos respectivos governadores.

§ 2º Aos pensionistas dos militares dos Estados, do Distrito Federal e dos Territórios aplica-se o que for fixado em lei específica do respectivo ente estatal. (BRASIL, 1988, grifo nosso).

Realizam sua missão constitucional na área que compreende o ente federativo determinado (à exceção de missões específicas noutros territórios). De forma típica, quando as Polícias Militares exercem a atividade de polícia ostensiva e a preservação da ordem pública e, os Corpos de Bombeiros Militares, além das atribuições definidas em lei, as atividades de defesa civil; de forma atípica, quando convocados para incorporação, a fim de servirem junto ao Exército, conforme §§ 5º e 6º do art. 144 da CF/88:

Art. 144. A segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, através dos seguintes órgãos:

§ 5º Às polícias militares cabem a polícia ostensiva e a preservação da ordem pública; aos corpos de bombeiros militares, além das atribuições definidas em lei, incumbe a execução de atividades de defesa civil.

§ 6º As polícias militares e corpos de bombeiros militares, forças auxiliares e reserva do Exército, subordinam-se, juntamente com as polícias civis, aos Governadores dos Estados, do Distrito Federal e dos Territórios. (BRASIL, 1988, grifo nosso).

2.2 CARACTERIZAÇÃO DE UM DELITO MILITAR

            O crime militar pode ser analisado sob o aspecto formal, material e analítico:

a) formal: refere-se ao princípio da reserva legal, nullum crimen, nulla poena sine praevia lege (não há crime, nem pena sem lei anterior que os defina);

b) material: refere-se ao bem jurídico a ser protegido, que em se tratando de crime militar é, direta ou indiretamente, a regularidade das instituições militares;

c) analítico: Segundo a Teoria Causalista Neoclássica (Neokantista), adotada no DPM, crime militar é todo fato típico, ilícito e culpável.

            Não existe uma definição legal do que venha a ser crime militar, mas sim conceitos doutrinários a respeito do tema e, por vezes, decisões jurisprudenciais contraditórias, acerca das circunstâncias decisivas para se identificar um delito militar. Segundo Toledo (1994, p. 17), o CPM “não define o que seja crime militar, nem é pacífica, entre os doutrinadores, essa conceituação, fazendo com que os estudiosos da ciência criminal adotem vários critérios para a fim de suplantar essa dificuldade”. Para Assis (2012, p. 44): “Crime militar é toda violação acentuada ao dever militar e aos valores das instituições militares”.

             A necessidade de se compreender o significado de um crime militar originou-se da Carta Magna, quando se refere a “crime propriamente militar” no inciso LXI do art. 5º, que trata da prisão, apontando essa espécie de delito, assim como a transgressão militar, como exceções à regra: “LXI - ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente, salvo nos casos de transgressão militar ou crime propriamente militar, definidos em lei;” (BRASIL, 1988). Além da CF/88, o CPC, em seu art. 64, II, quando trata da reincidência, desconsidera para tal efeito os crimes militares próprios e os políticos: “II - não se consideram os crimes militares próprios e políticos” (BRASIL, 1940).

            Nesse sentido, por oposição ao crime militar próprio ou crime propriamente militar, existirá, então, o impróprio ou impropriamente militar, motivo pelo qual se faz necessário distingui-los da maneira mais clara e exata possível, assim, nas palavras de Assis (2008):

Em uma definição bem simples poderíamos dizer que crime propriamente militar é aquele que só está previsto no Código Penal Militar, e que só poderá ser cometido por militar, como aqueles contra a autoridade ou disciplina militar ou contra o serviço militar e o dever militar. Já o crime impropriamente militar está previsto ao mesmo tempo, tanto no Código Penal Militar como na legislação penal comum, ainda que de forma um pouco diversa (roubo, homicídio, estelionato, estupro, etc.) e via de regra, poderá ser cometido por civil. (ASSIS, 2008, p. 3).

            Assim, crime propriamente militar é aquele somente previsto no CPM, cujo bem tutelado é, diretamente, a regularidade das instituições militares, ou seja, diz respeito ao meio militar (autoridade, dever, serviço, hierarquia, disciplina etc.), portanto, um conjunto de valores, obrigações, deveres intrínsecos ao militar, sujeito ativo essencial do tipo. Exceção aplica-se ao crime de Insubmissão, que apesar de estar previsto exclusivamente no Código Penal Militar (art.183), só pode ser cometido por civil.

            Além disso, não nos esqueçamos, porém, de que no caso de bem jurídico composto, haverá uma objetividade jurídica indireta, a exemplo do art. 157 (Violência contra superior) do CPM, que apesar de tutelar em primeiro plano a autoridade e disciplina militar, indiretamente, protege também a integridade física do indivíduo.

            Já o crime impropriamente militar, por afetar bens jurídicos comuns às esferas militar e civil (vida, integridade física, patrimônio etc.), tem previsão legal tanto no CPM, quanto no CPC, ainda que de maneira diversa, não importando o agente (militar ou civil), desde que atendidas determinadas condições expressas no Código Penal Castrense. Nesta espécie, para caracterização do crime militar, também se exige a efetiva ofensa à regularidade das instituições militares, contudo aqui indiretamente.

            Os arts. 9° e 10 do CPM elencam as hipóteses para caracterização dos crimes militares, por meio dos critérios doutrinários ratione personae, ratione loci, ratione materiae ou ratione temporis, que apesar de não estarem expressos, analisando-se esses dispositivos, constata-se que neles estão contidos. A seguir, Assis (2008) especifica cada um deles:

O critério ratione materiae exige que se verifique a dupla qualidade militar – no ato e no agente.

São delitos militares ratione personae aqueles cujo sujeito ativo é militar, atendendo exclusivamente à qualidade militar do agente.

O critério ratione loci leva em conta o lugar do crime, bastando, portanto, que o delito ocorra em lugar sob administração militar.

São delitos militares ratione temporis os praticados em determinada época, como por exemplo, os ocorridos em tempo de guerra ou durante o período de manobras ou exercícios. (ASSIS, 2008, p. 5).

            Todavia, o doutrinador assevera: “[...] a classificação do crime em militar se faz pelo critério ratione legis, ou seja, é crime militar aquele que o Código Penal Militar diz que é[...]” (ASSIS, 2008, p. 5). Em consonância, afirma Romeiro (1994, p. 66): “crime militar é o que a lei define como tal”.

Diante do exposto, para correta identificação de um crime militar, devemos responder, positivamente, todas as seguintes questões:

1º - a conduta amolda-se perfeitamente em algum tipo penal existente na Parte Especial do CPM?

2º - as circunstâncias do fato analisado encontram subsunção em alguma das hipóteses elencadas no art. 9º do CPM?

3º - considerando a inexistência de excludentes de ilicitude do fato: houve efetiva ofensa à regularidade da instituição militar considerada?

4º - a justiça militar ofendida é competente para processar e julgar o agente?

            Em relação a estas duas últimas questões em destaque, importa-nos discorrer um pouco mais a respeito. Comecemos ressaltando a competência constitucional da Justiça Militar da União e dos Estados:

            A Justiça Militar Federal ocupa-se em processar e julgar os crimes militares definidos em lei, independentemente do agente (militar ou civil), conforme o art. 124 da CF/88: “à Justiça Militar compete processar e julgar os crimes militares definidos em lei.” (BRASIL, 1988).

            A competência da Justiça Militar estadual está descrita claramente no § 4º do art. 125 da CF/88 que, in verbis, restringe-se a processar e julgar os militares dos Estados:

§ 4º Compete à Justiça Militar estadual processar e julgar os militares dos Estados, nos crimes militares definidos em lei e as ações judiciais contra atos disciplinares militares, ressalvada a competência do júri quando a vítima for civil, cabendo ao tribunal competente decidir sobre a perda do posto e da patente dos oficiais e da graduação das praças. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 45, de 2004) (BRASIL, 1988, grifo nosso).

            Nesse sentido, um civil que cometa um crime, em tese militar impróprio, ofensivo à regularidade de uma instituição militar estadual, será processado e julgado perante a justiça comum pelo crime comum correspondente. Por exemplo, um civil que desacata um policial militar em serviço de policiamento ostensivo, em tese, estaria cometendo o crime militar previsto no art. 299 (Desacato a militar) c.c. a alínea “d”, inc. III do art. 9º do CPM, com efetiva ofensa à administração militar estadual, no entanto, no caso concreto, em atenção ao princípio do juiz natural, a justiça militar estadual é incompetente para processar e julgar civis ou militares federais, dessa forma responderá o civil pelo respectivo crime comum de Desacato (art. 331 do CPC).

            Quando a situação envolve em um polo militar federal e no outro estadual, o caso é mais complexo e merece uma análise mais cuidadosa, em virtude de uma discussão que se estabelece e, ainda hoje se tem estabelecido, quanto à exata natureza jurídica dos membros das Polícias Militares e Corpos de Bombeiros Militares, em relação à aplicação da legislação penal militar, considerando o disposto no art. 22 (“Pessoa considerada militar”) do CPM: “É considerada militar, para efeito da aplicação dêste [sic] Código, qualquer pessoa que, em tempo de paz ou de guerra, seja incorporada às fôrças [sic] armadas, para nelas servir em pôsto [sic], graduação, ou sujeição à disciplina militar.” (BRASIL, 1969b).

            Destarte, em conformidade com esse dispositivo, havia um entendimento comum, até o final da década de 90, entre o Supremo Tribunal Federal (STF) e o Superior Tribunal Militar (STM), no sentido de restringir-se a aplicação do CPM aos militares estaduais, apenas interna corporis, de modo que em questões criminais envolvendo militar federal e estadual, seja no polo passivo ou ativo, este último (estadual) seria equiparado a um servidor público civil. Portanto na situação prática narrada acima, o militar federal que desacatasse o militar estadual em serviço de natureza militar, responderia perante a justiça comum.

            A partir da promulgação da Emenda Constitucional nº 18, de 5 de fevereiro de 1998 (dispõe sobre o regime constitucional dos militares), que alterou o art. 42 da CF/88, – retirando os “servidores militares federais”, inserindo-os no § 3º do art. 142, com a denominação de “militares” e, por outro lado, também modificou a figura dos “servidores militares dos Estados, Territórios e Distrito Federal”, que passaram a denominar-se “militares dos Estados, do Distrito Federal e dos Territórios”, conforme abordado na seção anterior – o entendimento acerca do tema modificou-se, pois o conceito de “militar” ganhou amplitude constitucional, assim, existindo duas categorias distintas de militares: federal e estadual (ou distrital). Portanto, o art. 22 do CPM não foi recepcionado pela Lei Maior.

            O STM, então, mudou sua visão com relação ao problema, passando também a considerar o membro das FAux como militar em sentido estrito, para efeito de aplicação da legislação penal castrense, estando no outro polo o militar das FA, logo, sendo possível a caracterização de crime militar, outrossim, na hipótese da alínea “a”, inc. II, art. 9º do CPM (ratione personae). Abaixo, transcreve-se Ementa, referente ao julgamento do Recurso Criminal (FO) nº 2002.01.007044-9-RS, na qual o STM decidiu, por maioria, dar provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público, contra decisão de Juiz-Auditor que rejeitara denúncia em desfavor de militar federal, acusado de praticar crime militar contra militares estaduais em serviço, determinando o recebimento daquela:

Ementa: RECURSO CRIMINAL. REJEIÇÃO DA DENÚNCIA COM FUNDAMENTO NA INCOMPETÊNCIA DA JUSTIÇA MILITAR PARA JULGAR ILÍCITO PENAL PRATICADO POR SARGENTO DO EXÉRCITO CONTRA SOLDADOS E CABO DA POLÍCIA MILITAR DO ESTADO, EM SITUAÇÃO DE SERVIÇO. COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA COMUM AFASTADA. MODIFICAÇÃO DO ENTENDIMENTO JURISPRUDENCIAL A PARTIR DA EMENDA CONSTITUCIONAL Nº 18, QUE DEU NOVA REDAÇÃO AO ART. 42 DA CARTA FEDERAL DE 1988.

I – A conjugação do art. 9º, inc. II, alínea ‘a’, do CPM, com os arts. 42, 125, § 4º, e 142, todos da Constituição Federal, conduz a concluir-se pela competência da Justiça Militar para processar e julgar crime militar, em tese, praticado por militar contra militar, todos em situação de atividade por definição constitucional.

II – A Constituição Federal de 1988 não recepcionou o art. 22 do CPM. Do mesmo modo, a orientação contida no enunciado da Súmula 297, do Supremo Tribunal Federal, editada em 16.12.1963, encontra-se superada ante o novo texto constitucional;

III – O crime que envolve militar federal e militar estadual desperta o interesse da União, já que a Justiça Militar Federal tutela os interesses da Federação, como a manutenção da ordem, disciplina e hierarquia nas Corporações Militares estaduais e nas FFAA.

IV – Apelo ministerial provido, por maioria. (BRASIL, 2003, p. 1).

            Em oposição, o STF manteve sua ideologia de acordo com o art. 22 do CPM, não reconhecendo os militares estaduais (ou distritais), para fins de aplicação da legislação penal militar, nos termos da alínea “a”, inc. II, art. 9º do CPM (ratione personae), quando a situação envolver militar federal versus estadual, no polo passivo ou ativo, em consequência, invalidou o acórdão proferido pelo STM, determinando a imediata extinção do processo penal militar, conforme HC nº 83.003/STF, Rel. Min. Celso de Mello, de 16.08.2005 (BRASIL, 2008).

            Posto isto, conclui-se que essa discussão (militar federal X militar estadual) ainda não é pacífica, entretanto, alicerçando-nos na sutil, mas profunda mudança constitucional, promovida pela EC nº 18/1998, podemos concluir, acertadamente, em favor da posição adotada pelo Egrégio STM, no que se refere ao reconhecido dos integrantes das Polícias Militares e Corpos de Bombeiros Militares como militares em sentido estrito. Entretanto, discordemos quanto à competência da Justiça Militar da União no caso em tela, uma vez que esta não tutela a regularidade das instituições militares estaduais. Nesse sentido, assevera Assis (2012):

Em verdade, não só a condição de os agentes, ativo e passivo, serem militares, e o fato de estar previsto na legislação castrense, são suficientes para firmar a competência da Justiça Militar da União.

Há que se considerar que a Justiça Militar – tanto a estadual quanto a federal – tem em vista a natureza dos bens juridicamente tutelados.

Quem protege a instituição policial militar, nos casos em que ela é ofendida, é a Justiça Militar estadual, que tem competência restrita, somente julgando policiais e bombeiros militares. (CF, art. 125, § 4º).

A Justiça Militar da União, por sua vez, tutela as instituições das Forças Armadas, julgando os crimes contra ela cometidos e dela (Justiça Militar federal) escapando os crimes contra os valores das Corporações estaduais.

Logo, é a Justiça Comum a competente para julgar militar federal que, de folga, cometa crime contra policial militar em serviço, ou contra a instituição militar estadual, ocasião em que se coloca o agente militar federal na mesma condição do civil. (ASSIS, 2012, p. 52-53).

2.3 ASCENSÃO DA MULHER NA CARREIRA MILITAR

            A Marinha foi a primeira Força militar a admitir mulheres em seus quadros, o que ocorreu no ano de 1980, a seguir, em 1981, a Força Aérea Brasileira cria o Corpo Feminino da Reserva e, somente dez anos mais trade (1991) inicia-se o ingresso de mulheres no Exército brasileiro.

            Inicialmente, as atividades exercidas por essas mulheres eram tão somente de cunho administrativo, o que com o passar dos anos foi modificando-se, em decorrência de uma série de avanços sociais em favor dos direitos da mulher, especialmente quanto à igualdade de condições no mercado de trabalho. Atualmente, verifica-se, de forma crescente, a existência de mulheres nas FA ocupando cargos de comando, direção ou chefia, participando das Operações de Garantia da Lei e da Ordem, bem como integrando missões internacionais nas Forças de Paz da ONU.

            Ainda, segundo Assis (2016), em relação às Polícias Militares e aos Corpos de Bombeiros Militares, esse panorama desenvolve-se de maneira semelhante. O Estado de São Paulo foi o pioneiro a empregar mulheres em sua Milícia Bandeirante, criando o Corpo de Policiamento Feminino em 1955, por ato do então Governador Jânio Quadros. Em 1979, na PM do Paraná, cria-se o Pelotão de Polícia Feminina, seguido por Minas Gerais, em 1981.

            Apenas em 1984, com o advento do Decreto-lei nº 2.106/84, fundamenta-se o embasamento legal para inserção do efetivo feminino nas fileiras das Corporações militares estaduais, de acordo com a alínea “a”, § 2º, art. 8º do Decreto-lei nº 667/69 alterado, de maneira que entre o início da década de 1980 e o final da década de 1990 as demais corporações militares estaduais admitiram o ingresso de mulheres em seus quadros:

2º Os Estados, Territórios e o Distrito Federal poderão, se convier às respectivas Polícias Militares:  (Redação dada pelo Del 2.106, de 6.2.1984).

a) admitir o ingresso de pessoal feminino em seus efetivos de oficiais e praças, para atender necessidades da respectiva Corporação em atividades específicas, mediante prévia autorização do Ministério do Exército; (Redação dada pelo Del 2.106, de 6.2.1984) (BRASIL, 1969a).

 

            Apesar desse “toque feminino” inovador, não nos olvidemos de que em uma Instituição Militar os valores morais de rigidez, ordem, hierarquia e disciplina aplicam-se a todos componentes, independentemente de gênero, assim, o diferencial em uma organização militar constitui-se por uma identidade coletiva.

            Naturalmente, após a efetiva incorporação das mulheres na profissão militar, observou-se, ao longo dos anos, em virtude da convivência, um aumento das relações íntimas de afeto entre militares, das mais variadas possíveis – diferentes patentes, FA, FAux, orientações sexuais – fomentando a formação de casais, que passaram a conviver em união estável, constituindo uma família.

            Nesse cenário, o casal de militares, mesmo doutrinados e submetidos a uma vida regrada, que é a da caserna, não estarão imunes a possíveis atritos e desentendimentos comuns na vida a dois. E, mais além, como seres humanos que são,  aquela pequena discussão poderá, lamentavelmente, evoluir e transformar-se em uma forma de violência doméstica e familiar, sobretudo contra a mulher, como veremos a seguir.

3 LEI MARIA DA PENHA (L. Nº 11.340/06)

            A famigerada Lei Maria da Penha consagrou-se ao longo dos anos, desde que foi promulgada em 07 de agosto de 2006, como um dos instrumentos de maior importância em favor dos direitos da mulher, tornando-se um verdadeiro marco nacional, no que se refere ao combate à violência doméstica e familiar contra a mulher, que constitui uma das formas de violação dos direitos humanos, conforme prevê o art. 6º da referida Lei.

            Segundo nos ensina Rocha (2015), o princípio da igualdade foi formalmente assegurado nas Constituições de 1824 e de 1891, sendo que na Carta Magna de 1934 ficou estabelecida, expressamente, a vedação quanto a privilégios e distinções por motivo de gênero, por exemplo, pagamento de salários diferenciados de acordo com o gênero do profissional. Além disso, ainda no primeiro governo do presidente Vagas, teremos a garantia de assistência médica e sanitária à gestante, antes e depois do parto, sem prejuízo da remuneração e do emprego, o que se manteve nas Constituições posteriores (1937, 1946 e 1967, emendada em 1969).

            Esses avanços em prol dos direitos femininos estabeleceram-se de forma mais acentuada na Constituição Federal de 1988, denominada de Constituição Cidadã, na qual se verifica, entre outras garantias: a igualdade de gênero, especialmente no âmbito familiar e profissional, criando-se regras de acesso distintas para mulher; direito social à proteção da maternidade; direito das presidiárias amamentarem seus filhos; livre iniciativa no planejamento familiar ao casal e; sobretudo, a assistência familiar a cada um de seus membros, por parte do Estado, através da criação de mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações.

            Ainda no plano interno, em relação à legislação pátria, podemos verificar a integração desses direitos: nas Constituições Estaduais; no novo Código Civil, que promoveu alterações significativas referentes à condição jurídica da mulher; na Lei nº 9.318/1996, que agravou a pena dos crimes cometidos contra a mulher gestante; Lei nº 8.930/1994, que incluiu o estupro no rol dos crimes hediondos e; finalmente a LMP, que cria mecanismos para coibir e prevenir a violência doméstica e familiar contra a mulher, perfazendo um ordenamento jurídico bastante amplo em defesa do sexo feminino.

            Concomitantemente, no plano externo, tratados internacionais foram assinados pelo Brasil, como a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher, da ONU (CEDAW, sigla em inglês); o Protocolo Facultativo à CEDAW e; a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher - Convenção de Belém do Pará da OEA (Organização dos Estados Americanos).

            Esse avanço legislativo histórico, visando à defesa da mulher, culminou com o advento da LMP, revelando-se um instrumento extremamente amplo e efetivo na proteção da mulher vítima de violência, em âmbito doméstico, familiar e em qualquer relação intima de afeto, caracterizando uma nova modalidade de política criminal, que se destaca pelo maior rigor, quando comparada com os demais diplomas em vigor. O ponto marcante que ensejou a edição dessa Lei trata-se do caso da biofarmacêutica Maria da Penha Maia Fernandes, vítima de violência doméstica pratica por seu marido, enquanto dormia, em maio de 1983, assim retratada por Rocha (2015):

O diploma legal ganhou esse nome em homenagem à biofarmacêutica Maria da Penha Maia Fernandes que, em 1983, sofreu duas tentativas de homicídio por parte do marido. Na primeira vez, o cônjuge, simulando um assalto, tentou assassiná-la enquanto dormia, com um tiro nas costas que a deixou paraplégica. Duas semanas após sair do hospital, ao voltar para casa, ele articulou nova agressão: descascou os fios do chuveiro da suíte de modo que, quando ela fosse tomar banho, morresse eletrocutada. O agressor foi julgado duas vezes, mas, devido aos recursos contrários à decisão do Tribunal do Júri, permaneceu solto por 19 anos e ficou preso em regime fechado somente 2 anos.

Em razão da morosidade injustificada do Judiciário, a biofarmacêutica, em conjunto com o Centro pela Justiça e o Direito Internacional (CEJIL) e o Comitê Latino-Americano e do Caribe de Defesa dos Direitos da Mulher (CLADEM) formalizaram uma denúncia contra o Brasil na Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA, que culminou com o relatório 54/1, que concluiu ter o Brasil sido omisso em relação ao problema da violência contra a mulher de modo geral e, em particular, contra Maria da Penha Fernandes, recomendando a adoção de medidas legais simplificadoras com vistas a possibilitar a real implementação de direitos já reconhecidos nas Convenções Internacionais. Disto resultou a prisão do ex-marido de Maria da Penha e a promulgação da Lei nº 11.340, em 7 de agosto de 2006. (ROCHA, 2015, p. 2).

            Nos termos do § 8º do art. 226 da Constituição Federal e dos tratados internacionais ratificados sobre a matéria, baseando-se, ainda, em diversos acontecimentos concretos, caracterizados pela violência de gênero, a LMP cria mecanismos para coibir e prevenir a violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos do art. 1º da Lei, contemplando, inclusive, além do contexto doméstico-familiar, quaisquer relações íntimas de afeto, nas quais a ofendida conviva ou tenha convivido com o(a) agressor(a) (art. 5º da LMP).

            Ademais, independe a orientação sexual existente na relação (§ único, art. 5º da LMP), de modo que o sujeito ativo pode ser qualquer pessoa, porém o sujeito passivo tutelado pela Lei é somente a mulher, por isso caso o homem figure no polo passivo, aplica-se a regra geral, isto é, o CPC. Entretanto, observe-se a existência de julgados que, idênticos os pressupostos de vínculo doméstico-familiar e íntimo-afetivo, o homem, enquanto vítima, também poderá ser alcançado pelos institutos protetivos presentes na Lei.

3.1 VIOLÊNCIA DE GÊNERO

            A LMP tutela a mulher no que concerne à violência de gênero, ou seja, aquela em que a mulher apresenta-se subjulgada, inferiorizada, hipossuficiente, dependente, em virtude de critérios físicos, sentimentais e/ou econômicos. Essa espécie de violência, portanto, não se confunde com a “violência doméstica” e a “violência contra a mulher”, conforme esclarece Rocha (2015):

A violência de gênero apresenta-se de maneira mais extensa, sendo concebida como a prática de diversos atos contra as mulheres como forma de submetê-las a sofrimento físico, sexual e psicológico, aí incluídas as variadas ameaças, não só na quadra intrafamiliar, mas também social. Ela enfatiza as relações de trabalho e a imposição ou pretensão de imposição de subordinação e controle de um sexo sobre o outro no ambiente laboral.

Por seu turno, a violência doméstica possui significado idêntico à violência familiar, circunscrevendo-se às omissões e atos de maltratos [sic] desenvolvidos no seio domiciliar, residencial ou em um lugar onde habite um grupo familiar no qual fazem parte mulheres, crianças, idosos, portadores de necessidades especiais, que sofram agressões físicas ou psíquicas, praticadas por membro do mesmo grupo. Trata-se de acepção que não prioriza a mulher, mas todos os membros da família.

Por último, define-se a violência contra a mulher como todas as formas de violência por ação ou omissão que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico, dano moral ou patrimonial. (ROCHA, 2015, p. 2-3, grifos do autor).

            Essa violência doméstica e familiar baseada no gênero pode ocorrer por ação ou omissão, ocasionando consequências de cunho físico psicológico (sofrimento físico, sexual, psicológico; lesão; morte), patrimonial e/ou moral, em diferentes circunstâncias, assim, enumeradas, nos incisos do art. 5º da Lei:

Art. 5o  Para os efeitos desta Lei, configura violência doméstica e familiar contra a mulher qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial: (Vide Lei complementar nº 150, de 2015).

I - no âmbito da unidade doméstica, compreendida como o espaço de convívio permanente de pessoas, com ou sem vínculo familiar, inclusive as esporadicamente agregadas;

II - no âmbito da família, compreendida como a comunidade formada por indivíduos que são ou se consideram aparentados, unidos por laços naturais, por afinidade ou por vontade expressa;

III - em qualquer relação íntima de afeto, na qual o agressor conviva ou tenha convivido com a ofendida, independentemente de coabitação. (BRASIL, 2006).

            Tais consequências traduzem-se em formas de violência que, por sua vez, também são enumeradas na Lei em um rol exemplificativo, no art. 7º:

Art. 7o  São formas de violência doméstica e familiar contra a mulher, entre outras:

I - a violência física, entendida como qualquer conduta que ofenda sua integridade ou saúde corporal;

II - a violência psicológica, entendida como qualquer conduta que lhe cause dano emocional e diminuição da auto-estima [sic] ou que lhe prejudique e perturbe o pleno desenvolvimento ou que vise degradar ou controlar suas ações, comportamentos, crenças e decisões, mediante ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, vigilância constante, perseguição contumaz, insulto, chantagem, ridicularização, exploração e limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro meio que lhe cause prejuízo à saúde psicológica e à autodeterminação;

III - a violência sexual, entendida como qualquer conduta que a constranja a presenciar, a manter ou a participar de relação sexual não desejada, mediante intimidação, ameaça, coação ou uso da força; que a induza a comercializar ou a utilizar, de qualquer modo, a sua sexualidade, que a impeça de usar qualquer método contraceptivo ou que a force ao matrimônio, à gravidez, ao aborto ou à prostituição, mediante coação, chantagem, suborno ou manipulação; ou que limite ou anule o exercício de seus direitos sexuais e reprodutivos;

IV - a violência patrimonial, entendida como qualquer conduta que configure retenção, subtração, destruição parcial ou total de seus objetos, instrumentos de trabalho, documentos pessoais, bens, valores e direitos ou recursos econômicos, incluindo os destinados a satisfazer suas necessidades;

V - a violência moral, entendida como qualquer conduta que configure calúnia, difamação ou injúria. (BRASIL, 2006).

            Apesar de ser crime que configura grave violação dos direitos humanos, a violência contra as mulheres segue vitimando milhares de brasileiras anualmente, conforme podemos verificar no Balanço Anual 180 2016:

Os dados apontam que somente no ano de 2016, a Central realizou 1.133.345 (um milhão cento e trinta e três mil trezentos e quarenta e cinco) atendimentos, fato que resultou numa média de 94.445 atendimentos/mês, e 3.096 atendimentos ao dia. Essa quantidade foi 51% superior ao número de atendimentos realizados no ano de 2015 (749.024).

[...]

Do total de atendimentos de 2016, 12,38% (140.350) corresponderam a relatos de violência. Dentre os relatos, 50,70% se referiram à violência física; 31,80%, violência psicológica; 6,01%, violência moral; 1,86%, violência patrimonial; 5,05%, violência sexual; 4,35%, cárcere privado; e 0,23%, tráfico de pessoas.

[...]

Em comparação com o ano de 2015, a Central de Atendimento à Mulher constatou que no tocante aos relatos de violência houve um aumento de 54% nos registros de cárcere privado, com a média de 16,7 registros/dia e de 121% nos casos de estupro, com média de 16,51 relatos/dia.

[...]

No ano de 2016, foi notado o aumento de 93,87% nos relatos relacionados à violência doméstica e familiar comparando-se com o ano passado, num total de 112.524 registros. Esse dado pode apontar a percepção de que a violência doméstica deve ser denunciada ou um maior conhecimento sobre a Lei Maria da Penha, ou ainda que houve o aumento na busca pelo serviço oferecido pelo Ligue180.

Os dados demonstraram também a importância fundamental da Lei do Feminicídio (Lei nº 13.104, promulgada em março de 2015), visto que em quase a totalidade dos relatos de violência (97,57%) é percebido um risco para a vítima. O risco de que a violência relatada acarrete na morte das vítimas foi percebido em 28,78% dos casos. (BRASIL, 2016, p. 3-4, grifos do autor).

3.2 ASPECTOS CONSTITUCIONAIS

            A discussão acerca da constitucionalidade da LMP suscita-se em virtude do disposto no § 8º, do art. 226 c.c. o caput e inciso I do art. 5º da CF/88, onde verificamos a especial proteção conferida pelo Estado à família, “na pessoa de cada um dos que a integram”, isto é, homem, mulher, criança, idoso etc. Portanto, quem quer que seja o membro família estará sob a tutela do Estado, prevalecendo o princípio da igualdade. Senão vejamos:

Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado.

[...]

§ 8º O Estado assegurará a assistência à família na pessoa de cada um dos que a integram, criando mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações.

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza [...].

I - homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição; (BRASIL, 1988, grifo nosso).

            Nestes termos baseiam-se aqueles que defendem a inconstitucionalidade da LMP, cujo alvo protetivo é somente a mulher, entretanto, esquecem-se que o princípio da igualdade não é somente formal, resumindo-se na expressão literal descrita na Carta Magna. Deve ser interpretado e aplicado no caso concreto em sua natureza material, ou seja, cabe à lei tratar os iguais de uma forma e os desiguais de outra. Quando o assunto é violência de gênero, conforme já discorremos, é o grupo das mulheres que se revela de maneira desigual frente aos homens.

            Dessa forma, faz-se necessário por parte do Estado, o desenvolvimento e implementação de políticas públicas de cunho afirmativo em prol de grupos minoritários, como é o caso das mulheres, no que se refere ao objeto aqui tratado – a violência de gênero –, pois é, notadamente, a que mais sofre nesse contexto. Assim, obviamente, não há nenhuma violação ao princípio da isonomia na LMP, pelo contrário, é através de suas medidas protetivas que se busca o equilíbrio.

            Nesse sentido, assevera Assis (2016) acerca do tema:

Da mesma forma há quem a considere inconstitucional, por dirigir-se tão somente à proteção da mulher. Há quem a considere uma manifestação do chamado Direito Penal Simbólico, sem qualquer resultado prático efetivo, como a edição da lei que criou a figura do feminicídio, a aumentar, tão-somente [sic], o cipoal legislativo que assola o país.

O Supremo Tribunal Federal, em razão da propositura da ADC 19 e da ADI 4.424, decidiu que não há violação do princípio da igualdade pelo fato da lei ser voltada a proteger apenas a mulher. Decidiu, ainda que, na inexistência dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, as varas criminais comuns acumularão as competências cíveis e criminais decorrentes da LMP. Assentou que aos casos de crimes decorrentes de violência doméstica, não se aplica a Lei 9.099/95, dessa forma, toda lesão corporal (leve ou culposa), é de ação pública incondicionada.

            Em suma, note-se que a LMP não criou nenhum tipo penal novo, apenas estabeleceu um tratamento diferenciado em relação à mulher, vítima de violência de gênero, seja ela física, sexual, psicológica, moral ou patrimonial, promovendo um agravamento das sanções, além da previsão de medidas protetivas visando ao seu resguardo.

3.3 ASPECTOS PENAIS, PROCESSUAIS E TUTELARES

            A LMP trata-se de uma lei mista, pois apresenta aspectos penais (majorando a pena na legislação penal comum), processuais (especificando ritos para os processos) e tutelares (determinando  medidas protetivas).

            Quanto aos aspectos penais, a Lei traz singelas alterações no CPC, a saber, alterando a alínea “f”, inciso II do art. 61, que trata das circunstâncias agravantes, bem como alterando a pena prevista na circunstancia qualificadora do § 9º do art. 129 (Violência Doméstica), conforme se verifica a seguir:

Circunstâncias agravantes

Art. 61 - São circunstâncias que sempre agravam a pena, quando não constituem ou qualificam o crime:

[...]

II - ter o agente cometido o crime:

[...]

f) com abuso de autoridade ou prevalecendo-se de relações domésticas, de coabitação ou de hospitalidade, ou com violência contra a mulher na forma da lei específica;

[...]

Lesão corporal

Art. 129. Ofender a integridade corporal ou a saúde de outrem:

[...]

Violência Doméstica

§ 9º  Se a lesão for praticada contra ascendente, descendente, irmão, cônjuge ou companheiro, ou com quem conviva ou tenha convivido, ou, ainda, prevalecendo-se o agente das relações domésticas, de coabitação ou de hospitalidade:

Pena - detenção, de 3 (três) meses a 3 (três) anos. (BRASIL, 1940, grifos do autor).

            Quanto aos aspectos processuais, sob uma análise inerente à esfera penal, no que se refere à competência, essencialmente a LMP prevê a criação de Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, que acumulariam as matérias civis e penais, cuja natureza se caracterizasse pela violência de gênero:

Art. 14.  Os Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, órgãos da Justiça Ordinária com competência cível e criminal, poderão ser criados pela União, no Distrito Federal e nos Territórios, e pelos Estados, para o processo, o julgamento e a execução das causas decorrentes da prática de violência doméstica e familiar contra a mulher. (BRASIL, 2006).

            Essa indicação demonstra claramente o desejo do legislador em afastar essa modalidade de violência no âmbito dos Juizados Especiais, que são regidos pela Lei 9.099/95, expressando, inclusive, essa vontade no art. 41 da LMP: “Aos crimes praticados com violência doméstica ou familiar contra a mulher, independentemente da pena prevista, não se aplica a Lei 9.099, de 26 de setembro de 1995” (BRASIL, 2006).

            Até 2006, antes da edição da LMP, os crimes de menor potencial ofensivo, sob a ótica da violência de gênero, eram amparados normalmente pela Lei 9.099/95, no entanto, as medidas despenalizadoras presentes neste diploma legal não surtiram o efeito social esperado, a fim de reduzir essa prática delituosa.

             Nesse sentido, o espírito da LMP revela-se contrário às praticas previstas na Lei 9.099/95, de maneira que o legislador procurou demonstrar exatamente suas intenções, como podemos notar no art. 16, que trata do procedimento em caso de renúncia à representação da ofendida e, no art. 17, que veda a aplicação de certos tipos de pena:

Art. 16.  Nas ações penais públicas condicionadas à representação da ofendida de que trata esta Lei, só será admitida a renúncia à representação perante o juiz, em audiência especialmente designada com tal finalidade, antes do recebimento da denúncia e ouvido o Ministério Público.

Art. 17.  É vedada a aplicação, nos casos de violência doméstica e familiar contra a mulher, de penas de cesta básica ou outras de prestação pecuniária, bem como a substituição de pena que implique o pagamento isolado de multa. (BRASIL, 2006).

 

            Ainda, no campo processual, citemos a importante implementação, promovida pela LMP (art. 42), em face da medida cautelar de prisão preventiva, por meio da inclusão do inciso IV, no art. 313 do CPPC, que foi posteriormente revogado, sendo incorporado no inciso III do mesmo dispositivo, acrescentando a violência doméstica e familiar contra a mulher:

Art. 313.  Nos termos do art. 312 deste Código, será admitida a decretação da prisão preventiva: (Redação dada pela Lei nº 12.403, de 2011).

III - se o crime envolver violência doméstica e familiar contra a mulher, criança, adolescente, idoso, enfermo ou pessoa com deficiência, para garantir a execução das medidas protetivas de urgência; (Redação dada pela Lei nº 12.403, de 2011).

IV - (Revogado pela Lei nº 12.403, de 2011). (BRASIL, 1941).

 

            Essa prisão poderá ser revogada pelo juiz, caso verifique não mais existir o motivo que lhe deu causa, entretanto, se assim for, tal fato deverá ser comunicado à vítima, a fim de que possa precaver-se, de acordo com o § único do art. 20 c.c. art. 21 da LMP.

            No tocante aos aspectos tutelares, as medidas protetivas de urgência, conforme os arts. 18 e 19 da LMP, poderão ser requeridas pelo Ministério Público ou pela vítima, e a autoridade judiciária terá um prazo de 48 horas para deferi-las, a partir do recebimento do pedido.

            Poderão ser concedidas de imediato, independentemente de audiência das partes (inaudita altera pars) e de manifestação do Ministério Público, devendo, não obstante, ser o Parquet prontamente comunicado. A autoridade judiciária poderá outorgar medidas protetivas tantas quantas forem necessárias, a fim de resguardar a mulher, seus familiares e patrimônio, havendo a possibilidade de serem substituídas ou revistas a qualquer tempo por outras de maior eficácia, ouvido o Ministério Público, além de acrescidas àquelas conferidas anteriormente, complementando a proteção. Dividem-se em “Medidas Protetivas de Urgência que Obrigam o Agressor” e “Medidas Protetivas de Urgência à Ofendida”.

            As medidas protetivas de urgência impostas ao(à) agressor(a), estão previstas no art. 22 da LMP, cujo rol não é taxativo:

Art. 22.  Constatada a prática de violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos desta Lei, o juiz poderá aplicar, de imediato, ao agressor, em conjunto ou separadamente, as seguintes medidas protetivas de urgência, entre outras:

I - suspensão da posse ou restrição do porte de armas, com comunicação ao órgão competente, nos termos da Lei no 10.826, de 22 de dezembro de 2003;

II - afastamento do lar, domicílio ou local de convivência com a ofendida;

III - proibição de determinadas condutas, entre as quais:

a) aproximação da ofendida, de seus familiares e das testemunhas, fixando o limite mínimo de distância entre estes e o agressor;

b) contato com a ofendida, seus familiares e testemunhas por qualquer meio de comunicação;

c) freqüentação de determinados lugares a fim de preservar a integridade física e psicológica da ofendida;

IV - restrição ou suspensão de visitas aos dependentes menores, ouvida a equipe de atendimento multidisciplinar ou serviço similar;

V - prestação de alimentos provisionais ou provisórios. (BRASIL, 2006, grifo nosso).

            Por sua vez, as medidas protetivas de urgência à ofendida, estão previstas nos arts. 23 e 24 da LMP:

Art. 23.  Poderá o juiz, quando necessário, sem prejuízo de outras medidas:

I - encaminhar a ofendida e seus dependentes a programa oficial ou comunitário de proteção ou de atendimento;

II - determinar a recondução da ofendida e a de seus dependentes ao respectivo domicílio, após afastamento do agressor;

III - determinar o afastamento da ofendida do lar, sem prejuízo dos direitos relativos a bens, guarda dos filhos e alimentos;

IV - determinar a separação de corpos.

Art. 24.  Para a proteção patrimonial dos bens da sociedade conjugal ou daqueles de propriedade particular da mulher, o juiz poderá determinar, liminarmente, as seguintes medidas, entre outras:

I - restituição de bens indevidamente subtraídos pelo agressor à ofendida;

II - proibição temporária para a celebração de atos e contratos de compra, venda e locação de propriedade em comum, salvo expressa autorização judicial;

III - suspensão das procurações conferidas pela ofendida ao agressor;

IV - prestação de caução provisória, mediante depósito judicial, por perdas e danos materiais decorrentes da prática de violência doméstica e familiar contra a ofendida. (BRASIL, 2006, grifo nosso).

            Ante o exposto, longe de esgotarmos uma análise acerca da LMP, que é extremamente ampla, buscou-se, considerando o objeto deste trabalho, apresentar uma visão focada em seus pressupostos fáticos, históricos, objetividade jurídica, violência de gênero, aspectos constitucionais, penais, processuais e tutelares.

4 CRIME COMUM OU CRIME MILITAR?

            Diante do conteúdo explanado, verificamos que a violência de gênero diz respeito à mulher, tão somente, razão pela qual ser esta o alvo da LMP, não havendo nenhuma condição ou distinção expressa, de modo que independentemente de sua classe social, etnia, orientação sexual, crença, profissão etc. estará amparada, conforme o art. 2º da Lei:

Art. 2o  Toda mulher, independentemente de classe, raça, etnia, orientação sexual, renda, cultura, nível educacional, idade e religião, goza dos direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sendo-lhe asseguradas as oportunidades e facilidades para viver sem violência, preservar sua saúde física e mental e seu aperfeiçoamento moral, intelectual e social. (BRASIL, 2006, grifo nosso).

            Para a correta identificação de um delito militar, conforme analisado na seção “2.2”, faz-se necessário o atendimento de alguns requisitos, a saber, tipificação na Parte Especial do CPM, subsunção em alguma das hipóteses elencadas no art. 9º do CPM, efetiva ofensa à regularidade da instituição militar considerada (desde que ausentes quaisquer excludentes de antijuridicidade) e justiça militar competente para processar e julgar o agente.

            A partir dessas informações, a questão que se discute caracteriza-se por um contexto doméstico-familiar / íntimo-afetivo, cujo crime encontre previsão na Parte Especial dos dois Códigos Penais (Militar e Comum), no qual temos uma mulher militar da ativa, que é alvo de violência de gênero, por parte de um(a) agressor(a) que também é militar da ativa (alínea “a”, inc. II, do art. 9º do CPM), conduzindo-nos a um impasse, pois a LMP não incidiu na legislação penal militar.

            Destarte, ressalta-se, para que a conduta seja caracterizada como crime militar é necessário que exista a efetiva ofensa à Regularidade da Instituição Militar considerada, ainda que indiretamente (tipicidade indireta), isto é, condutas que afetem o serviço e o dever, patrimônio, segurança, administração, autoridade e disciplina militar etc.

            Nesse sentido, doutrinadores e estudiosos do tema enumeraram três teorias: Teoria do Crime Comum, na medida em que a ofensa restringe-se ao âmbito doméstico-familiar ou às relações íntimas de afeto; Teoria do Crime Militar, quando essa ofensa extrapola esses domínios, afetando a regularidade das instituições militares, cujos princípios fundamentais são a hierarquia e a disciplina e; Teoria Mista ou Teoria Conciliadora, que tipifica a conduta como crime militar, aplicando-se os institutos protetivos da Lei Maria da Penha.

4.1 TEORIA DO CRIME COMUM

            Segundo essa tese os acontecimentos inerentes à intimidade e à vida privada do militar, que não afetem a regularidade das instituições militares, devem ser observados pela ótica da justiça comum, de sorte que ocorrências criminais entre casais militares da ativa não serão objeto de análise no DPM, aplicando-se no caso concreto de violência de gênero doméstico-familiar / íntimo-afetiva somente a LMP c.c. a legislação penal comum.

            Nessa esteia, se a intimidade de um casal, família ou de um grupo de amigos compostos por militares da ativa não for respeitada, os mais diferentes crimes militares entre eles seriam cometidos e, consequentemente, transgressões disciplinares, dessa forma qualquer deslize seria de pronto objeto da justiça militar, pois em regra tais delitos são de ação penal pública incondicionada. Nesse sentido, Freua (2007?) exemplifica:

[...] um homem, Capitão PM, casado com uma mulher, Coronel Feminino PM, teria que tratá-la sempre como seu superior mesmo na intimidade do casal, pois caso contrário poderia ter inúmeras complicações perante a Justiça Militar, inclusive problemas administrativos perante a sua instituição no caso de transgressões disciplinares. Com a aplicação da legislação comum, a vítima tem a faculdade de não representar ou de renunciar à representação, dando maior liberdade à intimidade do casal de militares. O Código Penal Militar não pode invadir a intimidade do casal de militares a pretexto de garantir a regularidade das forças militares, pois estaria ultrapassando os limites impostos pela Constituição Federal, violando direitos fundamentais à intimidade e à vida privada (inciso X, do artigo 5º da CF/88), bem como o direito de formar uma família com a especial proteção do Estado (artigo 226 da CF/88), demonstrando assim que o legislador constituinte não permitiu intromissões no instituto família sem a devida legalidade, salvo para coibir a violência contra a própria estrutura familiar, conforme o parágrafo 8º, do artigo 226 da Lei Maior: “O Estado assegurará a assistência à família na pessoa de cada um dos que a integram, criando mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações”. (FREUA, [2007?], p. 5).

            De acordo com Lobão (2006), deve haver privacidade em relação ao convívio do casal de militares e respeito a sua vida em comum, revelando-se inadmissíveis violações por parte da administração militar:

Com a incorporação de mulheres às Forças Armadas, à Polícia Militar e ao Corpo de Bombeiros Militares, surge o problema relativo à competência da Justiça Militar para conhecer do delito cometido por um cônjuge ou companheiro contra outro. Se a ocorrência diz respeito à vida em comum, permanecendo nos limites da relação conjugal ou de companheiros, sem reflexos na disciplina e na hierarquia militar, permanecerá no âmbito da jurisdição comum. Tem pertinência com a matéria à decisão da Corte Suprema, segundo a qual a administração militar ‘não interfere na privacidade do lar conjugal, máxime no relacionamento do casal’. É questão a ser decidida pelo juiz diante do fato concreto. (LOBÂO, 2006, p. 121-122).

            Dessa forma, a casa – asilo inviolável do indivíduo –, a intimidade e a vida privada não estão sujeitas a interferências do Estado, por meio de instituições militares, pois esses elementos restringem-se ao âmago do indivíduo, sua inviolabilidade, que compreende hábitos, fatos, pensamentos, segredos e modo de vida.

            Assim, com a mesma posição assevera Rocha (2015):

Enfatize-se estabelecer a Lex Magna, como direito fundamental, a inviolabilidade da intimidade, da vida privada e da casa. Prevê o art. 226, § 8º, que o Estado assegurará assistência à família, na pessoa de cada um dos que a integram, criando mecanismos para coibir as agressões no âmbito de suas relações interpessoais.

Daí decorre não caber à Administração Militar adentrar em questões envolvendo bens jurídicos outros, tutelados pela Constituição, posto os atos oriundos das relações privadas não lesionarem, direta ou indiretamente, o bom funcionamento ou a própria imagem das instituições militares.

[...]

A não prevalência desse entendimento vulnera a garantia fundamental necessária à intimidade pessoal e à liberdade humana. Pior, fere de morte o princípio da isonomia em face da consequente distinção entre a mulher civil e a militar, porquanto as medidas protetivas e a penalização do agressor de modo mais gravoso, oriundas da novel legislação, não são aplicáveis na Jurisdição Milicien.

Ora, é dever do julgador atentar no sentido de não criar ou não aumentar desigualdades arbitrárias. Inadmissível o Poder Judiciário instituir uma inevitável diferenciação normativa entre o gênero feminino e cercear direitos inerentes à segurança familiar, em razão da profissão, por ser flagrantemente inconstitucional. (ROCHA, 2015, p. 7).

4.2 TEORIA DO CRIME MILITAR

            Os adeptos da Teoria do Crime Militar enunciam que qualquer conduta típica, ilícita e culpável, prevista na Parte Especial, combinada com a alínea “a”, inciso II, do art. 9º, do CPM (considerando excludentes de ilicitude ausentes e justiça militar competente), configura crime militar, qualquer que seja o agente (homem ou mulher) ou o local dos fatos (recinto, logradouro público, quartel etc.).

            Nessa perspectiva, que privilegia a justiça militar, a mulher, enquanto sujeito passivo, não é observada como parte mais frágil da relação, em condição de hipossuficiência, merecendo receber uma tutela especial, pois em virtude da profissão exercida, que lhe impõe uma natureza jurídica distinta, não se amoldaria àquela mulher amparada pela LMP.

            Entre outros teóricos, partilham desse entendimento Guilherme de Souza Nucci, que simplesmente ignora o local onde a infração penal militar foi praticada para sua caracterização (sujeito à administração militar ou em ambiente doméstico e familiar); Enio Luiz Rosseto, que destaca a lei como elemento norteador, aduzindo o rigor necessário em sua interpretação; além de Adriano Marreiros, Guilherme Rocha e Ricardo Freitas, que compreendem a constitucionalidade do direito à intimidade, privacidade, tutela do lar e da família, tanto quanto a da hierarquia e disciplina, princípios fundamentais do DPM.

            Em que pese uma mesma orientação, apresentam nuances, contudo esses estudiosos reconhecem a complexidade do tema, que envolve a mulher militar, deparam-se no caso concreto com o embate entre a LMP e o DPM, ocasionado pelo descaso do legislador que não promoveu alterações na legislação penal castrense.

            Para esses teóricos, portanto, no que se refere à aplicação do DPM e dos regulamentos internos de cada corporação, assim como no cotidiano da vida em caserna, não se estabelece distinção de sexo, existindo tão somente a figura do militar. Dessa maneira, agressões de qualquer ordem devem ser coibidas entre militares, nos mais diferentes grupos (familiares, casais, companheiros, namorados, amigos, colegas etc.), pois violam o decoro e o pundonor inerentes à classe, sem falar da hierarquia e disciplina, conforme asseveram Freitas, Marreiros e Rocha (2015):

É evidente que a possibilidade de não repercutir no trabalho é mínima e, em um quartel, ainda menor, e isso afeta a hierarquia e disciplina, pois a agressão entre dois militares, ainda mais quando se tratar de um casal é algo a ser coibido, pois fere o pundonor militar e o decoro da classe por atingir a essência da família. Aliás, como mostramos antes, até historicamente se comprova que a alínea em questão pretendeu abranger todos os crimes do CPm praticados por militar contra militar. Caso se entenda que é crime comum, o resultado seria a aplicação da Lei 9099, cuja aplicação à Justiça Militar foi vedada por nova Lei, justamente porque as medidas despenalizadoras não só afetavam a hierarquia e a disciplina, mas a própria essência do direito penal: não se pode falar em real liberdade para representação entre dois militares, não só entre superior e inferior, mas entre iguais, por toda a pressão que pode receber como um traidor do grupo. (FREITAS; MARREIROS; ROCHA, 2015, p. 110).

            Diante desses elementos presentes nesta Teoria, um soldado e um cabo não poderiam ser amigos na essência do termo, dois irmãos militares só o seriam no nome, o pai sargento não poderia repreender o filho tenente, seria impossível a convivência e, por assim dizer, a existência de um casal, além de outros tantos exemplos que poderíamos citar. Por qual razão? Ora, sem intimidade e privacidade essas relações sociais não se sustentariam naturalmente, visto que é necessário um mínimo de liberdade para que se desenvolvam normalmente.

            E quem estabelece essa liberdade? Cada um dos membros do grupo social, que individualmente imporá o seu limite, de modo que para se configurar um crime militar, conforme já salientamos, faz-se necessário a efetiva ofensa à regularidade da instituição militar considerada. Nesse sentido, ensina Assis (2016):

É uma teoria intransigente, convenhamos. Nem todo fato delituoso ocorrido entre militares constitui crime militar. A caracterização do crime militar não se resume a este dado objetivo, autor e vítima serem militares da ativa, devendo ser considerada a efetiva ofensa à instituição militar [...]. Com efeito, levada à risca, ou seja, aceita a ideia que uma lesão corporal causada pelo marido militar, dentro de casa, contra a mulher militar, por um motivo doméstico constitui crime militar implica em aceitar que, mesmo no seio de seu lar, o cônjuge (companheiro) de menor posto ou graduação tenha que pedir permissão para sentar-se ou retirar-se da mesa já que isto é uma regra essencial da disciplina prevista nos regulamentos de honras e sinais de respeito, e sua violação constitui transgressão. Imagine-se na hora de partilhar do mesmo leito? (ASSIS, 2016, p. 10).

4.3 TEORIA MISTA OU CONCILIADORA

            Segundo essa Teoria, frente a um fato delituoso caracterizado pela violência de gênero, envolvendo militares da ativa entre si que possuam relação de cunho doméstico-familiar / íntimo-afetivo, nos termos da LMP, tratar-se-á a conduta como crime militar impróprio, desde que haja desdobramentos para a caserna, isto é, efetiva ofensa à regularidade da instituição militar considerada, extrapolando, portanto, a vida íntima dos indivíduos. Contudo, conforme sugestiona o título, busca-se conciliar as duas teses anteriores, de modo que no caso concreto o delito militar será processado e julgado pela justiça militar competente, aplicando-se em qualquer tempo as medidas protetivas previstas na LMP.

            Nesse sentido, o professor Assis (2016) esclarece:

[...] pela terceira teoria, via de regra os fatos delituosos acontecidos entre casal de militares tratam-se de crime militar impróprio, por isso aplica-se a LMP na sua parte protetiva. É uma teoria que concilia a aplicação da lei pela Justiça Militar, ou seja, em alguns casos (não todos), tratar-se-ia de crime militar, a ser processado e julgado pelo Conselho de Justiça, mas a todo tempo poderiam ser aplicadas as medidas protetivas, seja pelo Juiz-Auditor (Juiz de Direito), seja pelo Conselho de Justiça. (ASSIS, 2016, p. 11).

            Essa Teoria revela-se atualmente como a mais apropriada diante da celeuma em questão, causada pela omissão do legislador em relação ao DPM, no entanto existem outros elementos a serem avaliados além dos critérios objetivos já estudados quanto à caracterização de um crime militar, destarte Assis (2016) prossegue:

Dentro dessa análise da ocorrência de crime militar entre casal de militares, é de bom alvitre lembrar-se que ainda que se tratem de questões objetivas, e portanto facilmente verificáveis, a análise deve envolver ainda os seguintes fatores: o fato do casal de militares ser constituído de marido e mulher de igual posto ou graduação; o fato da mulher ser superior hierárquica do marido; o fato da mulher ser subordinada hierárquica do marido e; a possibilidade de pertencerem ou não à mesma Força federal ou estadual. (ASSIS, 2016, p. 11).

            Na prática, aceitando-se a adoção no DPM das medidas tutelares presentes na LMP, as funções de cada autoridade deverão adequar-se à realidade, visando à proteção da mulher militar, sem prejuízo à aplicação da legislação penal castrense. Quem fará a função da “Autoridade Policial” (Delegado de Polícia), prevista no Capítulo III da LMP, será a Autoridade de Polícia Judiciária Militar, nos termos do art. 7º do CPPM, assim, de acordo com Assis (2016):

No atendimento à mulher em situação de violência doméstica e familiar, a autoridade policial [leia-se, o Comandante, a pedido da vítima ou do encarregado do inquérito policial militar ou auto de prisão em flagrante] DEVERÁ, dentre outras providências:

I – garantir proteção policial, quando necessário, comunicando de imediato o MP e ao Juiz-Auditor (Juiz de Direito);

II – encaminhar a ofendida ao hospital ou posto de saúde e ao IML;

III – fornecer transporte para a ofendida e seus dependentes para abrigo ou local seguro, quando houver risco de vida;

IV – informar à ofendida os direitos a ela conferidos na LMP e os “serviços disponíveis”. (ASSIS, 2016, p. 14).

            As medidas protetivas de urgência, previstas nos arts. 22, 23 e 24 da LMP, sendo aplicadas ao(à) agressor(a), conforme verificamos na seção “3.3”, são de caráter preventivo e devem ser concedidas de pronto, pois têm como objetivo impedir o dano imediato. Por isso, quando ocorre um fato delituoso nas circunstâncias mencionadas, a autoridade de policia judiciária militar em exercício deverá comunicar imediatamente o juiz de direito do juízo militar (juiz-auditor), que analisará o expediente com o pedido da ofendida e deliberará acerca da concessão, no prazo de 48 (quarenta e oito) horas, conforme art. 18, inciso I, da LMP. Poderão ser concedidas pelo juiz de direito (juiz-auditor), de ofício, a requerimento do Ministério Público ou a pedido da ofendida (art. 19 da LMP).

            Ante o exposto, os tribunais, de um modo geral, têm pautado suas decisões no sentido de aplicar a Teoria Conciliadora, sendo que frente ao eventual conflito aparente de normas, no caso concreto, deve-se observar como fator determinante para ocorrência de crime militar a “efetiva ofensa à regularidade da instituição militar considerada”, caso contrário será crime comum.

            Abaixo se transcreve um fato concreto narrado por Assis (2016), no qual podemos verificar a aplicação prática da Teoria Conciliadora, na 1ª instância da Justiça Militar Federal, Auditoria da 8ª Circunscrição Judiciária Militar, em Belém-PA, envolvendo casal de militares:

Segundo constou da denúncia, no dia 10 de março de 2015, por volta das 8:00h, uma 2º tenente, estacionou seu veículo em frente à Seção Telemática da Base Aérea de Belém. Cerca de 15 minutos após estacionar seu carro, a oficiala fora informada que um 2º sargento, seu ex - companheiro, ora denunciado, teria utilizado um martelo para danificar o para-brisa de seu veículo e jogado substância inflamável no veículo. Considerado crime militar, sem qualquer sombra de dúvida, o agente foi incursionado no art. 261, II, CPM (dano qualificado pelo uso de substância inflamável, sujeito a uma pena de reclusão de até 4 anos, se o fato não constituir crime mais grave.

Na sala da Auditoria, durante a audiência de qualificação e interrogatório seguiu-se a oitiva da ofendida, que expressou sentir-se ameaçada pelo réu, que trabalhava na mesma Organização Militar, e que já teria aparecido, sem motivo justificável no colégio do filho pequeno da tenente.

Com parecer favorável do Ministério Público Militar, naquela audiência, o réu: a) teve suspenso o direito de porte de arma (art. 22, I, LMP); b) foi transferido para outra OM (art. 22, II, LMP); c) foi proibido de ter contato com a ofendida e sua família (art. 22, III, LMP).

Ainda que considerado o fato delituoso como crime militar, considerou-se, na oportunidade, que a ofendida corria riscos à sua integridade e de seu filho menor, razão pela qual, o Conselho de Justiça, deferiu as medidas protetivas de urgência, em uma perfeita aplicação da Lei Maria da Penha na Justiça Militar. (ASSIS, 2016, p. 17-18).

5 CONCLUSÃO

            A família, base fundamental da sociedade, sofreu ao longo dos anos mudanças significativas em relação a sua concepção e, por consequência, constituição tradicionais, em conformidade com os parágrafos 3º e 4º do art. 226 da CF/88, cuja definição de “entidade familiar” tornou-se ultrapassada, em virtude da evolução dos tempos e da globalização, que promoveram o surgimento de estruturas familiares diversas, atendendo a real necessidade social, traduzida pela construção de ralações de afeto.

            Ocorre que essa união afetiva está sujeita a interferências internas e externas, motivando a existência de discussões e violência no seio familiar, conforme acompanhamos em nosso cotidiano e na mídia, gerando, por vezes, a desestruturação dessa instituição. Nesse cenário, observa-se, notoriamente, que é a mulher o alvo maciço dessa violência, caracterizada como “violência de gênero”.

            O Estado, guardião da família, a fim de preservá-la, garantiu no § 8º do art. 226 da CF/88, assistência, bem como a criação de mecanismos para combate à violência, resguardando cada um de seus integrantes. Nesse sentido, em atenção ao princípio da igualdade material, foi criada a Lei 11.340/06, “Lei Maria da Penha”, visando a garantir maior proteção e um tratamento jurídico diferenciado, em relação às mulheres, que se encontram em situação de vulnerabilidade no contexto doméstico-familiar e íntimo-afetivo.

            A LMP revela-se extremamente ampla, apresentando aspectos penais, processuais e tutelares, no entanto, promoveu alterações tão somente na legislação penal comum, olvidando-se o legislador do DPM, ramo autônomo do Direito, ao qual se submetem, essencialmente, os militares (tanto homens, quanto mulheres), que podem vir a se relacionar entre si e constituir uma família.

            Nesse contexto, na relação entre militares da ativa, nos termos da alínea “a”, inc. II, do art. 9º do CPM, poderá também ocorrer a violência de gênero, suscitando eventual conflito aparente de normas, diante do caso concreto, no que se refere à caracterização de crime comum ou militar, considerando a natureza especial da LMP e da legislação penal militar, em razão da omissão por parte do legislador que ignorou a existência do DPM.

            Desse modo, a fim de se contornar o problema, doutrinadores e estudiosos do tema enumeraram três teorias: Teoria do Crime Comum, uma vez que a ofensa restringe-se ao âmbito doméstico-familiar ou às relações íntimas de afeto, não havendo desdobramentos do fato para o ambiente da caserna; Teoria do Crime Militar, quando essa ofensa extrapola esses domínios, afetando efetivamente a regularidade da instituição militar considerada, ainda que de maneira indireta e; Teoria Mista ou Conciliadora, que busca harmonizar as anteriores, caracterizando o fato como crime militar, segundo a respectiva teoria, contudo, aplicando-se as medidas protetivas de urgência da LMP, o que é plenamente possível.

            A Teoria Conciliadora tem sido adotada pelos tribunais, de um modo geral, em suas decisões, pois se mostra a mais coerente frente à situação-problema em questão, visando à imparcialidade e promovendo a harmonia entre as demais. Importa ressaltar a necessidade da efetiva ofensa à instituição militar para sua concretização, do contrário será crime comum.

            Portanto, essas teses não resolvem o problema, gerado por conta de um descaso que se desenrola ao longo de anos, por parte de um Poder Legislativo relapso, em relação aos militares, apenas o tratam de maneira paliativa, remediando a questão. A resolução do problema somente se dará por meio de uma reforma na legislação penal militar, que proporcione sua adequação à realidade.

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Sobre o autor
Claudio Luiz Pereira

Oficial da Polícia Militar do Estado de São Paulo. Ex-militar das Forças Armadas. Bacharel em Direito e Especialista em Direito Militar, Direito Civil e Processo Civil - Universidade Cruzeiro do Sul (UNICSUL). Bacharel em Ciências Policiais de Segurança e Ordem Pública - Academia de Polícia Militar do Barro Branco (APMBB). Bacharel e Licenciado em Letras - Universidade de São Paulo (USP).

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O presente estudo é anterior às alterações promovidas no Código Penal Militar, pela Lei nº 13.491, de 13 de outubro de 2017.

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