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A necessidade de criação do estatuto de proteção integral da pessoa transplantada

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CAPÍTULO II

A NECESSIDADE DE PROTEÇÃO LEGAL DAS PESSOAS TRANSPLANTADAS

2 A CRIAÇÃO DO ESTATUTO DE PROTEÇÃO INTEGRAL DA PESSOA TRANSPLANTADA

O Brasil possui um dos maiores programas públicos de transplantes de órgãos e tecidos do mundo. Segundo o Ministério da Saúde (2014) mais de 90% dos procedimentos de transplantes no Brasil são financiados pelo Sistema Único de Saúde – SUS. Esse amplo incentivo público voltado ao transplante e os avanços da biociência nos últimos anos tem resultado no crescimento exponencial do número de pessoas transplantadas.

Todavia após o tão esperado procedimento médico de transplante a pessoa transplantada, além da luta constante contra a rejeição do órgão, enfrenta uma nova batalha, qual seja, a reinserção na sociedade, e principalmente, no mercado de trabalho. É nesse momento de retorno ao convívio social que a ausência da tutela de um rol mínimo de direitos da pessoa transplantada fica evidente pela inexistência de previsão constitucional expressa e de uma legislação infraconstitucional de proteção dos direitos desse segmento social.

A pessoa transplantada precisa fazer um grande esforço físico e mental para se adaptar as suas novas condições de vida, tanto biologicamente, psicologicamente e socialmente. De acordo com especialistas a pessoa transplantada precisa lidar com questões psicológicas intensas, a degradação física, o uso contínuo de medicamentos imunossupressores, as consultas médicas regulares, e principalmente com a incerteza da vida causada pela medo da rejeição do órgão. Todas essas situações enfrentadas após o transplante podem gerar dificuldades de reinserção social no seio da família e na sociedade, e ainda vir a causar a incapacidade laboral.

Nesse contexto, a criação do estatuto de proteção integral visa assegurar um rol mínimo normativo a essa pessoa transplantada. Para tanto, essa realidade precisa ser enfrentada de maneira sistêmica e integral, ou seja, deve-se tratar dos vários aspectos da vida da pessoa transplantada necessários a sua reinclusão social como a saúde, o transporte, a assistência social, a previdência e o trabalho, com vistas à garantia de uma vida digna.

Para criação desse estatuto de proteção partiu-se da analise da legislação pátria de tutela da pessoa com deficiência para se definir um rol mínimo de direitos extensíveis a pessoa transplantada e, em âmbito internacional, analisou-se a Lei n. 26.928 promulgada pelo parlamento Argentino, em janeiro de 2014, que instituiu o “sistema de protección integral para personas trasplantadas”.

A utilização dos direitos pátrios de proteção da pessoa com deficiência fundamenta-se na proximidade das características físicas, psíquicas e sociais desses dois grupos sociais, a exemplo da comparação entre a pessoa com deficiência em virtude de nefropatia grave e a pessoa transplantada de rim.

A pessoa com deficiência por nefropatia grave é acometida por doença grave com previsão na Lei n. 8.213/91, e por isso tem a seu favor toda a proteção normativa pátria voltada à pessoa com deficiência. Por outro lado, se essa pessoa com deficiência submete-se a um transplante de rim, será uma pessoa transplantada, e, por conseguinte, não encontrará no ordenamento jurídico pátrio a mesma previsão protetiva, mesmo que antes do transplante estivesse tutelada pelos direitos da pessoa com deficiência por nefropatia grave.

Com base nessa proximidade fática, busca-se demonstrar os acontecimentos históricos e as normas de inclusão social da pessoa com deficiência para evidenciar também a necessidade de proteção da pessoa transplantada, nova minoria social que surge após um transplante.

Historicamente as pessoas com deficiência sempre foram discriminadas pela sociedade, na antiguidade os gregos eliminavam as pessoas tidas como "defeituosas", e os romanos abandonavam a própria sorte suas crianças “deformadas”. Durante a Idade Média, apesar de serem consideradas “filhos de Deus”, muitas pessoas com deficiência foram eliminadas com o objetivo de "absolverem-se de seus pecados".

Essa realidade só começou a mudar após a Revolução Francesa no século XVIII. Nesse período a pessoa com deficiência passa ser vista como um ser humano, e não mais como "dispensáveis do convívio social". Mas é no século XX, após duas Grandes Guerras Mundiais e Guerra do Vietnã, que tiveram como resultado milhares de pessoas mutiladas, que essa mudança de paradigma no sentido de inclusão social da pessoa com deficiência se acentua ainda mais.

Surge nesse momento histórico a necessidade de reabilitação e reinclusão dessas pessoas com deficiência na sociedade. No Brasil essa visão pautada na dignidade da pessoa com deficiência chega ao ápice com a previsão expressa de direitos e garantias especiais na Constituição Federal de 1988.

É diante desse contexto de reabilitação e reinclusão social da pessoa com deficiência tão discriminada ao longo da história, mas que tem conquistado importantes avanços na normatização de seus direitos, como a recente conquista do Estatuto da Pessoa com Deficiência em 2015, que se pretende demonstrar a necessidade de criação de um estatuto de proteção integral voltado às pessoas transplantadas com vistas a garantir-lhes a dignidade da pessoa humana e os direitos humanos fundamentais.

2.1 O TRANSPLANTE DE ÓRGÃOS NO BRASIL

A "utilização da palavra 'transplante' pela ciência médica é secular, derivada do latim transplantare, que significa transferir órgão ou porção deste de uma para outra parte do mesmo indivíduo, ou ainda, de indivíduo vivo ou morto para outro indivíduo". (FERREIRA, 1993, p.1703 apud PEREIRA, 2006).

A Associação Brasileira de Transplantes de Órgãos define o transplante “como um procedimento cirúrgico que consiste na reposição de um órgão ou tecido de uma pessoa doente – receptor – por outro órgão normal de um doador, morto ou vivo. É um tratamento que pode prolongar a vida com melhor qualidade, ou seja, é uma forma de substituir um problema de saúde incontrolável por outro sobre o qual se tem controle”. (BANDEIRA, 2001, p. 28).

O primeiro, dos procedimentos de transplante de órgãos largamente utilizados no tratamento de falência terminal de órgãos, foi o transplante renal. As técnicas cirúrgicas básicas usadas no transplante renal foram desenvolvidas no princípio do século XX por Alexis Carrel ganhador do prêmio Nobel de 1912. Em 1951, ocorreu o primeiro transplante de um órgão vital não regenerativo, foi um transplante de rim efetuado pelo médico David M. Hume, no Hospital Brigham and Women, em Boston, nos Estados Unidos. (DA SILVA NETO, 2004).

No Brasil o primeiro transplante de órgão ocorreu em 1964, no Hospital dos Servidores do Estado do Rio de Janeiro, quando Sérgio Vieira Miranda, de 18 anos, recebeu um rim de uma criança de nove meses, portadora de hidrocefalia. Segundo o Jornal do Brasil de 18 de abril de 1964, participaram do transplante os cirurgiões Alberto Gentile, Pedro Abdalla, Carlos Rudge, Oscar Regua, Antônio Carlos Cavalcante e Ivonildo Torquato. (RIBEIRO e SCHRAMM, 2006).

Em 1967, o cirurgião Christian Barnard realizou no hospital sul-africano da Universidade de Cape Town o primeiro transplante cardíaco de humano para humano bem-sucedido. Dois anos depois, no dia 28 de maio de 1969, o Dr. Euriclides J. Zerbini realizou o primeiro transplante cardíaco no Brasil, no Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. O receptor sobreviveu por 28 dias após o transplante, vindo a óbito devido ao processo de rejeição. (LIMA; MAGALHAES; NAKAMAE, 1997).

Os avanços nos medicamentos imunossupressores, na preservação de órgãos, nas técnicas cirúrgicas e nas medidas de suporte ventilatório e hemodinâmico permitiram que os transplantes de órgãos se tornassem em uma terapêutica de escolha para pacientes com vários tipos de insuficiência orgânica. (MANFRO e FERNANDES, 2001).

A Associação Brasileira de Transplante de Órgãos (ABTO), sociedade médica sem fins lucrativos que mantém registro nacional com informações uniformes sobre doações e transplantes, divulga trimestralmente dados estatísticos da doação de órgãos e transplantes realizados no país. No encerramento do ano de 2014, o Registro Brasileiro de Transplantes (veículo oficial da ABTO) destaca dados importantes a cerca do transplante de órgãos, dentre eles destaca-se que o Brasil é o segundo país do mundo em número de transplantes.

Em 2014, o país atingiu a marca de 20.934 transplantes realizados, destes 13.036 foram de córnea, 5.639 de rim, 1.755 de fígado, 126 de pâncreas, 311 de coração e 67 de pulmão. A seguir se apresentam os números absolutos de transplantes de córnea, rim, fígado, pâncreas, coração e pulmão do ano de 2007 a 2014:

Quadro 1 - Número absoluto de transplantes

Número de transplantes

2007

2008

2009

2010

2011

2012

2013

2014

CÓRNEA

9.040

13.341

12.723

14.696

14.696

15.281

13.744

13.036

RIM

3.462

3.815

4.285

4.975

4.975

5.413

5.447

5.639

Doador vivo

1.713

1.740

1.742

1.650

1.650

1.499

1.382

1.384

Doador falecido

1.749

2.035

2.543

3.001

3.325

3.914

4.065

4.255

FÍGADO

1.008

1.177

1.334

1.413

1.496

1.598

1.723

1.755

PÂNCREAS

163

174

160

133

181

151

142

126

CORAÇÃO

161

201

201

166

160

228

271

311

PULMÃO

46

53

59

61

49

69

80

67

Fonte: Associação Brasileira de Transplante de Órgãos (ABTO)

Apesar dos esforços e dos importantes números de transplantes que colocam o país em destaque internacionalmente, segundo a ABTO, no final de 2014, cerca de 28.523 pessoas aguardavam na fila por um transplante, brasileiros que tem no transplante a última esperança de vida digna ou até mesmo de sobrevivência.

Em relação ao ano de 2014 a ABTO divulgou dados sobre o número de transplantes realizados e o número de pacientes ativos em lista de espera em dezembro de 2014:

Quadro 2 – Número de transplantes realizados e pacientes ativos em lista de espera

Informações relevantes

Córnea

Rim

Fígado

Pâncreas

Coração

Pulmão

Transplantes realizados

13.036

5.639

1.755

126

311

67

Pacientes ativos em lista de espera em dez/2014

8.602

18.147

1.304

19

247

204

Total de pacientes ativos em lista de espera em dez/2014

28.523

Fonte: Associação Brasileira de Transplante de Órgãos (ABTO)

Após esse breve relato dos dados numéricos da realidade de transplantes no Brasil, percebe-se a importância da edição de um estatuto protetivo que garanta direitos, aos moldes dos direitos da pessoa com deficiência, para essa parcela nova da sociedade brasileira, em pleno crescimento, e ainda carece de proteção após o tão esperado procedimento médico de transplante, que traz consigo a possibilidade de uma vida com dignidade, mas que para ser plena, necessita do amparo do Estado Brasileiro e do empenho de toda a sociedade.

2.1.1 O transplante e o Biodireito

No campo da medicina o progresso biotecnológico está em pleno desenvolvimento e possibilita a sociedade enfrentar os males que comprometem a saúde das pessoas. Da utilização dessas modernas biotecnologias têm surgido novas questões sociais e éticas que antes não existiam no seio da sociedade. A partir dessa nova realidade o estudo da Bioética ganha importância, uma vez que o Direito na maioria das vezes não consegue acompanhar, em tempo real, tantas mudanças.

A bioética nasceu da necessidade de um controle da utilização crescente e invasora de tecnologias cada vez mais numerosas e afinadas nas práticas biomédicas. (LEITE, 1998). Com tantas implicações na sociedade, por consequência do progresso tecnológico, também se acentua cada vez mais a imprescindível presença do Direito ao lado da Bioética na defesa das pessoas perante possíveis violações dos direitos fundamentais do homem.

Assim, no campo da medicina, o progresso biotecnológico surge com o intuito de ajudar a sociedade a enfrentar problemas que comprometem a saúde das pessoas, nesse sentido, muitos avanços médicos se destacam no benefício à saúde humana como as modernas técnicas de transplante, inseminação artificial, células tronco, dentre tantas outras.

A bioética é conceituada por Sauwen (1997, p. 103) como o estudo interdisciplinar, ligado à Ética, que investiga, nas áreas das ciências da vida e da saúde, a totalidade das condições necessárias a uma administração responsável da vida humana em geral e da pessoa humana em particular. Ela nasceu da necessidade de um controle da utilização crescente e invasora de tecnologias cada vez mais numerosas e afinadas nas práticas biomédicas. (LEITE, 1998).

No que tange aos transplantes inúmeros questionamentos tem afetado o ordenamento jurídico brasileiro, em especial o direito à vida, a possibilidade de burlar a fila de espera para doação, o uso de órgãos e tecidos de anencéfalos para transplante, o comércio ilegal de órgãos, a doação coercitiva de órgãos, o transplante de rins entre não parentes, entre outros.

Frente aos avanços da ciência, problemas éticos resultantes dos procedimentos experimentais de transplantes de órgãos trouxeram “grandes dilemas: experiências duvidosas, conceitos de morte revistos, o direito a cidadania, o respeito em relação ao desejo familiar da doação, a esperança de quem precisa urgentemente de um órgão, o aumento na fila de espera e o medo”. (DA SILVA NETO, 2004, p. 16).

Diante do exposto, o presente estudo pretende conscientizar da importância de se incluir nos atuais questionamentos da bioética a utilização da expressão “pessoa transplantada” como forma de garantia da dignidade de segmento social, e ainda a possibilidade da extensão dos direitos da pessoa com deficiência a pessoa transplantada por meio da criação de um estatuto de proteção integral da pessoa transplantada.

 

2.1.2 Ordenamento jurídico brasileiro e o transplante

No Brasil os transplantes são regulamentados por meio da Lei n. 9.434 de 1997, também chamada de Lei dos Transplantes, e alguns dispositivos do Código Civil e do Código Penal. Cabe ressaltar que após sua entrada em vigor a Lei dos Transplantes sofreu importantes alterações trazidas pelas Leis 10.211/2001 e 11.521/2007.

No seu artigo 1º a Lei de Transplantes define que a disposição gratuita de tecidos, órgãos e partes do corpo humano, excetuados o sangue, o esperma e o óvulo é permitida no Brasil no seguinte teor:

Art. 1º A disposição gratuita de tecidos, órgãos e partes do corpo humano, em vida ou post mortem, para fins de transplante e tratamento, é permitida na forma desta Lei.

Parágrafo único. Para os efeitos desta Lei, não estão compreendidos entre os tecidos a que se refere este artigo o sangue, o esperma e o óvulo.

O artigo 4º da referida Lei com alteração dada pela Lei n. 10.211/2001 dispõe que a retirada de tecidos, órgãos e partes do corpo de pessoas falecidas para transplantes ou outra finalidade terapêutica dependerá de autorização dos familiares:

Art. 4o A retirada de tecidos, órgãos e partes do corpo de pessoas falecidas para transplantes ou outra finalidade terapêutica, dependerá da autorização do cônjuge ou parente, maior de idade, obedecida a linha sucessória, reta ou colateral, até o segundo grau inclusive, firmada em documento subscrito por duas testemunhas presentes à verificação da morte. (Redação dada pela Lei n. 10.211, de 23.3.2001)

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Esse mesmo dispositivo em seu texto original dizia que se presumia a autorização a doação de tecidos, órgãos ou partes do corpo, salvo manifestação em contrário, nos seguintes termos: “Art. 4º Salvo manifestação de vontade em contrário, nos termos desta Lei, presume-se autorizada a doação de tecidos, órgãos ou partes do corpo humano, para finalidade de transplantes ou terapêutica post mortem”.

Para a doutrina a determinação de doação presumida de tal dispositivo, do ponto de vista jurídico, correspondia uma violação do regime democrático, dentro do qual a regra é a pessoa dizer o que deseja. Do ponto de vista ético, a doação presumida afrontava o princípio da autonomia da vontade e da dignidade da pessoa humana à medida que retirava a autonomia de decidir sobre a disposição do próprio corpo a qualquer tempo por abuso do poder do Estado. (NEVES, 1997 apud KLIEMANN E CATIARI, 2006).

Depois de muitas críticas a tal dispositivo, em março de 2001, foi editada a Lei n. 10.211/2001, modificando a Lei de Transplantes no seu artigo 4º e assim extinguindo a presunção de doação de órgãos. Contudo para alguns juristas a substituição pela decisão da família ainda representa uma afronta jurídica, haja vista que ainda é permitida a remoção, post mortem, de tecidos ou órgãos sem a necessária autorização expressa do indivíduo em vida, violando os princípios da dignidade da pessoa humana e da autonomia da vontade.

Nesse diapasão o Novo Código Civil aprovado pela Lei n. 10.406 de 10 de janeiro de 2002 trouxe a possibilidade de disposição gratuita do próprio corpo, no todo ou em parte para depois da morte nos ditames do seu artigo 14:

Art. 14. É válida, com objetivo científico, ou altruístico, a disposição gratuita do próprio corpo, no todo ou em parte, para depois da morte.

Parágrafo único. O ato de disposição pode ser livremente revogado a qualquer tempo.

 

Desse modo o artigo 14 do Código Civil supracitado dá a possibilidade de decisão ao indivíduo de dispor do "próprio corpo" num transplante post mortem. Note-se que este dispositivo se adapta perfeitamente aos princípios da Bioética, da dignidade da pessoa humana e da autonomia da vontade, principalmente porque autoriza não só a declaração de disposição de corpo para após a morte, como também a revogação de tal manifestação da vontade a qualquer tempo. (KLIEMANN E CATIARI, 2006).

Cabe esclarecer que o Código Civil regulou apenas os atos declaratórios de vontade de dispor do próprio corpo post mortem, deixando margem à aplicação da Lei dos Transplantes nos casos em que não houve o ato de disposição, cabendo então a decisão a família do de cujus.

Diante do exposto pode-se concluir que o ordenamento jurídico pátrio estabelece importantes dispositivos legais que permitem a realização do transplante, contudo nem o Código Civil, tampouco a Lei dos Transplantes trataram de direitos da pessoa transplantada após o procedimento médico.

2.1.3 O impacto do transplante sobre o trabalho e a renda das famílias

A partir desse ponto, apresentam-se dois estudos científicos na área médica e depoimentos que apontam o impacto do transplante sobre a renda das famílias e a capacidade laborativa da pessoa transplantada.

Em 2005, foi realizado um estudo no Hospital de Base do Distrito Federal com o objetivo de avaliar se o transplante renal, efetivamente, torna possível a recuperação da capacidade laborativa da pessoa transplantada de rim. (LOBO e BELLO, 2006).

Dentre os resultados obtidos na pesquisa destacam-se os seguintes dados:

79 homens (62,9%) e 46 mulheres (37,1%), com média de 40 anos de idade e cinco anos de transplante. Destes, 02 tinham doença incapacitante permanente na época do transplante (1,6%) e 11 após um ano de transplante (8,8%). Quanto ao aspecto de capacitação para o trabalho após um ano de transplante, encontravam-se 113 pacientes aptos (91%), dos quais 41 necessitavam de reabilitação profissional (33%).

Em relação a situação laboral na época do transplante, 28 (22,5%) pacientes eram ativos e 96 (77,4%) inativos. Um ano após o transplante renal, notou-se um acréscimo de pacientes em atividade laborativa, ou seja, 38 (30,6%) estavam ativos e 86 (69,5%) inativos. Contudo, a diferença foi considera não significativa. (LOBO e BELLO, 2006).

 

Nesse estudo os pesquisadores evidenciaram um maior retorno ao mercado de trabalho no grupo dos pacientes com maior escolaridade (ensinos médio e superior). Destaca-se que as pessoas transplantadas analfabetas e com ensino fundamental representaram juntas 53,9% dos inativos após o transplante conforme tabela a seguir:

Quadro 3: Situação do trabalho relacionado à escolaridade.

Escolaridade

Pré-Transplante

Pós-Transplante

Ativos

Inativos

Ativos

Inativos

Analfabeto

0 (0,0%)

7 (5,6%)

0 (0,0%)

7 (5,6%)

Fundamental

20 (16,1%)

62 (50,0%)

22 (17,7%)

60 (48,3%)

Médio

7 (5,6%)

23 (18,5%)

13 (10,4%)

17 (13,7%)

Superior

1 (0,08%)

4 (3,2%)

3 (2,4%)

2 (1,6%)

Subtotal

28 (22,6%)

96 (77,4%)

38 (30,6%)

86 (69,4%)

Total

124 (100%)

124 (100%)

Fonte: LOBO e BELLO, 2006

Em suas conclusões, os pesquisadores destacaram que apesar de 91% dos pacientes estarem aptos ao trabalho após o transplante, o retorno ao mercado de trabalho de 8,1% não foi significativo estatisticamente, e demonstrou grande deficiência dos programas sociais de reabilitação para o trabalho e inclusão social conforme as conclusões a seguir:

91% dos pacientes foram considerados capazes, do ponto de vista de saúde para o trabalho. Destes, 67% poderiam retornar à profissão que exerciam antes do transplante renal e 33% necessitavam de reabilitação profissional. Se levarmos em consideração que 91% dos pacientes encontravam-se capazes de exercer uma atividade laborativa, podemos inferir destes resultados que existe grande deficiência dos programas de reabilitação para o trabalho e inclusão social. (LOBO e BELLO, 2006).

 

Depois do transplante de órgão, muitos sentimentos afetam a pessoa transplantada como depressão, medo da rejeição e ansiedade, os quais com frequência reduzem a capacidade para o trabalho e o convívio social. Nesse contexto é fundamental a reflexão a cerca da importância do trabalho na vida de um ser humano já que “o trabalho pode dar um sentido mais produtivo à vida, bem como um ganho financeiro, na maioria dos casos, refletindo numa melhor qualidade de vida”. (PARIS, 1997 apud LOBO e BELLO, 2006).

Nessa perspectiva, Lobo e Bello (2006) observam que deveriam ser desenvolvidos programas sociais com a finalidade de recolocar os pacientes pós-transplante no mercado de trabalho, evitando a manutenção de gastos previdenciários com indivíduos que reverteram a incapacidade laborativa.

Outra pesquisa realizada pela Associação Brasileira de Hematologia e Hemoterapia no Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, em 2010, aborda a relação entre renda, trabalho e qualidade de vida de pacientes submetidos ao transplante de medula óssea. (MAESTROPIETRO, 2010).

Dados dessa pesquisa revelaram que em relação à situação produtiva a maioria dos pacientes no pré-transplante estavam inseridos no mercado de trabalho, e que após o transplante, a maioria se encontrava afastada de suas ocupações anteriores. Evidenciou-se, ainda, que as condições de pobreza dos pacientes depreciam a qualidade de vida, o sentimento de ser competente em sua vida pessoal e o ajustamento psicológico, o que pode elevar ainda mais os riscos inerentes ao transplante. (MAESTROPIETRO, 2010).

Portanto, a pobreza constitui-se risco potencial para os agravos que podem suceder ao transplante, na medida em que intensificam as dificuldades de seguir orientações rigorosas em termos de higiene, alimentação, moradia e transporte. (MAESTROPIETRO, 2010).

Diante do exposto, pode-se evidenciar a importância do trabalho na qualidade de vida da pessoa transplantada já que a atividade laboral tem um papel determinante no equilíbrio psicológico do ser humano, uma vez que tem implicações diretas nas condições fisiológicas, psíquicas, mentais e sociais do indivíduo. O trabalho traz satisfação pessoal, significa saúde, disposição, diversão, e significa, portanto, vida digna. (CARREIRA e MARCON, 2003).

Em 2001, o nefrologista José Medina Pestana, presidente da ABTO, em entrevista a Revista Isto É, lamentou que apesar do quadro positivo do número de transplantes no Brasil, após o transplante, pode começar uma nova batalha para o transplantado. Para ele “não se trata do problema de driblar a rejeição, mas a dificuldade de se recolocar no mercado de trabalho. Geralmente, se há dois candidatos a uma vaga e um é transplantado, a empresa opta pelo não transplantado”. (ZACHÉ, 2001).

Muitas vezes, a própria rotina de consultas frequentes, as medicações em horários certos e o mal estar após ingestão dos medicamentos podem comprometer a empregabilidade da pessoa transplantada. O médico nefrologista Reginaldo Carlos Boni, da Santa Casa de São Paulo, esclarece que “para garantir o sucesso do transplante, o transplantado deverá seguir à risca as recomendações do médico, tomando corretamente suas medicações, respeitando doses e horários, e realizando os exames que forem solicitados a cada consulta”. E acrescenta “é importante que o receptor compareça a todas as consultas de retorno agendadas, que logo após o transplante serão frequentes”. (COIMBRA, 2011).

Nesse contexto, o Deputado Estadual de São Paulo, Fernando Capez, é autor do Projeto de Lei n. 811/2009 que visa incluir os transplantados na Lei n. 12.907/2008 que consolida a legislação relativa à pessoa portadora de deficiência. Para Capez "os transplantados, muitas vezes, sofrem as mesmas limitações dos portadores de deficiência, merecendo o mesmo amparo do ordenamento jurídico". (CAPEZ, 2009).

O Deputado Estadual acrescenta que “a inserção do transplantado no mercado de trabalho e no engajamento social tem um alto custo pessoal, uma vez que o mesmo deve fazer tratamento constante com medicamentos imunossupressores para evitar a rejeição de órgão”. O uso desses medicamentos "limita o cumprimento das atividades rotineiras em razão de vários efeitos colaterais, como anemia, náuseas, vômitos, diarreia, dor abdominal, febre, calafrios, diminuição de apetite, retinopatia, falta de ar e pressão baixa, entre outros". (CAPEZ, 2009).

Capez (2009) conclui que "muitas vezes o transplantado é vítima de preconceito, que só pode ser combatido com ações que criem oportunidades para sua participação ativa na sociedade”. Portanto, é nesse contexto de necessidade de reinserção social e garantia da dignidade da pessoa humana que se pretende conscientizar da importância de criação do Estatuto de Proteção Integral da Pessoa Transplantada.

 

2.2 OS DIREITOS DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA COMO PARADIGMA PARA CONSTRUÇÃO DO ESTATUTO DE PROTEÇÃO INTEGRAL DA PESSOA TRANSPLANTADA

Diante da atual lacuna jurídica existente no ordenamento pátrio pela ausência de uma legislação que tutele os direitos da pessoa transplantada, pretende-se apresentar uma série de direitos da pessoa com deficiência que devem ser utilizados com o objetivo se suprir esse vazio uma vez que a dignidade da pessoa humana da pessoa transplantada está ameaçada.

A solução legal para garantir uma vida digna à pessoa transplantada fundamenta-se primeiramente na dignidade da pessoa humana, pilastra mestre que sustenta os direitos fundamentais previstos na Constituição. Pelo princípio da dignidade da pessoa humana todo ser humano, pelo simples fato de existir, merece toda proteção, sem qualquer forma de discriminação em razão de sua condição física e saúde, e, por conseguinte toda interpretação da Constituição Federal e da Legislação Infraconstitucional deve fundamentar-se nesse princípio constitucional.

A inexistência de um dispositivo constitucional específico ou de uma legislação infraconstitucional para tutela de pessoa transplantada não pode ser interpretada no sentido de ausência de direitos, mas como uma omissão legislativa do Estado Brasileiro. Portanto, em que pese a inexistência de previsão legal que ampare os direitos da pessoa transplantada é perfeitamente possível a utilização da hermenêutica jurídica com a fim de interpretar a Constituição Federal a partir da garantia da dignidade da pessoa humana.

Nesse contexto, cabe enaltecer os dispositivos constitucionais de proteção da pessoa com deficiência que foram conquistados, ao longo da história, após muitas lutas e sofrimentos, até serem positivados na Constituição Federal, e ainda a recente aprovação do Estatuto da Pessoa com Deficiência em 2015, por meio da Lei n. 13.146/15.

Diante disso, é possível afirmar que os dispositivos constitucionais e o Estatuto da Pessoa com Deficiência devem ser estendidos à pessoa transplantada pela interpretação do âmago de proteção da Constituição Federal de 1988, que visa à inclusão e a de vedação de qualquer forma de discriminação da pessoa com deficiência.

Frente à importância das garantias constitucionais da pessoa com deficiência, a partir desse ponto apresenta-se um resumo histórico da pessoa com deficiência, a construção da conceituação dessa parcela da sociedade, e por fim o bloco de dispositivos constitucionais previstos na Carta Magna de 1988 de inclusão social e tutela da pessoa com deficiência, os quais poderão servir de possível extensão a pessoa transplantada.

2.2.1 Histórico da Pessoa com Deficiência e sua Conceituação

Segundo a autora Maria Aparecida Gugel ao longo da história foram utilizados "termos como aleijado, inválido, incapacitado, defeituoso, desvalido (Constituição de 1934), excepcional (Constituição de 1937), e pessoa deficiente (Emenda Constitucional 12/1978) para designar a pessoa com deficiência". Esses termos continham em sua essência o preconceito de que se tratavam de pessoas sem qualquer valor, socialmente inúteis e dispensáveis do cotidiano social. (GUGEL, 2006, p. 25).

Historicamente as informações sobre as pessoas com deficiência estão contidas de forma esparsa na "literatura grega e romana, na Bíblia, no Talmud e no Corão". Nesse sentido documentos da época destacam que as pessoas com deficiência "em Esparta eram eliminados e os romanos abandavam a própria sorte suas crianças deformadas". (GUGEL, 2006, p. 25).

Durante o Cristianismo, embora se considerasse a pessoa com deficiência “filhos de Deus”, o tratamento concebido caminhava da prestação de caridade ao extermínio para expurgar-lhes dos pecados. Somente após a Revolução Francesa que essa ótica sofre profundas mudanças e passa-se a encarar a deficiência do ponto de vista alquímico, portanto tratável. (GUGEL, 2006, p. 26).

Nesse período com os avanços no conhecimento filosófico e médico surgem as primeiras iniciativas de ensino de comunicação para pessoas surdas, cria-se o código Braille para pessoas cegas, e inventos de ajuda como cadeira de rodas, bengala, próteses, entre outros. (GUGEL, 2006, p. 26).

Porém, é no século XX, após duas Grandes Guerras Mundiais e a Guerra do Vietnã, tragédias humanas que deixaram milhares de mutilados, que surge a necessidade de evolução na reabilitação dessas pessoas mutiladas e sua integração social. Em 1970, a Organização das Nações Unidas proclama a Declaração dos Deficientes Mentais, documento fundamental no processo de inclusão da pessoa com deficiência mental.

Em 1975, a Assembleia Geral das Nações Unidas proclamou a Declaração dos Direitos das Pessoas Portadoras de Deficiências, para atuar como referência no apoio e proteção de direitos, introduzindo o termo “pessoa portadora de deficiência”. (GUGEL, 2006, p. 27).

A partir desse momento várias ações internacionais surgiram como a Classificação Internacional de Impedimentos, Deficiências e Incapacidades, em 1980, da Organização Mundial de Saúde (OMC) e a Convenção nº 159 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), em 1983, que trata sobre Reabilitação Profissional e Emprego de Pessoas Deficientes, entre outras.

Com relação às divergências terminológicas sobre a conceituação dada para esse grupo social das pessoas com deficiência, percorrer-se-á os termos adotados no decorrer da história. Na Convenção da OIT nº 159, ratificada pelo Brasil por meio do Decreto Legislativo nº 51/1989, a pessoa com deficiência era conceituada, no artigo 1º como “pessoa deficiente” nos seguintes termos: “todas as pessoas cujas possibilidades de obter e conservar um emprego adequado e de progredir no mesmo fiquem substancialmente reduzidas devido a uma deficiência de caráter físico ou mental devidamente comprovada”.

Para Fonseca (2006, p. 267) esse conceito em questão ressalta o caráter funcional das deficiências físicas ou sensoriais, estabelecendo o dever dos países signatários de se engajarem em atividades de integração e viabilizem o exercício das atividades profissionais.

Nesse contexto, em 1999, foi editado o Decreto nº 3.298/99, que regulamenta a Lei Federal n. 7.853/89 a qual dispõe sobre a Política Nacional para a Integração da Pessoa Portadora de Deficiência. Em seu artigo 3º, inciso I, o referido define “deficiência” como "toda perda ou anormalidade de uma estrutura ou função psicológica, fisiológica ou anatômica que gere incapacidade para o desempenho de atividade". Ainda, de acordo com o artigo 4º do Decreto nº 3.298/99, alterado pelo artigo 70 do Decreto nº 5.296/04 foram estabelecidas cinco categorias de deficiência: física, auditiva, visual, mental e múltipla.

Para Maria Aparecida Gugel a concepção trazida pelo Decreto nº 3.298/99 "ainda que considerada um avanço, não reflete o reconhecimento de que a pessoa com deficiência é sujeito de direitos e, portanto, deve gozar das mesmas e todas as oportunidades". (GUGEL, 2006).

Em 2001, Convenção Interamericana para a Eliminação de todas as formas de discriminação contra a Pessoa Portadora de Deficiência, “Convenção da Guatemala”, ratificada pelo Decreto Legislativo nº 3.956/01, define no seu artigo I a “deficiência” como "uma restrição física, mental ou sensorial, de natureza permanente ou transitória, que limita a capacidade de exercer uma ou mais atividades essenciais da vida diária, causada ou agravada pelo ambiente econômico e social".

Segundo Gugel (2006, p. 31) esse conceito “reforça a ideia de que a deficiência física, mental ou sensorial decorre das restrições geradas pelas limitações ou restrições que poderão, ou não, serem agravadas pelo ambiente externo”. E acrescenta "se o ambiente externo (a arquitetura urbana, etc) for favorável, estiver adaptado e pronto para receber, integrando eventuais limitações serão superadas".

Por conseguinte não pode o interprete da norma em vigor associar deficiência com incapacidade, especialmente para o trabalho e para a vida independente. Essa nova definição "não se refere a pessoas como incapazes, mas, a todas as pessoas", assim a "atual definição valoriza a condição da pessoa com deficiência elevando-a a sujeito de direitos, e determina que se elimine toda e qualquer forma de discriminação e que se promova a vida independente, a autossuficiência e a sua total integração, em efetiva condição de igualdade". (GUGEL, 2006, p. 32).

Em 2006 a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência da Organização das Nações Unidas teve o objetivo de promover, defender e garantir condições de vida com dignidade e a emancipação das pessoas que têm alguma deficiência. Em 2007 o Brasil assinou-a sem reservas, bem como o seu protocolo facultativo, comprometendo-se com os cinquenta artigos que tratam dos direitos civis, políticos, econômicos, sociais e culturais dos brasileiros com deficiência. Seu texto foi integrado no ordenamento pátrio, como emenda, à Carta Constitucional brasileira, em julho de 2008.

Por fim, cabe esclarecer que apesar de a legislação brasileira, inclusive a Constituição Federal, se referir à "pessoa portadora de deficiência", essa denominação não é mais usada internacionalmente. Desde 2006, o termo passou a ser “Pessoa com Deficiência” conforme o texto da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, aprovada pela Assembléia Geral da ONU, e posteriormente pelo Congresso Nacional por meio do Decreto Legislativo nº 186, de 2008, e ratificado em 1º de agosto de 2008, e que reflete uma tendência mundial.

 

2.2.2 Os Direitos Constitucionais da Pessoa com Deficiência

A Constituição Federal de 1988 tutelou os direitos das pessoas com deficiência em diversos dispositivos expressamente, sem excluí-los dos demais dispositivos constitucionais. Desse modo receberam especial atenção na Carta Magna, e são, por conseguinte, destinatárias de todos os direitos fundamentais inerentes ao ser humano, e por isso devem ter sua dignidade da pessoa humana assegurada pelo Estado Brasileiro.

Há que se ressaltar que a inserção de todos os dispositivos constitucionais de inclusão social da pessoa com deficiência foram conquistados ao longo da história após muita luta e sofrimento, até serem positivados na Carta Magna, com a finalidade sublime de incluir "todas" as pessoas com deficiência na sociedade sem qualquer forma de discriminação.

Diante dessas conquistas é possível afirmar que esses dispositivos devem ser interpretados no seu âmago de inclusão e de vedação de qualquer forma de discriminação a pessoa com deficiência, e por consequência extensíveis a todas as pessoas transplantadas. Assim, ainda que inexista previsão constitucional expressa que ampare os direitos da pessoa transplantada, é possível a interpretação da Constituição Federal buscando seu "espírito" de proteção do substrato mais básico que do ser humano que é a dignidade da pessoa humana.

Após esse breve relato histórico e conceituação da pessoa com deficiência, apresenta-se a seguir o bloco de dispositivos constitucionais que tem por objetivo a tutela dessa minoria social, e que devem ter sua extensão garantida à pessoa transplantada para a criação do seu estatuto de proteção.

 

2.2.1.1 Direito à Igualdade

A Constituição Federal no artigo 5º assegura que "todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza", consagrando o princípio de igualdade. Cabe ressaltar que para a pessoa com deficiência seja efetivamente igualada em direitos, é fundamental a analise desse princípio sob a ótica da igualdade material, a qual não se confunde com a igualdade formal.

A igualdade formal pode ser considerada a positivação do artigo 5º que estabelece que "todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza". Contudo, é importante salientar que essa igualdade Ipsis litteris, merece atenção, posto que pode não garantir a todos as mesmas oportunidades, as mesmas condições de vida e de participação social.

Assim sendo, ganha importância a igualdade material que visa dirimir as desigualdades sociais, tratando desigualmente os desiguais na medida da sua desigualdade, a fim de oferecer proteção jurídica a grupos sociais que costumam, ao longo da história, figurar em situação de desvantagem, a exemplo das pessoas com deficiência e recentemente as pessoas transplantadas. (FONSECA, 2006).

Diante do exposto há que se interpretar esse dispositivo constitucional no sentido hermenêutico de dirimir as desigualdades sociais e garantir uma vida digna a pessoa transplantada, aos moldes das políticas públicas voltadas a pessoa com deficiência.

 

2.2.1.2 Direito à Saúde

No Brasil, a Constituição Federal de 1988 sob forte influência das declarações internacionais de direitos humanos apresenta no seu texto diversos dispositivos que tratam expressamente da saúde, tendo sido reservada, ainda, uma seção específica do artigo 196 a 200 sobre o tema, dentro do capítulo destinado à Seguridade Social.

No seu artigo 6º informa que o direito à saúde trata-se de um direito social. No artigo 7º há dois incisos tratando da saúde, o inciso IV que determina que o salário-mínimo deverá ser capaz de atender as necessidades vitais básica do trabalhador e sua família, inclusive a saúde, entre outras, e o inciso XXII, que impõe a redução dos riscos inerentes ao trabalho, por meio de normas de saúde, higiene e segurança.

No seu artigo 196 a Magna Carta consagrou a saúde como um direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.

Já seu artigo 197 reconhece que as ações e serviços de saúde são de relevância pública, cabendo ao Poder Público dispor, nos termos da lei, sobre sua regulamentação, fiscalização e controle, devendo sua execução ser feita diretamente ou por intermédio de terceiros e, também, por pessoa física ou jurídica de direito privado.

Por fim, o artigo 198 formulou a estrutura geral do Sistema Único de Saúde (SUS), considerando-o como uma rede regionalizada e hierarquizada, organizada de acordo com as seguintes diretrizes: a) descentralização, com direção única em cada esfera de governo; b) atendimento integral, com prioridade para as atividades preventivas, sem prejuízo dos serviços assistenciais; c) participação da comunidade.

Nesse contexto o artigo 18 do Estatuto da Pessoal com Deficiência assegurada a atenção integral à saúde da pessoa com deficiência em todos os níveis de complexidade, por intermédio do SUS, garantido acesso universal e igualitário. Assim sendo é possível verificar dos dispositivos constitucionais acima expostos que a Magna Carta tem na sua essência a atenção integral a saúde do ser humano em todos os níveis de complexidade por meio do SUS o que garante a pessoa transplantada o mesmo tratamento igualitário.

 

2.2.1.3 Direito ao Transporte e à Mobilidade

A Constituição Federal de 1988, no artigo 227, parágrafo 2º prevê que "a lei disporá sobre normas de construção dos logradouros e dos edifícios de uso público e de fabricação de veículos de transporte coletivo, a fim de garantir acesso adequado às pessoas portadoras de deficiência".

Com fundamento em dispositivos constitucionais de proteção da pessoa com deficiência foram editadas as Leis n. 10.048/00 e 10.098/00. A Lei Federal n. 10.048/00 determina em seu artigo 3º que as empresas públicas de transporte e as concessionárias de transporte coletivo reservarão assentos, devidamente identificados às pessoas portadoras de deficiência.

Com relação passe livre a Lei Federal n. 8.899/94, regulamentada pelo Decreto 3.691/00, concede o passe livre interestadual no sistema de transporte coletivo interestadual as pessoas portadoras de deficiência comprovadamente carentes. Existem, ainda, por força da competência concorrente, nos termos do artigo 24, inciso XII da Constituição Federal, as legislações Estaduais e do Distrito Federal e por força do artigo 30, inciso VII dos Municipais que garantem a acessibilidade da pessoa com deficiência nos transportes intermunicipais e transportes coletivos municipais.

Por conseguinte, a partir de uma interpretação constitucional é plenamente possível a extensão do direito ao passe livre nos sistemas de transportes coletivos interestaduais, intermunicipais e municipais à pessoa transplantada com vista a suprir a necessidade de ter assegurado seu pleno tratamento médico após o transplante, visto que serão necessários exames e consultas rotineiras para evitar a rejeição do órgão.

 

2.2.1.4 Direito ao Trabalho

O direito do trabalho "constitui-se como direito social, devendo o Estado mobilizar-se para realizar políticas públicas de pleno emprego", posto que “é a partir do trabalho que o ser humano conquista sua independência econômica e pessoal, reafirma sua capacidade produtiva, exercita sua autoestima e se insere na vida em sociedade". Portanto "falar-se em direito do trabalho é assegurar a efetiva realização de todos os outros direitos que espelham a dignidade da pessoa". (FONSECA, 2006, p. 249).

A Constituição Federal no artigo 6º inclui entre os direitos sociais fundamentais, o direito ao trabalho, e prevê no artigo 7º, inciso XXXI, a "proibição de qualquer discriminação no tocante a salário e critérios de admissão do trabalhador portador de deficiência".

No seu artigo 227, § 1º, inciso II, a Carta Magna assegura que o Estado promoverá programas de assistência integral, com a "criação de programas de prevenção e atendimento especializado para as pessoas portadoras de deficiência física, sensorial ou mental, bem como de integração social do adolescente e do jovem portador de deficiência, mediante o treinamento para o trabalho e a convivência".

No setor público, com fundamento no seu artigo 37, inciso VIII, a Constituição Federal assegura que nos concursos públicos haverá a reserva de cargos e empregos públicos para pessoas com deficiência. Nesse viés, a Lei Federal n. 8.112/90, que dispõe sobre o regime jurídico único dos servidores públicos civis da União estabelece no seu artigo 5º, §2º que "é assegurado o direito de se inscrever em concurso público para provimento de cargo cujas atribuições sejam compatíveis com a deficiência de que são portadoras, e para tais pessoas reservadas até 20% das vagas oferecidas no concurso".

Já no setor privado, as empresas privadas deverão assegurar reserva de cargos destinados à pessoa com deficiência. Segundo a Lei Federal n. 8.213/91 no seu artigo 93 qualquer empresa com 100 (cem) ou mais empregados está obrigada a preencher de 2% a 5% dos seus cargos com beneficiários reabilitados ou pessoas portadoras de deficiência, habilitadas nos seguintes ditames:

Art. 93. A empresa com 100 (cem) ou mais empregados está obrigada a preencher de 2% (dois por cento) a 5% (cinco por cento) dos seus cargos com beneficiários reabilitados ou pessoas portadoras de deficiência, habilitadas, na seguinte proporção:

I - até 200 empregados..............................................................................2%;

II - de 201 a 500........................................................................................ 3%;

III - de 501 a 1.000.....................................................................................4%; IV - de 1.001 em diante. ............................................................................5%.

§ 1º A dispensa de trabalhador reabilitado ou de deficiente habilitado ao final de contrato por prazo determinado de mais de 90 (noventa) dias, e a imotivada, no contrato por prazo indeterminado, só poderá ocorrer após a contratação de substituto de condição semelhante.

[...]

 

Nesse contexto cabe ressaltar que o Estatuto da Pessoa com Deficiência dispõe no seu artigo 34 que pessoa com deficiência tem direito ao trabalho de sua livre escolha e aceitação, em ambiente acessível e inclusivo, em igualdade de oportunidades com as demais pessoas. Desse modo a pessoa com deficiência tem direito, em igualdade de oportunidades com as demais pessoas, a condições justas e favoráveis de trabalho, incluindo igual remuneração por trabalho de igual valor, sendo vedada restrição ao trabalho da pessoa com deficiência e qualquer discriminação em razão de sua condição, inclusive nas etapas de recrutamento, seleção, contratação, admissão, exames admissional e periódico, permanência no emprego, ascensão profissional e reabilitação profissional, bem como exigência de aptidão plena.

Por fim no seu artigo 35 o Estatuto determina que seja finalidade primordial das políticas públicas de trabalho e emprego promover e garantir condições de acesso e de permanência da pessoa com deficiência no campo de trabalho, inclusive por meio de programas de estímulo ao empreendedorismo e ao trabalho autônomo, que devem prever a participação da pessoa com deficiência e a disponibilização de linhas de crédito.

Diante do exposto, pode-se concluir que a extensão desses direitos visa garantir a inclusão da pessoa transplantada no mercado de trabalho, ao mesmo tempo em que veda qualquer forma de discriminação. Pode-se afirmar que o acesso ao mercado de trabalho visa assegurar a efetiva realização de todos demais direitos que garantem sua dignidade de pessoa humana, uma vez que após a realização do transplante é necessário que a pessoa transplantada tenha condições físicas e psíquicas para evitar a rejeição por meio trabalho que tem esse papel fundamental.

 

2.2.1.5 Direito à Habilitação e à Reabilitação

A Constituição Federal, no artigo 203, inciso IV dispõe que a assistência social será prestada a quem dela necessitar, independentemente de contribuição à seguridade social, dentre seus objetivos "a habilitação e reabilitação das pessoas portadoras de deficiência e a promoção de sua integração à vida comunitária".

Nesse contexto o Estatuto da Pessoa com Deficiência dispõe no seu artigo 14 que o processo de habilitação e de reabilitação é um direito da pessoa com deficiência. Sendo que o processo de habilitação e de reabilitação tem por objetivo o desenvolvimento de potencialidades, talentos, habilidades e aptidões físicas, cognitivas, sensoriais, psicossociais, atitudinais, profissionais e artísticas que contribuam para a conquista da autonomia da pessoa com deficiência e de sua participação social em igualdade de condições e oportunidades com as demais pessoas.

Já no seu artigo 35 o Estatuto trata da Habilitação Profissional e Reabilitação Profissional, dispondo que o poder público deve implementar serviços e programas completos de habilitação profissional e de reabilitação profissional para que a pessoa com deficiência possa ingressar, continuar ou retornar ao campo do trabalho, respeitados sua livre escolha, sua vocação e seu interesse.

Conforme esse dispositivo a habilitação profissional corresponde ao processo destinado a propiciar à pessoa com deficiência aquisição de conhecimentos, habilidades e aptidões para exercício de profissão ou de ocupação, permitindo nível suficiente de desenvolvimento profissional para ingresso no campo de trabalho. Sendo que a habilitação profissional e a reabilitação profissional devem ocorrer articuladas com as redes públicas e privadas, especialmente de saúde, de ensino e de assistência social, em todos os níveis e modalidades, em entidades de formação profissional ou diretamente com o empregador.

Portanto, conforme já exposto anteriormente a direito ao trabalho possibilita a dignificação do ser humano perante a sociedade, assim a possibilidade da pessoa transplantada ter assegurado pelo Estado o seu processo de habilitação ou reabilitação para o trabalho possibilita-lhe adquirir o nível de desenvolvimento profissional suficiente para o ingresso e reingresso no mercado de trabalho, a reintegração na sociedade e a garantia da dignidade da pessoa humana.

 

2.2.1.6 Direito à Aposentadoria

A Carta Magna prevê o direito de aposentadoria no seu artigo 201, que disciplina sobre a previdência social, e dispõe que a aposentadoria é um benefício previdenciário cuja incidência se dá por diversas causas, por exemplo, a aposentadoria por invalidez que é devida àquele que perde a capacidade laborativa. (FONSECA, 2006, p. 261).

No que tange ao §1º do artigo 201, esse dispositivo diz que a vedação de adoção de requisitos e critérios diferenciados para a concessão de aposentadoria aos beneficiários do regime geral de previdência social, admite exceção quando se tratar dos segurados portadores de deficiência.

Cabe ressaltar que Lei Complementar n. 142 de 2013 regulamenta o § 1o do art. 201 da Constituição Federal, no tocante à aposentadoria da pessoa com deficiência segurada do Regime Geral de Previdência Social – RGPS, a qual o Estatuto faz referência no seu artigo 41 ao tratar do direito à previdência social.

Conforme o artigo 2º dessa Lei Complementar para o reconhecimento do direito à aposentadoria considera-se pessoa com deficiência aquela que tem impedimentos de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, os quais, em interação com diversas barreiras, podem obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas. 

Nesse sentido com vistas a assegurar a dignidade da pessoa humana o artigo 201, §1º da Carta Magna pode ser interpretado no sentido de inclusão do segurado do regime geral de previdência social, que realize um transplante e necessite de aposentadoria, ter um tratamento diferenciado conforme a Lei Complementar n. 142/2013.

 

2.2.1.7 Direito à Assistência Social

O artigo 203, inciso V, da Constituição Federal fixa o benefício continuado, de caráter assistencial, em favor da pessoa com deficiência ou idosa, "que não possuir meios de prover à própria manutenção ou de tê-la provida por sua família, conforme dispuser a lei".

Em razão desse dispositivo a Lei Federal n. 8.742/93 define no artigo 1º a assistência social como "direito do cidadão e dever do Estado" e tem como objetivo, dentre outros, a "promoção da integração à vida comunitária das pessoas portadoras de deficiência".

Essa lei assegura 01 (um) salário mínimo de benefício mensal à pessoa portadora de deficiência, que comprove não possuir os meios de prover a sua própria manutenção ou de tê-la provida por sua família, cuja renda mensal per capita seja inferior a 1/4 do salário mínimo, direito este reafirmado pelo artigo 40 do Estatuto da Pessoa com Deficiência.

Nesse diapasão o Estatuto determina no seu artigo 39 que os serviços, os programas, os projetos e os benefícios no âmbito da política pública de assistência social à pessoa com deficiência e sua família têm como objetivo a garantia da segurança de renda, da acolhida, da habilitação e da reabilitação, do desenvolvimento da autonomia e da convivência familiar e comunitária, para a promoção do acesso a direitos e da plena participação social.

Diante do exposto a previsão constitucional do artigo 203, inciso V da Constituição Federal merece a devida extensão de direitos posto que se mostra fundamental para a garantia da dignidade da pessoa transplantada que não possua meios de prover a própria manutenção ou de tê-la provida por sua família, uma vez que assegura o acesso a um benefício continuado no valor de um salário mínimo, fundamental para a sobrevivência e a luta contra a rejeição do órgão.

 

2.2.2 Estatuto da Pessoa com Deficiência – Lei n. 13.146/15

Em 06 julho de 2015 foi aprovado o Estatuto da Pessoa com Deficiência por meio da Lei Federal n. 13.146/2015 que institui a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência.

Em relação ao emprego do termo “estatuto”, Pablo Stolze enfatiza que “este importante estatuto, pela amplitude do alcance de suas normas, traduz uma verdadeira conquista social. Trata-se, indiscutivelmente, de um sistema normativo inclusivo, que homenageia o princípio da dignidade da pessoa humana em diversos níveis”. (STOLZE, 2015)

No seu artigo 1º a Lei dispõe que tem como base a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e seu Protocolo Facultativo, ratificados pelo Congresso Nacional por meio do Decreto Legislativo no 186/2008, em conformidade com o procedimento previsto no § 3o do artigo 5o da Constituição Federal, e promulgados pelo Decreto no 6.949/2009.

De acordo com o artigo 2º do Estatuto considera-se “pessoa com deficiência” aquela que tem impedimento de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, o qual, em interação com uma ou mais barreiras, pode obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas.  

Desse modo, em relação à pessoa com deficiência não deve ser mais tecnicamente considerada civilmente incapaz, na medida em que os artigos 6º e 84, do mesmo diploma, deixam claro que a deficiência não afeta a plena capacidade civil da pessoa:

Art. 6o  A deficiência não afeta a plena capacidade civil da pessoa, inclusive para:

I - casar-se e constituir união estável;

II - exercer direitos sexuais e reprodutivos;

III - exercer o direito de decidir sobre o número de filhos e de ter acesso a informações adequadas sobre reprodução e planejamento familiar;

IV - conservar sua fertilidade, sendo vedada a esterilização compulsória;

V - exercer o direito à família e à convivência familiar e comunitária; e

VI - exercer o direito à guarda, à tutela, à curatela e à adoção, como adotante ou adotando, em igualdade de oportunidades com as demais pessoas.

 

Art. 84.  A pessoa com deficiência tem assegurado o direito ao exercício de sua capacidade legal em igualdade de condições com as demais pessoas.

[...]

Para Stolze (2015) o Estatuto pretendeu, homenageando o princípio da dignidade da pessoa humana, fazer com que a pessoa com deficiência deixasse de ser “rotulada" como incapaz, para ser considerada, em uma perspectiva constitucional isonômica, dotada de plena capacidade legal, ainda que haja a necessidade de adoção de institutos assistenciais específicos, como a tomada de decisão apoiada e, extraordinariamente, a curatela, para a prática de atos na vida civil.

Por fim a Lei Brasileira de Inclusão, nos termos do seu artigo 94, criou o “auxílio-inclusão” que será pago a pessoa com deficiência moderada ou grave que receba o benefício de prestação continuada, e que passe a exercer atividade remunerada que a enquadre como segurado obrigatório do RGPS; ou que tenha recebido, nos últimos 5 (cinco) anos, o benefício de prestação continuada, e que exerça atividade remunerada que a enquadre como segurado obrigatório do RGPS.

Ante ao exposto, diante do propósito da Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência de promover, proteger e assegurar o exercício pleno e equitativo de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais por todas as pessoas com deficiência e promover o respeito pela sua dignidade inerente é que por meio deste estudo que se busca demonstrar a necessidade de extensão de direitos a pessoa transplantada com o fim de criação do Estatuto de Proteção Integral da Pessoa Transplantada.

 

2.3 DIREITO COMPARADO ARGENTINO: O SISTEMA DE PROTECCIÓN INTEGRAL PARA PERSONAS TRASPLANTADAS - LEY 26.928 de 2014

No âmbito internacional apresenta-se a recente Lei n. 26.928 promulgada em 10 de janeiro de 2014 pelo Parlamento Argentino que cria o Sistema de Protección Integral para Personas Trasplantadas. Segundo seu o artigo 1º o objeto da referida lei é a criação de um sistema global de proteção das pessoas que receberam transplantes ou estão na lista de espera para transplantes no Estado Argentino.

Segundo Gonzalez (2014,) esta nova lei Argentina, única no mundo, é a chave para uma verdadeira inclusão social e laboral de pessoas transplantadas. Nesse sentido Fernández (2014) em analise a aprovação da referida lei esclarece que o transplante tem a capacidade de restaurar a esperança e qualidade de vida. No entanto, apesar dos enormes benefícios que envolvem a intervenção médica para aqueles que conseguem receber o órgão de que necessitam, alguns obstáculos permanecem, como as dificuldades de inserção ou reinserção no mercado de trabalho são o denominador comum que sofre a grande maioria das pessoas transplantadas na Argentina.

Nesse viés Fernández (2014) apresenta o depoimento do Advogado e transplantado Alejandro González, o qual relata que o cerne da questão é que o transplantado está em desvantagem para trabalhar ou conseguir um emprego, mesmo que sejam capazes de fazê-lo, porque a situação legal é absolutamente única: não é considerado pessoa com deficiência, mas também nunca obtem alta hospitar, de modo que dificilmente passam por um teste ocupacional.

O Sistema de Porteção Integral das Pessoas Transplantadas tem por fim de preservar o direito à saúde de pessoas transplantadas residente na Argentina assegurando o seu direito à saúde de tal modo que permita as pessoas transplantadas viverem com dignidade, através da implantação de um sistema de proteção e a adoção de leis para a garantia da igualdade de acesso aos cuidados médicos. (CABRAL, 2014).

A referida lei conta com quinze artigo com vistas a promover medidas de ações positivas para assegurar uma efetiva igualdade de oportunidades e de tratamento, e o pleno gozo e exercício dos direitos reconhecidos pela Constituição Argentina e pelos tratados internacionais sobre direitos humanos, particularmente no que diz respeito à pessoa transplantada. Desse modo essa lei visa assegurar que as pessoas transplantadas tanto a integração familiar quanto social através da assistência médica completa, da educação em todos os níveis, da segurança social e do emprego. (ROMERO, 2014).

Dentre os benefícios previstos na referida lei estão:

a) a cobertura de 100% no fornecimento de medicamentos, testes de diagnóstico e cuidados de todas as doenças que estão direta ou indiretamente relacionadas com o transplante (art. 4º);

b) o fornecimento de passagens de transporte terrestre ou transporte fluvial de passageiros sob jurisdição nacional, no caminho entre a casa e qualquer destino necessário para comparecer por razões de cuidados devidamente credenciados. O Benefício deve ser estendido para um companheiro se a necessidade for comprovada (art. 5º);

c) a adoção de planos e medidas para facilitar as pessoas transplantadas o acesso a uma habitação adequada ou que se adapte às exigências que a sua condição exigir (art. 6º);

d) nas relações de trabalho, seja nos setores público e privado, e em relação à exigência de exames pré-emprego, é proibida como motivo de desclassificação para a admissão ou a manutenção de uma relação de trabalho ser transplantado ou estar matriculado em lista de espera para doação, sendo que a ignorância desse direito será considerado ato discriminatório (art. 7º);

e) direito a licenças especiais que permitam estudar, reabilitação e tratamento inerente à recuperação e manutenção de seu estado de saúde, sempre que necessário, sem a perda do emprego (art 8º);

f) o empregador tem o direito de uma dedução especial no cálculo Imposto de Renda equivalente a 70% em cada período fiscal, sobre a remuneração paga aos trabalhadores transplantados ou na lista de espera para doação (art 9º);

g) o Ministério de Trabalho deve promover o incentivo à criação de programas de emprego, empreendedorismo e oficinas protegidas para as pessoas transplantadas ou na lista de espera para doação (art 10º);

h) o Estado deve fornecer subsídio mensal não contributivo, equivalente a uma pensão por invalidez, para as pessoas transplantadas ou na lista de espera para doação em situação de desemprego forçado e que não tem qualquer outro benefício de pensão (art 11º);

Diante de todo o exposto, fica evidente a importância da lei do Estado Argentino que criou o primeiro Sistema de Proteção Integral das Pessoas Transplantadas do mundo, na medida em que visa  a proteger os direitos das pessoas transplantadas tendo por base uma visão abrangente para a garantia da qualidade de vida humana digna, visto que as pessoas transplantadas precisam fazer um grande esforço físico e mental para se adaptar às suas novas condições de vida, tanto biologicamente, psicologicamente e socialmente.

 

Sobre os autores
Caren Silva Machado

Especialista em Direito do Trabalho. Professora e Pesquisadora da UNOESC. Advogada;

André Amaral Medeiros

Bacharel em Direitos pela UNOESC; Advogado; Bacharel em Ciências Contábeis pela UFSM; Especialista em Gestão Pública Municipal pela UFSC; Especialista em Direito Tributário; Auditor de Finanças Públicas da Fazenda Estadual de Santa Catarina;

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MACHADO, Caren Silva; MEDEIROS, André Amaral. A necessidade de criação do estatuto de proteção integral da pessoa transplantada. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 23, n. 5426, 10 mai. 2018. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/64758. Acesso em: 22 dez. 2024.

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