Resumo: O Judiciário, em especial seu órgão de cúpula – o Supremo Tribunal Federal, vem gradualmente aumentando sua importância no cenário nacional, de Poder apagado e acuado no regime militar, para uma posição de centralidade na vida institucional brasileira atual, após a redemocratização e quase três décadas da Constituição de 1988. O fato é que o espaço simbólico da democracia vem migrando silenciosamente da política para o Judiciário, cujas decisões cada vez mais invadem a esfera de competência dos demais Poderes. O presente artigo analisa os fatores institucionais formais e informais a favorecer a expansão de poder do Judiciário brasileiro.
Palavras-chave: Judiciário. Expansão de Poder. Democracia.
INTRODUÇÃO
Em um fenômeno que se reconhece como tendência mundial, reconhece-se a intervenção, cada vez maior, do Poder Judiciário na formatação dos direcionamentos estatais. O fenômeno cada vez mais presente do ativismo judicial, que se consubstancia na ultrapassagem das linhas demarcatórias da função jurisdicional, em detrimento das funções legislativa, administrativa e, até mesmo da função de governo, vem demonstrando uma nova repartição dos poderes e funções estatais, assumindo o Poder Judiciário uma parte expressivamente maior, isto é, uma expansão de poder dos juízes.
Oscar Vilhena Vieira[1] cunhou a expressão “supremocracia”, para simbolizar que a função de árbitro dos conflitos institucionais no Estado brasileiro, que segundo o mesmo já esteve no Poder Moderador, na época do Império; no Exército, na República Velha e nos períodos autoritários; a partir da Constituição de 1988 vem se fixando no Poder Judiciário, em especial no Supremo Tribunal Federal.
O Judiciário, em especial o STF, não se limita a intervir na produção normativa apenas no aspecto negativo, isto é, fulminando normas jurídicas já vigentes por violarem a Constituição Federal, mas também assume, inegavelmente, uma “função positiva”, isto é, de criador da norma jurídica.
Nesse sentido, o presente trabalho não visa à discussão acerca do conceito de ativismo judicial ou mesmo de sua legitimidade democrática, já tão exaustivamente debatido na doutrina pátria. O presente artigo tem por escopo analisar justamente quais as causas, jurídicas e extrajurídicas, que permitiram a ascensão institucional do Poder Judiciário dentro do Estado brasileiro, dando substrato para o início do movimento ativista e lançando as bases a permitir a criação judicial de direito.
Conforme nos reporta Luís Roberto Barroso, no mundo contemporâneo, as principais discussões políticas, econômicas e sociais dos países ocidentais, que antes tinham seus parâmetros delimitados pelas instâncias políticas do Executivo e Legislativo, agora passam a ser discutidas no âmbito judicial. Nos Estados Unidos, o último capítulo da eleição presidencial de 2000 foi escrito pela Suprema Corte, no julgamento de Bush v. Gore. Em Israel, a Suprema Corte decidiu sobre a compatibilidade, com a Constituição e com atos internacionais, da construção de um muro na fronteira com o território palestino. Na Coréia, a Corte Constitucional restituiu o mandato de um presidente que havia sido destituído por impeachment[2].
No Brasil não é diferente. O Judiciário brasileiro, em especial seu órgão de cúpula – o Supremo Tribunal Federal, vem gradualmente aumentando sua importância no cenário institucional nacional, de um Poder apagado e acuado no período autoritário do regime militar, para uma posição de centralidade na vida institucional brasileira atual, após a redemocratização e quase três décadas da Constituição Federal de 1988.
Somente na presente década, o STF equiparou as uniões homoafetivas às uniões estáveis convencionais, abrindo caminho para o casamento entre pessoas do mesmo sexo[3]; autorizou a interrupção da gestação de fetos anencefálicos[4]; definiu o rito do procedimento de impeachment da ex-Presidente da República Dilma Rousseff declarando inconstitucionais dispositivos do Regimento Interno da Câmara dos Deputados[5]; determinou cautelarmente a suspensão do exercício das funções parlamentares do Presidente da Câmara dos Deputados[6]; reconheceu que o sistema penitenciário brasileiro vive um “Estado de Coisas Inconstitucional” com violação generalizando de direitos fundamentais dos presos, atribuindo ao próprio STF o papel de retirar os demais Poderes da inércia, podendo coordenar ações visando resolver o problema e monitorar os resultados alcançados, levando a Corte a assumir um papel atípico, sob a perspectiva do princípio da separação de poderes, que envolve uma intervenção mais ampla sobre o campo das políticas públicas[7].
Mas não só o STF vem assumindo o papel “moderador” da vida institucional brasileira, nas demais instâncias judiciais, cotidianamente são prolatadas decisões obrigando o poder público ao cumprimento das mais variadas políticas públicas, como vagas em creches e escolas, concessão de medicamentos e leitos hospitalares, sem se falar no campo da justiça criminal, como a operação Lava-Jato.
Tudo isso demonstra uma expansão no poder do Judiciário sem precedentes na história brasileira. Todavia, questiona-se: o que pode explicar a transformação do papel do Judiciário, em especial do STF – da periferia para o centro do debate político nacional – nessas três décadas?
Os aspectos formais, tratados no capítulo inicial, são aqueles que estão expressamente previstos no desenho institucional formal do ordenamento jurídico, isto é, estão positivados pela norma jurídica, entre eles serão analisados no capítulo: a) a redemocratização e o retorno das garantias institucionais e funcionais do Poder Judiciário com a CF/88; b) o redesenho do sistema judicial de controle de constitucionalidade na Constituição de 1988, ampliando tanto os poderes e a forma de exercício da jurisdição constitucional, como também os diferentes canais pelos quais esses poderes podem ser acessados pela sociedade; c) a “constitucionalização abrangente” já que o texto constitucional, por ser simultaneamente amplo e detalhado, facilita que debates políticos ou morais sejam considerados judicializáveis; d) a delegação de poder normativo/de decisão ao Poder Judiciário pelo próprio legislador através de textos jurídicos, inclusive a Constituição, eivados de normas abertas, como princípios e cláusulas gerais.
Por outro lado, existem aspectos que não constam do desenho formal das instituições nem positivados pela norma jurídica, mas que consistem em comportamentos dos atores sociais e institucionais, e que são fundamentais para a compreensão do atual papel do judiciário no Estado brasileiro, entre eles, serão apreciados: a) O comportamento estratégico de atores políticos que enxergam nos tribunais a oportunidade de reverter decisões majoritárias nas quais foram derrotados; b) A crise de representatividade a consequente canalização, das instituições políticas para os tribunais em geral, de expectativas sociais frustradas – o Judiciário como “guardião das promessas”; c) A adoção, por vezes acrítica e incompleta, de teorias pós-positivistas estrangeiras e o fascínio dos atores jurídicos nacionais com a redescoberta dos princípios.
Para toda consequência existe uma miríade de situações que podem ser indicadas como causa, em uma realidade contemporânea tão interligada. Sem embargo desta constatação, nas páginas seguintes pretendo discutir as razões de ordem institucional e mesmo não-institucionais que considero, precipuamente, terem favorecido à expansão dos poderes do Judiciário no Estado brasileiro.
FATORES INSTITUCIONAIS/POSITIVADOS DE EXPANSÃO DE PODER DO JUDICIÁRIO
II.1 Redemocratização e retorno das garantias institucionais e funcionais de juízes e tribunais
A redemocratização trouxe consigo o retorno das liberdades democráticas e das garantias institucionais dos Poder Judiciário e funcionais dos magistrados. Garantias e liberdades suprimidas no período do regime de exceção.
O regime militar perdurou de 1º de abril de 1964, com o golpe de estado que destituiu o Presidente João Goulart do poder, até 15 de março de 1985. As pouco mais de duas décadas do regime, foram marcadas por fases de maior ou menor repressão política, a incluir censura, prisões ilegais, tortura e mortes. Período no qual vigoraram as Constituições de 1946 e de 1967, assim como a Emenda Constitucional nº 1, de 1969.
Não obstante tal fato, paralelamente à ordem constitucional foram editados os denominados “atos institucionais”, cujo símbolo maior foi o Ato Institucional nº 5, de 15.12.1968. Com base em tal ato, facultava-se ao Presidente da República decretar o recesso do Congresso Nacional, cassar mandatos parlamentares, suspender direitos políticos, aposentar compulsoriamente juízes e membros do Ministério Público, demitir servidores públicos, entre outras arbitrariedades, estando excluídas de apreciação judicial as ações do Presidente nele fundadas. Nesse cenário, verificou-se uma retração significativa da autonomia e dos poderes do Judiciário, como nos reporta o ilustre advogado Sobral Pinto:
Entra pelos olhos de quem quer ler com isenção que no Brasil destes dias só existe um Poder soberano: o Presidente da República. O Poder Legislativo, quer federal, quer estadual, quer municipal perdeu, de maneira clara, patente e absoluta, a sua soberania. O Presidente da República fecha o Congresso, as Assembléias Legislativas e as Câmaras Municipais quando bem entender, e passa ele a exercer as funções legislativas atribuídas a estes órgãos eletivos. O Poder Judiciário desapareceu como poder, porque os seus membros, tanto federais quanto estaduais, podem ser demitidos ou aposentados pelo Presidente da República, por simples decreto de sua lavra. A soberania deste Poder foi destruída pelo ATO INSTITUCIONAL N.º 5 que tirou a autonomia e a independência nas funções de seu cargo à vontade soberana do Presidente da República, que os aposentará, demitirá, removerá ou porá em disponibilidade sem prestar contas a ninguém deste seu ato. (…) A Magistratura, provocada pelos lesados em seus direitos, não pode opor-se à vontade arbitrária dos órgãos do Poder Executivo. A correspondência pode ser violada, os jornais, as emissoras de rádio e as câmaras de televisão podem ser censurados sem que a Magistratura tenha meios de evitar estes atentados. Os bens de políticos adversários podem ser confiscados, por simples suspeição, sendo vedado à Magistratura evitar tão brutal confisco. Os Juízes, os militares e os funcionários adversários do Governo podem ser demitidos, aposentados, reformados ou postos em disponibilidade, permanecendo a Magistratura alheia a todas estas lesões, de ordinário injustas. O Presidente da República, substituindo-se ao Congresso Nacional, às Assembléias Legislativas Estaduais, e às Câmaras Municipais promulga leis federais, estaduais e municipais, na qualidade de legislador universal do País, estando todos obrigados a acatar, cumprir e executar semelhantes leis."[8]
O regime militar proporcionou um Judiciário acuado, que não teve força para fazer valer o Direito diante das arbitrariedades cometidas. Entre os juízes que ousaram combatê-las houve prisões e aposentadorias compulsórias, inclusive de ministros do STF que se posicionaram de forma contrária ao regime, como os ministros Victor Nunes Leal, Hermes Lima e Evandro Lins e Silva. Por força do próprio Ato Institucional, essas aposentadorias compulsórias estavam excluídas de apreciação judicial. Tudo isso ocorreu durante a vigência da Constituição de 1967 e da emenda constitucional nº 1/69, que formalmente concediam garantias funcionais e institucionais ao Poder Judiciário. Episódios emblemáticos desta relação nos são aludidos:
O Supremo Tribunal Federal (STF) não ficou imune aos efeitos do golpe. Nos primeiros anos da ditadura, até a decretação do AI-5, em 1968, ainda era possível conceder habeas-corpus a presos políticos. Com o AI-5, suspenderam-se os habeas-corpus para os crimes políticos e para os crimes contra a segurança nacional, a ordem econômica e social, e a economia popular.
Houve, no entanto, movimentos de resistência de ministros do Supremo durante todo o regime militar. O jornalista e professor de História da Imprensa da Universidade de Brasília (UnB), Carlos Chagas, aponta dois episódios emblemáticos ocorridos na Suprema Corte: o “caso das chaves” e o da “lei da mordaça”.
Logo após ser empossado no cargo, o general Humberto de Alencar Castello Branco, o primeiro presidente do período militar (1964-1967), fez uma visita de cortesia ao STF. Em seu discurso, Castello Branco tentou enquadrar o Supremo no movimento de 64, pedindo que o Tribunal seguisse “as orientações da revolução, que é como eles chamam o golpe”, diz Carlos Chagas.
O jornalista conta que o à época presidente do STF, ministro Álvaro Ribeiro da Costa, respondeu de forma dura, dizendo que o Supremo era o ápice do Poder Judiciário e que não deveria ser enquadrado em nenhuma ideologia revolucionária, sobretudo em um golpe como aquele. Castello Branco retrucou, falando que quem mandava era o Executivo. Desafiado, Ribeiro da Costa deu um recado ao presidente: se cassassem algum ministro do Supremo, ele fecharia o Tribunal e entregaria as chaves ao porteiro do Palácio do Planalto.
Para não cassar ministros do STF, Castello Branco aumentou o número de magistrados do Tribunal de 11 para 16, por meio do AI-2, de 27 de outubro de 1965. Nomeou cinco ministros: Adalício Nogueira, Prado Kelly, Oswaldo Trigueiro, Aliomar Baleeiro e Carlos Medeiros. Mais tarde, em fevereiro de 1967, nomeou o deputado federal Adaucto Lucio Cardoso, da União Democrática Nacional (UDN), para ocupar a vaga deixada pela aposentadoria do ministro Ribeiro da Costa. Foi justamente Adaucto Lucio o protagonista de outro célebre exemplo de resistência do STF, o caso da lei da mordaça.
A lei da mordaça, um decreto-lei que instituía a censura prévia de originais de qualquer livro que se quisesse publicar, foi aprovada pelo Congresso no governo do general Emílio Garrastazu Médici (1969-1974). A oposição entrou com um recurso no STF, dizendo que aquela norma era inconstitucional, por atentar contra a liberdade de expressão, mas o Supremo disse que não poderia se intrometer nos interesses da revolução.
Indignado com o posicionamento do Tribunal, o ministro Adaucto Cardoso, que fora nomeado pelo militares, levantou-se, retirou a toga e disse que nunca mais voltaria ao Supremo, solicitando sua aposentadoria nessa sessão de março de 1971, logo após o julgamento do recurso. Na opinião de Carlos Chagas, esse foi um ato libertário.
O professor de Ciência Política Otaciano Nogueira, da UnB, também considera a atitude de Adaucto Cardoso uma das melhores ilustrações de que havia inconformismo no Judiciário. Nogueira pondera que o Supremo tinha independência formalmente, mas que os Atos Institucionais acabaram com a segurança jurídica no país.[9]
Além da aposentadoria de juízes contrários à ideologia autoritária, o Ato Institucional nº 5 suspendeu a garantia constitucional do habeas corpus para os crimes políticos e para os crimes contra a segurança nacional, a ordem econômica e social, e a economia popular. O que na prática impedia a apreciação judicial da legalidade das prisões políticas realizadas pelo regime.
Com a redemocratização e a Constituição de 1988, as garantias funcionais da inamovibilidade e vitaliciedade efetivamente retornaram[10]. Demais disso, a Carta Cidadã inovou, sendo a primeira a incluir em seu texto a autonomia institucional ao Judiciário, garantindo a autonomia financeira e administrativa dos tribunais, bem como a iniciativa privativa de sua proposta orçamentária[11], o que tende a fortalecer a independência institucional do Judiciário em relação a possíveis tentativas de retaliação orçamentária pelos outros Poderes.
Em uma demonstração de interação entre o desenho constitucional e a prática institucional, as garantias do Judiciário vêm sendo protegidas não só pelo texto da Constituição, mas pela própria jurisprudência do STF, que vem blindando a ação dos outros Poderes em face dos tribunais.
O primeiro exemplo é a decisão liminar exarada em sede da ADI 2238/DF que questionou dispositivos da Lei de Responsabilidade Fiscal (Lei Complementar nº 101/2001). O STF rejeitou a maioria dos pedidos de declaração de inconstitucionalidade, todavia, declarou a inconstitucionalidade do art. 9º §3º da referida lei[12], cujo conteúdo autorizava o Poder Executivo, caso verificasse ao final de um bimestre que a realização da receita não comportaria o cumprimento das metas de resultado primário ou nominal estabelecidas no Anexo de Metas Fiscais e caso os demais Poderes e Ministério Público não fizessem diretamente a limitação de empenhos, realizar por ele mesmo a limitação. O STF considerou neste caso hipótese de interferência indevida do Poder Executivo nos demais Poderes e no Ministério Público, violadora da separação de Poderes inscrita no art. 2º da CRFB/88[13]. Com isso, o tribunal manteve, através de uma interpretação constitucional, a autonomia financeira do Judiciário e do Ministério Público frente ao Poder Executivo.
O segundo exemplo traduziu-se na apresentação da proposta de emenda à Constituição nº 33/2011 (PEC nº 33/2011). A referida PEC propunha uma modificação nos arts. 97 e 103-A da CF para: 1) aumentar o quórum de declaração de inconstitucionalidade de leis e atos normativos pelos tribunais de maioria absoluta para quatro quintos de seus membros ou membros do órgão especial; 2) a necessidade de aprovação do Congresso Nacional para aprovação de súmulas vinculantes; e 3) a possibilidade de o Congresso Nacional, em discordando de decisão do STF que reconheçam a inconstitucionalidade de emendas à Constituição Federal, de submeter a controvérsia à consulta popular[14]. Assim, eventual promulgação da referida proposta teria por efeito ocasionar uma maior dificuldade de tribunais invalidarem atos normativos do poder público bem como a possibilidade de o Legislativo insurgir-se contra uma decisão do Supremo Tribunal Federal, diminuindo os poderes do próprio Poder Judiciário, e aumentando a ingerência do Poder Legislativo. Em razão de pronunciamentos críticos dos próprios ministros da Corte e de uma mobilização da imprensa e da sociedade, a proposta não teve seguimento, o que demonstra uma capacidade de mobilização atual do Poder Judiciário na autopreservação de sua autonomia, poderes e competências frente aos outros Poderes como não visto anteriormente na história institucional brasileira.
Sendo assim, o retorno das liberdades democráticas aliado às garantias institucionais e funcionais conferidas ao Judiciário e do Ministério Público, são considerados fatores decisivos no papel de centralidade que estas instituições ocupam no cenário atual, visto que as tornam menos suscetíveis a retaliações de outros atores institucionais, possibilitando sua ação de forma mais independente.
Com a Constituição de 1988 a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito, os juízes voltam a possuir a vitaliciedade, isto é, a garantia de que só perderão o cargo por sentença judicial transitada em julgado e inamovibilidade, além de institucionalmente os tribunais passarem a ter a sua iniciativa orçamentária, o que é fundamental para impedir uma reprimenda financeira do Executivo aos tribunais. Isto tudo passa a constituir o Judiciário como um Poder com uma face muito mais independente do que o visto no período anterior, e com capacidade de impor suas decisões em face das outras instâncias.
II.2 O redesenho do sistema judicial de controle de constitucionalidade na Constituição de 1988 e ampliação dos canais de acesso
A Constituição de 1988 realizou uma ampliação, sem precedentes na história constitucional brasileira, dos canais de acesso pelos quais se provoca a atuação do STF e das ferramentas conferidas aos tribunais no exercício da jurisdição constitucional.
O controle de constitucionalidade surge no País com a Constituição de 1891, a primeira republicana, trazendo em seu corpo a nítida influência norte-americana, em razão do caráter incidental e de efeitos concretos do controle judicial. Confira-se a lição de Elival da Silva Ramos:
Tratava-se, com efeito, de um controle difuso, quanto ao aspecto orgânico ou competencial; incidental, concreto e subjetivo, quanto ao aspecto modal ou procedimental; gerador de decisões com efeito inter partes, decisões essas de natureza meramente declaratória, com aparência de retroatividade total, no plano da eficácia temporal, indicativas de nulidade ab initio e de pleno direito do ato impugnado.[15]
A Constituição de 1934, por sua vez, inseriu no controle de constitucionalidade brasileiro a regra americana do full bench, ou cláusula de reserva de plenário[16], a possibilidade de o Senado Federal, por provocação do Procurador Geral da República, suspender a execução do ato declarado inconstitucional[17] e a vedação expressa de apreciação judicial de questões de natureza “política”[18]
A Constituição de 1937 por sua vez, autoritária e que ficou conhecida como “polaca”, trouxe a possibilidade de o Presidente da República submeter a decisão judicial que declarasse a inconstitucionalidade de lei ou ato à reapreciação do Parlamento, caso verificasse as abstratas hipóteses de “bem estar do povo” ou a “defesa do interesse nacional de alta monta”[19].
Possibilidade excluída pela Constituição de 1946, resultado da reabertura democrática após o Estado Novo varguista. Demais disso a Carta de 1946 disciplinou hipóteses de cabimento do recurso extraordinário, detalhando em seu corpo o uso deste instrumento do controle concreto de constitucionalidade pelo STF.
A grande alteração no sistema, que dá origem ao singular sistema misto de controle de constitucionalidade visto no Brasil se dá com o advento da emenda constitucional nº 16 de 26 de novembro de 1965. Com ela a alínea “k”, do inciso I, do art. 101 da CF/1946 passa a prever a possibilidade da representação de inconstitucionalidade de lei ou de ato de natureza normativa, federal ou estadual, a ser proposta unicamente pelo Procurador-Geral da República. Dessa forma, surge no sistema brasileiro a ação direta de inconstitucionalidade, de viés realmente abstrato, diferentemente da representação interventiva anteriormente prevista. Neste ponto, deve-se ressaltar a diferença substancial entre a representação prevista na EC nº 16/1965, cuja decisão judicial gera efeitos que já nascem erga omnes e ex tunc, dispensando-se da intervenção do Senado Federal para torná-los gerais, da antiga representação interventiva, que não dispensava da participação do Poder Legislativo para o alcance geral dos efeitos.
A Constituição de 1967, promulgada durante o período autoritário não trouxe grandes alterações no sistema de controle de constitucionalidade, assim como a emenda constitucional nº 1 de 17 de outubro de 1969, outorgada pelos ministros da Marinha, Exército e Aeronáutica.
É importante ressaltar, todavia, que apesar da previsão constitucional de um modelo concentrado de controle de constitucionalidade, sua utilização não tinha grande capacidade de confrontar o sistema político. Isto porque o único legitimado para a propositura da representação de inconstitucionalidade era o Procurador-Geral da República, e este, diferentemente do modelo previsto na CF/88, não precisava ser um membro de carreira do Ministério Público da União, sendo livremente indicado e demissível ad nutum pelo Presidente da República[20]. O próprio Ministério Público não possuía a autonomia conferida pela CF/88, atuando como o braço jurídico do Poder Executivo. Desta feita, a despeito do plano ideal e aproximando-se do mundo real, era o Presidente da República, que tinha poderes para livremente nomear e destituir do Chefe do Ministério Público Federal, quem realmente detinha a atribuição de propor a representação de inconstitucionalidade. Dentro de um Congresso Nacional controlado pelo Poder Executivo, que não aprovaria atos normativos contrários à ideologia do regime, o controle abstrato de constitucionalidade trazido pela CF/88 representou, na grande maioria das vezes, um instituto natimorto.
Esse foi o cenário de controle de constitucionalidade que vigeu no período que antecedeu a redemocratização.
A Constituição de 1988 foi responsável por revolucionar o controle abstrato de constitucionalidade, permitindo ao STF se pronunciar sobre a constitucionalidade de qualquer ato normativo, seja em grau de recurso (controle concreto), seja por via principal (controle abstrato). Neste sentido, a Constituição manteve e ampliou a combinação, existente no Brasil desde 1965, entre formas de controle de constitucionalidade típicas do sistema do americano e do sistema Europeu do pós-guerra. Em vez de escolher por um dos sistemas, o constituinte manteve e aprofundou o modelo híbrido da tradição brasileira recente.
Combinou-se o modelo difuso (sistema americano), potencializado com a instituição de ferramentas como o mandado de injunção singular ou coletivo, com a adoção de um modelo concentrado que prevê uma série de instrumentos processuais, quais sejam, a ação direta de inconstitucionalidade - ADI (art. 102, I, “a” da CF/88); a ação declaratória de constitucionalidade – ADC (art. 102, I, “a” da CF/88); a arguição de descumprimento de preceito fundamental – ADPF (art. 102, §1º da CF/88) e a ação direta de inconstitucionalidade por omissão (art. 103, §2º da CF/88).
O resultado dessa escolha é que esse modelo misto proporciona um grau extenso de abertura da jurisdição constitucional à sociedade. A apreciação judicial pode se dar tanto pelo controle abstrato, por via de ações diretas de inconstitucionalidade, que discutem leis em tese, quanto em recursos ou outras ações em que litígios concretos são levados ao STF e lhe permitem anunciar e afirmar suas interpretações da Constituição. Ademais, houve uma grande mudança: o rol de legitimados para a propositura de ações de inconstitucionalidade diretamente perante o STF sofreu grande expansão dentro da CF/88. Assim, dentro de uma Constituição extremamente abrangente e analítica, houve uma grande ampliação dos canais acesso direto ao STF[21], e não mais apenas o canal do Procurador-Geral da República demissível ad nutum pelo Presidente da República.
Conforme Arguelhes e Ribeiro[22], nesse sentido, o art. 103 da Constituição de 1988 representa uma mudança revolucionária no papel do STF na vida nacional ao abrir inúmeras portas de entrada para demandas sociais e de minorias políticas na antes restrita agenda daquele tribunal. Essa ampliação de canais de acesso ao controle abstrato foi cumulada à manutenção das já tradicionais competências recursais.. O resultado, na prática, é um tribunal com dezenas de portas de acesso diferentes que indivíduos ou instituições podem utilizar para levar uma determinada questão ao conhecimento dos ministros. O 1º relatório do projeto Supremo em Números identificou 52 espécies processuais distintas dentro do STF logo após 1988.
A Constituição de 1988 foi a responsável por criar no âmbito do controle concentrado de constitucionalidade a ação direta de inconstitucionalidade por omissão e do mandado de injunção.
Em relação à ADI por omissão, o STF diante de sua procedência tem tido um posicionamento de autocontenção até o momento, interpretando o dispositivo à luz da literalidade constitucional, dispondo que declarada a inconstitucionalidade por omissão de medida para tornar efetiva norma constitucional, tão somente será dada ciência ao Poder competente para a adoção das providências necessárias[23].
Por outro lado, o mandado de injunção é o remédio constitucional que tem recebido uma sensível alteração na compreensão dos efeitos de sua procedência pelo STF. A CF/88 apenas prevê que o mandado de injunção será concedido sempre que a falta de norma regulamentadora torne inviável o exercício dos direitos e liberdades constitucionais e das prerrogativas inerentes à nacionalidade, à soberania e à cidadania (art. 5º, LXXI, CF/88). Inicialmente, a corte constitucional brasileira conferia a este instrumento um caráter não concretista, cuja procedência simplesmente resultaria na comunicação ao Poder ou órgão responsável para que elaborasse a norma regulamentadora ausente, nos moldes da ADI por omissão[24].
Nos mandados de injunção nº 712, 708 e 670, o STF restou por alterar o seu entendimento anterior, passando a conferir ao mandado de injunção caráter concretista, com efeito erga omnes. No caso, diante da omissão do legislador em regulamentar o direito de greve dos servidores públicos, o tribunal resolveu, até a cessação da omissão inconstitucional, que se aplicaria analogicamente aos servidores públicos a Lei de Greve aplicável aos trabalhadores da iniciativa privada[25]. No MI 721, por sua vez, adotou a posição concretista individual, aplicando ao impetrante o direito de aposentadoria especial pelo exercício de trabalho insalubre a servidor público[26].
Com a lei nº 13.300/2016 o próprio Poder Legislativo parece ter apreciado o comportamento mais ativista do Judiciário, visto que a supracitada lei, que disciplina o processo e o julgamento dos mandados de injunção individual e coletivo, visto que permite expressamente ao juiz criar as condições em que se dará o exercício dos direitos, liberdades ou das prerrogativas reclamadas[27], em uma clara delegação de função normativa ao Judiciário. E não só, a própria lei permite que seja conferida eficácia ultra partes ou erga omnes à decisão, quando for “inerente ou indispensável” ao exercício do direito (art. 9º, § 1o, da lei nº 13.300/2016).
Para além de todos os instrumentos já aqui dispostos, a CF/88 previu também, em seu art. 102, parágrafo único, a arguição de descumprimento de preceito fundamental (ADPF), disciplinada pela lei nº 9.882/1999. A ADPF trata-se de uma ferramente poderosa do controle de constitucionalidade em razão de sua natureza subsidiária em relação às demais. Assim, permite a conformação em face de preceito fundamental de qualquer lei ou ato normativo federal, estadual ou até mesmo municipal que não caiba nas demais ações diretas. Demais disso, a ADPF permite ainda a análise da recepção de normas pré-constitucionais, o que não se admite nas demais ações diretas do controle abstrato.
Assim, em razão do caráter subsidiário da ADPF em combinação com a ação direta de inconstitucionalidade, a ação declaratória de constitucionalidade, e a ação direta de inconstitucionalidade por omissão, é possível afirmar que no panorama normativo atual, virtualmente, qualquer ato normativo pode ser levado ao STF para apreciação em sede de controle concentrado.
Soma-se às supramencionadas engrenagens processuais a previsão do art. 11 da lei nº 9.882/1999 e art. 27 da lei nº 9.868/1999, denominada de modulação temporal[28]. A modulação temporal permite que o tribunal manipule os efeitos da decisão de procedência nas ações diretas, “em razão de segurança jurídica ou de excepcional interesse público”. O instituto da modulação temporal representa uma flexibilização da teoria da nulidade absoluta da lei declarada inconstitucional, isto é, que a declaração de inconstitucionalidade teria necessariamente o efeito ex tunc, a lei seria nula ab origine.
A modulação temporal dos efeitos permite ao tribunal considerar válidos e manter atos inconstitucionais de acordo com a interpretação do que o tribunal considerar como “segurança jurídica” e “interesse social”. Inequivocamente, diante da abertura semântica destes conceitos indeterminados, pode-se afirmar que no plano real o legislador autorizou aos tribunais analisar os custos e benefícios advindos de suas decisões, uma espécie de consequencialismo judicial. O tribunal, cujo método de análise deve ser jurídico, poderá fazer um juízo político, econômico e social de “conveniência e oportunidade” da manutenção temporal da norma que compreendeu inconstitucional.
Nesse sentido, merece transcrição a lição de Manoel Gonçalves Ferreira Filho:
(…) A decisão pode “restringir os seus efeitos… Isto significa, por exemplo que ela poderá considerar válidos atos inconstitucionais, ou dispensar o Estado de devolver o que percebeu em razão do tributo inconstitucionalmente estabelecido e cobrado. (…)
O terceiro, insofismável, mostra que o controle de constitucionalidade assumiu um caráter político e que nele se pretende que o Supremo Tribunal Federal atue como órgão político. (…)
Disto tudo decorre, em suma, a conclusão de que o Supremo Tribunal Federal se torna (ou tende a se tornar) uma terceira Câmara do Poder Legislativo[29].
Atualmente, a jurisprudência do STF vem, a partir de uma aplicação analógica do art. 27 da lei 9.868/1999, admitindo, inclusive, a modulação temporal no controle difuso de constitucionalidade[30]. Em um claro diálogo de fontes entre os procedimentos de controle concentrado e difuso.
As súmulas vinculantes constituem outra demonstração dessa expansão do judiciário. Estes enunciados criados apenas pelo STF vinculam não só o Poder Judiciário, mas a Administração Pública da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios. Seu quorum de revisão ou cancelamento é de dois terços dos membros do STF[31], superior até mesmo ao quorum de maioria absoluta para declarar a inconstitucionalidade de uma norma jurídica emanada pelo Legislativo ou Executivo.
O efeito que se pode observar dessa ampliação do acesso e engrenagens processuais introduzidas pela Constituição de 1988 e leis regulamentadoras é o aumento significativo das oportunidades para que o tribunal possa exercer o poder. O Poder Judiciário em sua função precípua é guiado pelos postulados normativos da inércia e da adstrição como forma de controle ao seu poder de dar a palavra final. Assim, ao contrário dos demais poderes do estado, o Judiciário só pode atuar se e quando provocado, e na medida do que foi pedido. A conclusão é lógica: quanto maior for o leque de atores que podem provocar a jurisdição do tribunal e meios processuais para tanto, mais favoráveis serão as condições para que essa instituição exerça o poder de que dispõe. Assim, a expressiva ampliação do acesso ao STF por meio das ações diretas faz com que os vários atores sociais possam acessá-lo. Como vivemos em uma ordem plural e dialética, a insatisfação de um qualquer desses atores pode levá-lo a questionar a norma promulgada diretamente perante o STF, fazendo com que este tribunal possa dar analisar a constitucionalidade de uma forma amplíssima, em razão de uma Constituição deveras abrangente. O “se e quando provocado” converte-se em uma situação de “sempre provocado”, o que nos faz questionar a efetividade real do postulado da inércia e parece transformar o Supremo em uma Assembleia Constituinte Permanente.
II.3 Constitucionalização abrangente, redemocratização e judicialização
Ao lado das questões anteriormente pontuadas, outro ponto fundamental é a feição nitidamente analítica/abrangente da Constituição de 1988 combinada com uma tendência de judicialização. O ambiente democrático reavivou a cidadania, dando maior nível de informação e de consciência de direitos a amplos segmentos da população, que passaram a buscar a proteção de seus interesses perante o Judiciário.
A constitucionalização abrangente, termo utilizado por Luís Roberto Barroso[32], consiste no movimento que trouxe para a Constituição de 1988 inúmeras matérias que antes eram deixadas para o processo político majoritário e para a legislação ordinária. Trata-se de uma tendência iniciada com a redemocratização e as Constituições de Portugal (1976) e Espanha (1978), que foi potencializada entre nós com a Constituição de 1988.
A CF/88 contém um texto analítico e ambicioso, que elenca uma série de direitos fundamentais, remédios constitucionais para garantia desses direitos, organização e garantias institucionais dos Poderes e funcionais de seus membros, repartição de competências tributárias e suas receitas, organização dos entes federados, servidores públicos e suas garantias, limites de remuneração e acumulação, finanças públicas, ordem econômica e financeira, até normas de seguridade social, esportes, cultura, ciência e tecnologia, da família, da criança, do idoso e dos índios. [33].
Confira-se a lição do professor Luís Roberto Barroso:
A Carta de 1988, como já consignado, tem a virtude suprema de simbolizar a travessia democrática brasileira e de ter contribuído decisivamente para a consolidação do mais longo período de estabilidade política do país. Não é pouco. Mas não se trata da Constituição da nossa maturidade institucional. É a Constituição das nossas circunstâncias. Por vício e virtude, seu texto final expressa uma heterogênea mistura de interesses legítimos de trabalhadores, classes econômicas e categorias funcionais, cumulados com paternalismos, reservas de mercado e privilégios. A euforia constituinte – saudável e inevitável após tantos anos de exclusão da sociedade civil – levou a uma Carta que, mais do que analítica, é prolixa e corporativa[34].
A extensão do texto de 1988 é compreensível, em razão de o da travessia do período ditatorial para a democracia, é natural o desejo de colocar na norma fundamental do Estado o maior número de direitos e garantias possíveis, como forma de evitar um novo autoritarismo estatal. Todavia, tal movimento de constitucionalização abrange possui consequências diretas.
Constitucionalizar uma matéria significa retirá-la do campo da discricionariedade política para torná-la Direito. Na medida em que uma questão – seja um direito individual, uma prestação estatal ou um fim público – é disciplinada em uma norma constitucional, ela se transforma, potencialmente, em uma pretensão jurídica, que pode ser formulada sob a forma de ação judicial. Por exemplo: se a Constituição assegura o direito de acesso ao ensino fundamental ou ao meio-ambiente equilibrado, é possível judicializar a exigência desses dois direitos, levando ao Judiciário o debate sobre ações concretas ou políticas públicas praticadas nessas duas áreas.
Uma Constituição abrangente, então, retira parte da discricionariedade política do Legislativo e do Executivo, de forma negativa visto que a validade de leis e até mesmo de emendas constitucionais será aferida à luz da Constituição originária, limitando os caminhos políticos do legislador à visão constitucional, e de forma positiva, visto que a omissão inconstitucional do legislador e do administrador também poderá ser controlada pelo Judiciário. O resultado direto de constitucionalizar é retirar a escolha fundamental do campo da política e transferi-la para o campo do Direito posto, o que ocasiona uma expansão de poder dos órgãos jurídicos enquanto intérpretes e guardiões da Constituição e das leis.