2. O Processo Penal
O processo penal, nas palavras de Renato Brasileiro de Lima, “funciona como instrumento do qual se vale o Estado para a imposição de sanção penal ao possível autor do fato delituoso” 49 . O autor acrescenta que, visto que a restrição à liberdade de locomoção pode ser um dos resultados da aplicação do direito penal, a Constituição Federal estabelece regras que devem ser observadas, garantindo os direitos dos cidadãos ao processo penal justo, com base no Estado de Democrático de Direito.
Assim, o confronto entre o respeito aos direitos fundamentais e um sistema criminal eficiente leva à busca de um equilibro, onde o devido processo legal não interfira no sistema persecutório, evitando, ao mesmo tempo, abusos e hipergarantismos50.
Nesse mesmo sentido, Aury Lopes Jr. afirma que o processo penal é o instrumento de efetivação das garantias constitucionais51. Desta forma, citando J. Goldschmidt, Aury conclui que o processo penal nada mais é do que um reflexo da política estatal; logo, em um Estado de Democrático de Direito como o Brasil, o processo penal deve ser igualmente democrático.
Ainda sobre o assunto, Aury Lopes Jr. defende que o processo não pode ser visto como um instrumento do poder punitivo (direito penal), é preciso se enxergar o processo penal como um caminho necessário para se alcançar, de forma legítima, a pena. Por legitimidade, entende-se a observação às regras e garantias constitucionais52.
Desta forma, é possível extrair que, cometida uma infração penal, tipificada (princípio da legalidade), surge o direito-dever de punir (pretensão punitiva), conforme explica Guilherme Nucci53. A partir de então, surge o processo penal, como “corpo de normas jurídicas com a finalidade de regular o modo, os meios e os órgãos encarregados de punir do Estado, realizando-se por intermédio do Poder Judiciário, constitucionalmente incumbido de aplicar a lei ao caso concreto” 54.
O processo penal, o qual tem inicio com o recebimento da exordial acusatória (seja a denúncia ou a queixa-crime), conta muitas vezes com os elementos de prova colhidos no procedimento administrativo inquisitório, presidido pela autoridade policial, a que chamamos de inquérito policial. Desta maneira, cabe à autoridade policial realizar diligências com o intuito de se identificar fontes de provas e colheita de informações que possam levar à autoria e materialidade de determinado crime, para só então, em posse de tais dados, o titular da ação penal (no caso do Brasil, o Ministério Público) possa ingressar em juízo. Extrai-se, portanto, que o inquérito policial é um procedimento de natureza administrativa, pois o início da pretensão acusatória só ocorre quando o dominus littis aciona o judiciário55.
Outro ponto que é importante destacar é que não se refere a “provas” no inquérito policial. Renato Brasileiro explica que o termo só pode ser utilizado aos elementos de convicção produzidos no processo judicial, ou seja, que tenham atendido aos princípios do contraditório e da ampla defesa. Faz saber:
A participação do acusador, do acusado e de seu advogado é condição sine qua non para a escorreita produção da prova, assim como também o é a direta e constante supervisão do órgão julgador, (...). Funcionando a observância do contraditório como verdadeira condição de existência da prova, só podem ser considerados como prova, portanto, os dados de conhecimento introduzidos no processo na presença do juiz e com a participação dialética das partes (LIMA, 2016, Pg. 107).
Cumpre frisar, no entanto, que o termo “prova”, inobstante o entendimento esposado pela doutrina, é aplicado em sentido latu sensu pela prática forense, podendo referir-se tanto a elementos de prova colhidos no durante o inquérito policial, como também provas produzidas no curso do processo penal, com atenção ao contraditório das partes.
Nesse passo, verifica-se que na maioria dos casos, o Estado é o ente legitimado para ingressar com a ação penal (excetuando-se as ações penais privadas). No entanto, mesmo em casos de ação privada, o Estado é o único titular do poder de punir, suprimindo o instituto da vingança privada (ou “justiça com as próprias mãos”), o Estado toma para si o direito de proteger não só a comunidade, como também o próprio réu56.
Aury Lopes defende que o processo penal atua como meio para que o Estado possa realizar essa proteção. A observância das normas e dos institutos pré-estabelecidos permite que um terceiro imparcial aplique o direito material e processual na averiguação da ocorrência de um delito e, posteriormente, na determinação da sanção.
Para garantir todos os direitos constitucionais das partes envolvidas em um litígio penal, é imprescindível a observância aos princípios fundamentais do processo penal, tema do próximo tópico, no qual veremos alguns destes princípios, essenciais ao deslinde do estudo.
2.1. Princípios do Processo Penal
Sobre a matéria de princípios processuais, cumpre iniciar a discussão com a lição de Antonio Carlos de Araújo Cintra, Ada Pellegrini Grinover e Cândido Rangel Dinamarco em obra conjunta intitulada Teoria Geral do Processo, na qual os autores conceituam:
Considerando os escopos sociais e políticos do processo e do direito em geral, além do seu compromisso com a moral e a ética, atribui-se extraordinária relevância a certos princípios que não se prendem à técnica ou à dogmática jurídicas, trazendo em si seríssimas conotações éticas, sociais e políticas, valendo como algo externo ao sistema processual e servindo-lhe de sustentáculo legitimador (CINTRA, GRINOVER, DINAMARCO, 2013, Pg. 59).
Nucci sustenta, ainda, que o termo princípios, no âmbito do Direito, significa um postulado que se irradia por todo o sistema de normas, “fornecendo um padrão de interpretação, integração, conhecimento e aplicação do direito positivo, estabelecendo uma meta maior a seguir”, com profunda ligação e interdependência com os direitos humanos fundamentais. 57
2.1.1. Princípio da Busca da Verdade Real
Renato Brasileiro de Lima contextualiza que o Princípio da Busca da Verdade Real tem origem na ideia de que, estando em jogo a própria liberdade do acusado, deveria o magistrado buscar a verdade real – ou material –. Assim, a pretexto de descobrir a verdade, premissa indispensável à realização da pretensão punitiva do Estado, eram praticadas arbitrariedades e violações de direito58.
Atualmente, cientes de que a obtenção da verdade real, como almejada, é um ideal inatingível, o intérprete passa a buscar a maior aproximação possível da certeza dos fatos. Por essa razão o Princípio passa a se chamar Busca da Verdade Real. No mesmo sentido, o magistério de Guilherme Nucci afirma:
Entretanto, como vimos, o próprio conceito de verdade é relativo, de forma que é impossível falar em verdade absoluta ou ontológica, mormente no processo, julgado e conduzido por homens, perfeitamente falíveis em suas análises e cujos instrumentos de busca do que realmente aconteceu podem ser insuficientes (NUCCI, 2015, Pg. 93).
Disposto no art. 156. do Código de Processo Penal, este princípio permite ao magistrado a produção ex oficio de provas, com o intuito de robustecer o processo e, consequentemente, sua convicção, funcionando o juiz como copartícipe na busca de provas59.
Renato Brasileiro e Guilherme Nucci reforçam, ainda, que não obstante a necessidade de se aproximar o máximo possível da verdade real, o Princípio da Busca da Verdade Real não mais funciona como amparo a violações das garantias fundamentais das partes. Desta forma, não serão admitidos no processo provas obtidas por meios ilícitos (art. 5º, LVI), é imposto limitações aos depoimentos de testemunhas que têm ciência do fato em razão do exercício de profissão, ofício, função ou ministérios (art. 207, CPP), dentre outras.
2.1.2. Princípios do Contraditório e da Ampla Defesa
Na lição de Guilherme Nucci, o Princípio do Contraditório diz respeito à obrigatoriedade de que, qualquer alegação ou apresentação de prova feita no curso de um processo penal, por uma das partes, seja dada à outra parte o direito de se manifestar.
Desta forma, o juiz, enquanto figura imparcial e equidistante das partes, concede a elas, de forma igualitária, a oportunidade de expor suas razões e apresentar as provas que julgar necessárias para embasar sua opinião. Da união das teses apresentadas pelas partes (tese e antítese), ao juiz é possibilitado realizar a síntese, em um processo dialético. As partes, portanto, atuam como colaboradores do judiciário, na qual a ação conjunta destas “serve à justiça na eliminação do conflito ou controvérsia que os envolve” 60.
Garantido pelo art. 5º, LV da Constituição Federal, o Princípio do Contraditório funciona como um “direito à informação” e “direito à participação”, impossibilitando que no processo sejam feitas demandas e realizados atos dos quais qualquer uma das partes não tenha ciência e/ou não possa se manifestar61.
Renato Brasileiro explica que é por essa razão que a palavra “prova” só pode ser utilizada a elementos produzidos no curso do processo penal. A prova precisa ser produzida em atendimento ao contraditório e à ampla defesa, com a participação das partes e do órgão julgador, a fim de garantir, entre outros direitos, o da busca pela verdade real. Nesse sentido, existe o art. 155. do Código de Processo Penal no qual se dispõe sobre a necessidade do magistrado de formar sua convicção através da prova produzida em contraditório judicial62.
É possível concluir, portanto, que o Princípio do Contraditório permite às partes uma participação ativa no processo judicial, lhes garantindo o dever de contestar, demandar e se manifestar sobre atos e provas que lhes pareçam devidos ou indevidos. Assim, configura-se como Princípio fundamental para um processo penal justo e garantidor dos direitos constitucionais das partes.
Assim como o Princípio do Contraditório, o Princípio da Ampla Defesa é garantido pela carta magna no art. 5º, LV63. Sob este Princípio, é garantido ao réu o direito de se defender, lançando mão de métodos variados64, em estrita relação ao direito à informação. Por essa razão, os Princípios do Contraditório e Ampla Defesa, como observado na Constituição Federal, andam intimamente ligados.
Por derradeiro, Renato Brasileiro alerta que, não obstante a relação entre os dois Princípios, estes não se confundem, assim ele explica a distinção, se utilizando da lição de Antônio Scarance Fernandes:
Com efeito, por força do princípio do devido processo legal, o processo penal exige partes em posição antagônicas, uma delas obrigatoriamente em posição de defesa (ampla defesa), havendo a necessidade de que cada uma tenha o direito de se contrapor aos atos e termos da parte contrária (contraditório). Como se vê, a defesa e o contraditório são manifestações simultâneas, intimamente ligadas pelo processo, sem que daí se possa concluir que uma derive da outra (LIMA, 2016, Pg.51).
2.1.3. Princípio do Nemo tenetur se detegere
O Princípio do Nemo tenetur se detegere encontra respaldo no art. 5º, LXIII da Constituição Federal, no qual é garantido ao preso o direito de permanecer calado. Assim, trata-se da premissa de que ninguém é obrigado a produzir provas contra si mesmo. Além da Constituição, acrescenta Renato Brasileiro de que o Princípio é garantido pelo Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (art. 14.3, “g”) e pela Convenção Americana sobre Direitos Humanos (art. 8º, §2º, “g”)65.
O Princípio garante ao indivíduo o direito à passividade e também proíbe a utilização de qualquer meio de coerção ou intimidação ao investigado com o intuito de obter uma confissão. Nesse passo, Renato Brasileiro afirma que a doutrina passou a interpretar o dispositivo constitucional de forma abrangente, aplicando-o a qualquer cidadão, solto ou preso, indiciado ou não, ninguém é obrigado a confessar um crime.
O titular do direito de não produzir prova contra si mesmo é, portanto, qualquer pessoa que possa se autoincriminar. Qualquer indivíduo que figure como objeto de procedimentos investigatórios policiais ou que ostente, em juízo penal, a condição jurídica de imputado, tem, dentre as várias prerrogativas que lhe são constitucionalmente asseguradas, o direito de não produzir prova contra si mesmo: Nemo tenetur se detegere (LIMA, 2016, Pg.71).
Para Mariana Mayumi Monteiro, o Princípio da Não Autoincriminação se traduz não apenas como um dos mais importantes princípios aplicáveis no contexto da produção probatória, mas também exerce função essencial na construção de um sistema punitivo compatível com o Estado Democrático de Direito66.
Para a autora, por essa razão o privilege against self-incrimination, dos Estados Unidos, garantido pela Quinta Emenda à Constituição norte-americana, “encontra-se primordialmente vinculado à preocupação quanto aos eventuais abusos que poderiam ser cometidos pelos policiais contra suspeitos submetidos a interrogatório, especialmente no momento da prisão” 67 .
Cita a autora, ainda, o caso emblemático Miranda v. Arizona de 1966, de cuja decisão foi extraído um conjunto de regras sobre confissão e estabelecidos requisitos para a realização de interrogatórios sob custódia, comumente conhecido como Miranda Warning 68. Foi a partir desse caso que se garantiu ao indivíduo o direito de permanecer em silêncio, sem que isto resulte em confissão ficta ou fator prejudicial no curso do processo penal.
Renato Brasileiro afirma que no Brasil, no mesmo molde do Miranda Warning dos Estados Unidos, é preciso informar ao acusado de seus direitos, inclusive o de permanecer calado, sob pena de ilicitude de provas obtidas69. Nessa esteira, o Supremo Tribunal Federal entendeu que a omissão em informar ao preso de seus direitos, de fato, gera nulidade e “impõe a desconsideração de todas as informações incriminatórias dele anteriormente obtidas, assim como das provas delas derivadas” 70.
Possível concluir, portanto, ao se realizar uma regressão ao Capítulo 1, que a utilização das participações voluntárias – uma vez que consistem na colaboração com a garantia de uso exclusivo para fins preventivos, e por essa razão não se lhe impõem a obrigatoriedade de informar os direitos – em processos penais poderia, pela análise do disposto até o momento, macular a colaboração, bem como tudo que dela derivou (teoria dos frutos da árvore envenenada), pelo fato de não terem sido informados ao colaborador de seus direitos constitucionais.
2.1.4. Princípio da Inadmissibilidade das provas obtidas por meio ilícito
O Princípio da Inadmissibilidade das provas obtidas por meio ilícitos encontra previsão no art. 5º, LVI da Constituição Federal71. Assim, a sanção aplicada às provas ilícitas é a sua inadmissibilidade (desentranhamento dos autos), não se tratando de nulidade da prova72.
Sobre o termo “ilícito” Nucci leciona que o conceito deriva do latim illicitus, possuindo o sentido restrito de significar algo proibido por lei e o sentido amplo, que configura como ilícito algo contrário à moral, aos bons costumes e aos princípios gerais de direito. Com base na Constituição, afirma o autor que se aplica o sentido amplo da palavra73.
Dentro do processo penal, a ilicitude pode ser formal – forma como foi introduzida no processo é vedado por lei –, ou material – a forma como foi obtida a prova é proibida por lei –. Assim, o ilícito abrange o ilegalmente colhido e o ilegitimamente produzido, podendo ser consideradas ilícitas as provas obtidas em violação a normas penais ou processuais penais74.
As provas ilegítimas, por outro lado, ocorrem quando são obtidas através de violação à norma de direito processual, em regra, no curso do processo75. Poder-se-ia citar como exemplo a proibição de depor em relação a fatos que envolva o sigilo profissional (art. 207, CPP) – exemplo que permite a analogia à Lei 12.970/14, quando esta veda a participação em juízo de profissional que tenha atuado na investigação aeronáutica (art. 88-E, parágrafo único).
As provas ilegítimas, diferentemente das ilícitas, na visão de Renato Brasileiro, são resolvidas dentro do processo, de acordo com as “regras processuais que determinam as formas e as modalidades de produção da prova, com a sanção correspondente a cada transgressão (reconhecimento de irregularidade, nulidade absoluta ou relativa, etc.)” 76 .
Seguindo na análise das provas ilícitas, foi adotada no Brasil a teoria fruits of the poisonous tree (teoria dos frutos da árvore envenenada, ou, ainda, ilicitude por derivação).
A teoria, nascida na Suprema Corte norte-americana, no caso Silverthorne Lumber Co v. US (1920), cunhada no caso Nardone v. US, e posteriormente internalizada pela jurisprudência brasileira, dispõe que uma vez classificada como prova ilícita, esta prova irá contaminar todas as outras que a partir dela foram obtidas, salvo se estas últimas puderem ser obtidas por fonte independente da ilícita ou ficar provada a ausência de nexo causal entre uma e outra77 (nos termos do art. 157, caput e §1º da Lei n. 11.690. de 2008).
Sobre a teoria dos frutos da árvore envenenada, Fabiano Yuji Takayanagi, ao citar Eugênio Pacelli, resume sua importância:
Ademais, a absorção dessa teoria sob forma legal teve grande importância, caso contrário os efeitos sem ela poderiam ser nefastos. Explica Eugênio Pacelli de Oliveira que ‘se os agentes produtores da prova ilícita pudessem dela se valer para obtenção de novas provas, a cuja existência somente se teria chegado a partir daquela (ilícita), a ilicitude da conduta seria facilmente contornável. Bastaria a observância da forma prevista em lei, na segunda operação, isto é, na busca das provas obtidas por meio das informações extraídas pela via da ilicitude, para que se legalizasse a ilicitude da primeira (operação). Assim, a teoria da ilicitude por derivação é uma imposição da aplicação do princípio da inadmissibilidade das provas obtidas ilicitamente (TAKAYANAGI, 2014, Pg. 48).
Extrai-se, portanto, que a forma de obtenção das provas, bem como sua inclusão no processo penal deve observar as garantias constitucionais e as diretrizes processuais penais, a fim de evitar que tais informações se tornem inutilizáveis por ilicitude.
2.2. Provas no Processo Penal
Na obra Teoria Geral do Processo, os autores Antonio Carlos de Araújo Cintra, Ada Pellegrini Grinover e Cândido Rangel Dinamarco definem prova como sendo o instrumento através do qual o magistrado forma sua convicção a respeito da ocorrência, ou não, dos fatos controvertidos no processo78.
Com a mesma origem etimológica de probo (do latim, probatio e probus), a palavra prova carrega consigo ideias de verificação, inspeção, exame, aprovação ou confirmação79.
Nesse passo, Renato Brasileiro identifica três acepções para a palavra prova. A primeira diz respeito à prova como atividade probatória, ou seja, produção dos meios necessários à formação da convicção do intérprete sobre a veracidade, ou não, de uma alegação sobre um fato importante à solução da causa80. O autor pondera que, não obstante o direito das partes à produção de provas, esse direito não é absoluto. Fica afastada a possibilidade de utilização de provas que não obedeçam ao devido processo legal e que sejam obtidas por meio ilícitos.
O segundo significado consiste na prova como resultado. Por resultado entende-se a convicção sobre os fatos alegados durante o processo pelas partes.
Por fim, o terceiro sentido de prova é o da prova como meio. Seriam, portanto, os instrumentos necessários à formação da convicção do magistrado acerca dos fatos alegados81.
Renato Brasileiro pondera que, por não obedecerem ao contraditório e a ampla defesa, a utilização dos elementos da fase investigativa não são idôneos para fundamentar uma condenação, isoladamente82.
Para Guilherme Nucci, meios de provas são todos os recursos utilizados para se alcançar a verdade dentro do processo. Para o autor, estes meios podem ser tanto lícitos quanto ilícitos. Logo, todas as provas que não violem princípios e normas do ordenamento jurídico, podem ser produzidas no processo penal83.
2.2.1. Fontes de prova, meios de obtenção de prova e meios de prova
Para Renato Brasileiro, as fontes de prova dizem respeito às pessoas ou coisas das quais consegue se extrair a prova, podendo ser classificadas em fontes pessoais (ofendido, acusado, perito, etc.) e em fontes reais (documentos em sentido amplo). As fontes de prova derivam do fato delituoso em si, ou seja, são anteriores ao processo (extraprocessuais) e sua inclusão nos autos se dá através dos meios de prova84.
Meios de prova, por sua vez, são os “instrumentos através dos quais as fontes de prova são introduzidas no processo” 85 . Caracteriza-se, portanto, como uma atividade endoprocessual desenvolvida perante o juiz e as partes, com a finalidade de fixar dados probatórios no processo.
A última classificação dada por Renato Brasileiro é a dos meios de obtenção da prova (ou meio de investigação). Os meios de obtenção da prova são, em regra, extraprocessuais, regulados por lei, que almejam a obtenção de provas materiais e podem ser realizados por outros funcionários que não o juiz, a exemplo da busca e apreensão86.
Renato ressalta, ainda, trazendo à baila a distinção entre o tratamento dado às provas ilícitas e às provas ilegítimas, que é a diferenciação entre meios de prova e meio de obtenção de prova é imperiosa para se dar o devido tratamento em casos de irregularidades no momento de sua produção. Assim, ele explica:
Deveras, eventuais vícios quanto aos meios de prova terá como conseqüência a nulidade da prova produzida, haja vista referir-se a uma atividade endoprocessual. Lado outro, verificando-se qualquer ilegalidade no tocante à produção de determinado meio de obtenção de prova, a conseqüência será o reconhecimento de sua inadmissibilidade no processo, diante da violação de regras relacionadas à sua obtenção (CF, art. 5º, LVI), com o conseqüente desentranhamento dos autos do processo (CPP, art. 157, caput) (LIMA, 2016, Pg. 579).
2.2.2. Indícios no Processo Penal
De acordo com o dicionário online Michaelis, indício é uma indicação provável, índice; funcionando no vocábulo jurídico como um “sinal ou fato que deixa entrever alguma coisa, sem a descobrir completamente, mas constituindo princípio de prova” 87.
Para Renato Brasileiro, o indício não é um meio de prova, mas o resultado probatório de um meio de prova88, explica-se: o indício funciona como o ponto de partida para a dedução, inferência. Assim, é a partir do indício que se pode provar algum fato indicativo.
Para a pesquisa aqui realizada, de grande relevância a ponderação que Renato Brasileiro faz sobre a utilização de indícios para se condenar alguém. O autor entende que tanto as provas diretas, quanto as indiretas, podem ser utilizadas para formar a convicção do magistrado. Ressalva, contudo, que não se pode admitir que “um indício isolado e frágil possa fundamentar um decreto condenatório”, desta forma, o autor sujeita a prova indiciária a algumas condições, as quais cumprem transcrever:
a) os indícios devem ser plurais (somente excepcionalmente um único indício será suficiente, desde que esteja revestido de um potencial incriminador singular);
b) devem estar estreitamente relacionados entre si;
c) devem ser concomitantes, ou seja, univocamente incriminadores – não valem as meras conjecturas ou suspeitas, pois não é possível construir certezas sobre simples probabilidades;
d) existência de razões dedutivas – entre os indícios provados e os fatos que se inferem destes deve existir um enlace preciso, direto, coerente, lógico e racional segundo as regras do critério humano (LIMA, 2016, Pg. 582).
Do acima transcrito, em especial os trechos grifados, é possível entender de maneira mais clara o conflito que ocasionaria a utilização das análises do SIPAER em processos judiciais. Como já fora repetidamente exposto no Capítulo 1, a investigação aeronáutica se vale de todo tipo de hipótese (comprovadas ou não), fatores contribuintes de menor e maior relevância, suspeitas, etc. Assim, em uma análise jurídico-probatória destes relatórios produzidos pelo SIPAER, chega-se à conclusão de sua imprecisão e da ausência de nexo causal direto entre os mais variados fatores listados e a responsabilidade pelo sinistro investigado, tornando-o inadequado para formar a convicção de um magistrado em um processo sancionador, sob risco de violar os direitos fundamentais do indivíduo.
2.2.3. Prova emprestada
Para Guilherme Nucci, prova emprestada é aquela que, produzida em outro processo, é juntada ao processo criminal através da reprodução documental89.
Eduardo Talamini, por sua vez, define prova emprestada como o aproveitamento de atividade probatória anteriormente desenvolvida, mediante traslado dos elementos que a documentaram90 .
Não obstante a possibilidade de se aproveitar provas de outro processo, é preciso que o magistrado observe a forma como a prova foi produzida no processo de origem, a fim de se verificar a atenção ao devido processo legal. Por isso, entende-se necessária a identidade das partes entre os processos, de modo a não tolher o direito ao contraditório91·.
Para Talamini, um requisito para a admissibilidade da prova emprestada que merece destaque é a obrigatoriedade de a prova ter sido colhida em frente a órgão jurisdicional (inafastabilidade da jurisdição e devido processo legal), como garantia à observância dos direitos inerentes ao processo judicial. Desta forma, não se tratando de prova pré-constituída, sempre que possível deve ser produzida no processo judicial. Assim, não é permitido o empréstimo de elementos de provas produzidos em processo ou procedimento administrativo (nessa classificação podemos incluir a investigação aeronáutica), inclusive o inquérito policial92.
Sobre prova emprestada, cumpre ressaltar, por derradeiro, que seu valor probatório é o mesmo da prova originalmente produzida, não podendo, todavia, servir como único elemento de convicção do juiz – segundo entendimento jurisprudencial93.
Ao concluirmos o presente capítulo, torna-se ainda mais clara as diferenças entre a investigação aeronáutica e os princípios norteadores de uma investigação apta a ser utilizada no processo penal.
Conflitando com os conceitos e finalidade da investigação aeronáutica, o processo penal exige a atenção aos direitos fundamentais de qualquer indivíduo, de modo a não cercear sua defesa, tampouco tolher-lhe a liberdade utilizando-se de meios ilícitos e arbitrários.
Feitas essas ponderações, passemos ao Capítulo 3, destinado a fazer o cotejo entre os tópicos estudados até o momento.