Símbolo do Jus.com.br Jus.com.br
Artigo Selo Verificado Destaque dos editores

A tutela dos direitos fundamentais e a força normativa dos precedentes e das súmulas.

Agenda 04/04/2018 às 15:40

Em nossas raízes culturais e religiosas estariam fincadas as razões do voluntarismo judicial dos magistrados e tribunais brasileiros. Ou seja, julgar e decidir não com respeito às leis e aos precedentes, mas a despeito das leis e dos precedentes.

“Estou cada vez mais convencido de que entre o rito judiciário e o rito religioso existem parentescos históricos muito mais próximos do que a igualdade da palavra indica. Quem fizesse um estudo comparativo do cerimonial litúrgico e das formas processuais perceberia na história certo paralelismo de evolução. Quase se poderia dizer que, nos tribunais e nas igrejas, a religião degenerou em conformismo.

A sentença era, originariamente, um ato sobre-humano, o juízo de Deus: as defesas eram preces. Mas com o passar dos séculos o espírito voltou para o céu, e na terra só ficaram as formas exteriores de um culto que ninguém mais acredita. Ao assistirmos ao cansaço distraído de certas audiências, somos levados a pensar na indiferença com que tanta gente boa, nos feriados religiosos, continua indo à missa por força do hábito e para ostentar em público uma fé que já não tem no coração.

Talvez as profundas diferenças que se notam entre a simplicidade e a lealdade dos juízes nos países anglo-saxões e o complicado e dispendioso formalismo do nosso processo tenham seu fundamento numa resistência diferente do espírito religioso. No procedimento judiciário inglês, tão rápido e leal, traduziu-se a Reforma; o nosso ainda é um procedimento católico romano.

Também nas cerimônias do processo se nota certa diferença entre crentes e carolas, entre religiosos e conformistas, entre a humilde fé na justiça e a faustosa carolice judiciária”.[1]

Senhoras e senhores,

1. Iniciei esta breve intervenção com a judiciosa e longa, porém indispensável, advertência de Piero Calamandrei, extraída de seu afamado livro Eles, os juízes, vistos por um advogado, cuja primeira edição foi publicada no ano de 1935, porque efetivamente o fenômeno jurídico é demasiadamente parecido com o religioso. E, por consequência, a cultura jurídica tem estreita ligação com a cultura religiosa.

2. Com efeito, Thomas Hobbes[2], tido por muitos como o fundador do positivismo jurídico, no sentido de que o Direito e a Justiça consistem na decisão vencedora de quem possui o poder estatal ou institucionalizado, em sua obra magna “Leviatã”, utilizou dessa figura mitológica extraída das “Sagradas Escrituras” para personificar o Estado. A Religião servindo como estratégia normativa e simbólica justificadora da Política e do Poder.

3. Na mesma toada o pensamento de Carl Schmitt[3], em seu livro “Teologia Política”, onde está escrita a seguinte afirmação:

“Todos os conceitos concisos da teoria do Estado moderna são conceitos teológicos secularizados. Não somente de acordo com seu desenvolvimento histórico, porque ele foi transferido da teologia para a teoria do Estado, à medida que o Deus onipotente tornou-se o legislador onipotente, mas, também, na sua estrutura sistemática, cujo conhecimento é necessário para uma análise sociológica desses conceitos. O estado de exceção tem significado análogo para a jurisprudência, como o milagre para a teologia...”

4. Essa perspectiva do Direito como Religião secularizada, do Estado como Deus artificial tem sido objeto de vários estudos.  Karl Olivercrona[4], em livro intitulado “Linguagem jurídica e realidade”, afirma que a linguagem jurídica origina-se da linguagem da magia.

5. À luz dessas estreitas ligações entre o Direito e a Religião, partirei da premissa de que a “força normativa” consiste em uma “força mítica” ou quiçá “mágica”. Isso mesmo. O Direito não existe na natureza. O Direito é uma criação da mente humana, assim como os “duendes”, os “elfos”, os “unicórnios”, os “sátiros”, os “dragões” etc.

6. Talvez essas figuras do imaginário sejam até mais concretas do que o próprio Direito. Com efeito, se fecharmos os olhos e pensarmos nesses aludidos “seres” extraídos de narrativas mitológicas, somos capazes de lhes concretizar mentalmente. Mas nenhum de nós tem a capacidade de imaginar o Direito.

7. Com efeito, todos nós sabemos que um “sátiro” tem os pés de bode; ou que o “unicórnio” consiste em um cavalo com um chifre na cabeça. Por mais absurdos e por mais inexistentes que sejam, somos capazes de imaginar e de desenhar esses “seres” mitológicos.

8. Mas, reitero, nenhum de nós consegue materializar em sua mente o fenômeno jurídico.

9. Malgrado esse indiscutível aspecto da realidade concreta, nenhum de nós duvida da existência do Direito. E nenhum de nós duvida da sua força normativa. Se o Direito não existe na natureza e ainda assim consegue influenciar as nossas condutas, isso significa que ele tem poderes mágicos, sobrenaturais.

10. Se o Direito não existe concretamente na natureza, se não pode ser materializado, pensado, desenhado, iconografado, e ainda assim ele exerce indiscutível influência em nossas vidas concretas, é porque ele é uma ficção criada pela mente humana. É uma virtualidade.

11. Segundo o historiador israelense Yuval Harari[5], em livro intitulado “Sapiens – uma breve história da humanidade (de símios a deuses)”, o que permitiu que nós, membros pertencentes à espécie dos homo sapiens sapiens, nos tornássemos a espécie dominante deste orbe terrestre foi a incrível capacidade de criarmos uma rede de cooperação graças aos nossos “mitos normativos”.

12. E os “mitos” consistem no compartilhamento de crenças sobre coisas inexistentes no mundo natural, apenas no mundo virtual ou fictício. E dentre os “mitos” com maior força “normativa” estão os “morais”, os “religiosos” e os “jurídicos”.

13. No mundo natural, tudo o que for possível de acontecer, acontece. O único limite à natureza é a própria natureza. Já no mundo dos “mitos”, os limites não são naturais, são “normativos”.

14. No reino da natureza o “incesto” pode acontecer. Mas no reino de nossa mitologia moral o “incesto” é um tabu, uma conduta que não deve ocorrer. No reino da natureza, Zeus pode não ter existido, mas na mitologia “religiosa” dos antigos gregos, Zeus foi objeto de culto e adoração. O reino da natureza é o campo do exercício das possibilidades, enquanto que o reino dos “mitos’” é o campo do exercício das autorizações normativas, decorrentes das “realidades imaginadas” por força de “crenças intersubjetivamente compartilhadas”.

15. Esta Instituição de Ensino, é um bom exemplo “mitológico”. Se acaso todos os seus prédios físicos desaparecessem, ela deixaria de existir? Se acaso todos os seus professores fossem substituídos, ela deixaria de existir? Ou todos os seus alunos? Ou se mudassem a sua logomarca? Esta Instituição é um exemplo de uma “realidade imaginada”, mas de indiscutível concretude.

16. Vejam quantas pessoas cooperaram, estão cooperando e ainda vão cooperar em redor da Universidade de Itaúna?

17. Ela é uma instituição mitológica porque carrega a “crença intersubjetivamente compartilhada” que induz à cooperação entre a sua específica comunidade que gravita em seu redor ou em seu interior (alunos, professores, funcionários, administradores, colaboradores) ou em seu exterior, pessoas que sabem que existe objetivamente uma instituição normativa denominada Universidade de Itaúna.

18. A crença nesta Instituição é a razão pela qual todos nós estamos aqui hoje. Isso é um mito normativo.

19. Eu só aceitei o honroso convite de vir para cá porque acreditei que as senhoras e senhores estariam interessados em ouvir as minhas considerações sobre o tema intitulado “A tutela dos direitos fundamentais e a força normativa dos precedentes e das súmulas – perspectivas e expectativas do novo CPC”.

20. E as senhoras e os senhores somente estão aqui porque também compartilham da crença de que tenho algo de útil a lhes falar, nem que seja para discordar de absolutamente tudo que estou falando ou que ainda venha a lhes falar.

Assine a nossa newsletter! Seja o primeiro a receber nossas novidades exclusivas e recentes diretamente em sua caixa de entrada.
Publique seus artigos

21. O fato concreto é que tanto este pálido orador quanto esse distinto auditório compartilham dos mesmos mitos. Eu acredito que as senhoras e senhores merecem ouvir algo de interessante. E vocês acreditam que merecem ouvir algo relevante, e que eu possa lhes falar algo que valha a pena escutar. Nós todos aqui presentes compartilhamos das mesmas crenças. Por isso estamos aqui, nesta noite de sexta-feira.

22. Lhes asseguro que esta noite de sexta-feira nos será útil, porque estou aqui com sinceridade de propósitos e também acredito que vocês estão com idêntico comportamento ético.

23. Pois bem, o Direito tem força normativa porque é um “mito”, ou seja, um conjunto de crenças intersubjetivamente compartilhadas. Uma realidade imaginada. Um instrumento que viabiliza a cooperação social. Por isso que o Direito consegue moldar os nossos comportamentos. Eis o aspecto mágico da normatividade jurídica.

24. A força do “Mito” que é o Direito pressupõe que tanto os profissionais do Direito (magistrados, advogados, promotores, professores etc.) quanto as pessoas comuns (não versadas nas “ciências jurídicas”) acreditem no império de sua força normativa, como realidade palpável. Sem essa crença mitológica, o Direito se tornaria instrumento social inútil.

25. Segundo Charles Darwin, no reino da natureza, as coisas inúteis ou que não conseguem se adaptar ao meio ambiente deixam de existir. O mesmo sucede com os “mitos” que deixam de ter utilidade. Eles deixam de existir. O Direito deve ser socialmente útil, deve ser um instrumento viabilizador da cooperação humana, se quiser continuar existindo.

26. E quais são os “mitos” que analisaremos hoje?

27. O mito dos “Direitos Fundamentais”, uma genial criação da mente humana. A crença de que todo indivíduo, pelo simples fato de ser humano ou de ter a forma humana ou de apenas estar no ventre de uma mulher, é dotado de direitos inalienáveis, especialmente o direito de viver, de existir, de ser livre, e de ser tratado com respeito e consideração, porque pelo simples fato de ser membro da espécie humana é tão digno e tão igual a qualquer outro ser humano.

28. No Brasil, esse “mito” ganhou nova oportunidade com a Constituição de 1988.

29. A rigor, tenha-se que essa é uma crença mitológica recente. Com efeito, na longa história da humanidade sapiens, com os seus quase 1 milhão de anos, e somente uns 100 mil anos como espécie dominante, e com o estabelecimento das primeiras civilizações em torno dos últimos 10 mil anos, somente há pouco mais de 250 anos que essa crença passou a ser intersubjetivamente compartilhada.

30. Nada obstante seja um “mito jovem”, há de ser a crença ideológica vencedora, apesar dos pesares.

31. Será que a prescrição nos textos normativos, nas Constituições, nos Tratados, nas Leis, dos direitos fundamentais têm sido suficientes e bastantes para a sua real concretização universal para todo e qualquer ser humano?

32. A resposta é negativa. Não são poucas as pessoas humanas que ainda estão muito longe de vivenciarem plenamente os seus direitos fundamentais, seja aqui no Brasil ou em outros países.

33. E a “força normativa dos precedentes e das súmulas”? O novo CPC será suficiente e bastante para tornar essa virtualidade em realidade?

34. Tenho que os “Precedentes e as Súmulas” somente terão “Força Normativa” se eles se tornarem “Mitos”. Se eles tiverem a capacidade mágica de moldar as condutas e os comportamentos dos profissionais do direito, especialmente dos magistrados e tribunais.

34. Ou seja, “a força normativa dos precedentes e das súmulas” pressupõe que haja uma crença intersubjetivamente compartilhada de sua utilidade social, de modo que todos os envolvidos enxerguem esses institutos processuais como instrumentos viabilizadores da cooperação humana, especificamente, da cooperação entre os profissionais do Direito (magistrados, advogados, promotores, professores etc.).

35. Vejamos o que está prescrito no novo CPC.

36. Comecemos do começo. O artigo 926 do Novo CPC preceitua um truísmo ululante: que os tribunais devem uniformizar sua jurisprudência e mantê-la estável, íntegra e coerente.

37. No art. 927 está determinado que os juízes e tribunais observarão:

 I - as decisões do Supremo Tribunal Federal em controle concentrado de constitucionalidade;

II - os enunciados de súmula vinculante;

III - os acórdãos em incidente de assunção de competência ou de resolução de demandas repetitivas e em julgamento de recursos extraordinário e especial repetitivos;

IV – os enunciados das súmulas do Supremo Tribunal em matéria constitucional e do Superior Tribunal de Justiça em matéria infraconstitucional;

V – a orientação do plenário ou do órgão especial aos quais estiverem vinculados.

38. Nos preceitos que cuidam da sentença e da coisa julgada, que estão entre o 485 e 508, há comandos normativos que procuram obrigar o juiz a obedecer os precedentes e as súmulas dos Tribunais.

39. Ainda no artigo 927, constam 5 parágrafos relativos ao tema dessa coerência e regularidade dos precedentes judiciais, em homenagem à certeza do direito e à segurança jurídica, que visam criar um novo padrão comportamental dos magistrados.

40. Desses mencionados 5 parágrafos do referido artigo 927 pede-se licença para recordar três deles: o 2º, o 3º e o 4º que têm as seguintes enunciações:

§2º A alteração de tese jurídica adotada em enunciado de súmula ou em julgamento de casos repetitivos poderá ser precedida de audiências públicas e da participação de pessoas, órgãos ou entidades que possam contribuir para a rediscussão da tese;

§3º Na hipótese de alteração de jurisprudência dominante do Supremo Tribunal Federal e dos tribunais superiores ou daquela oriunda de julgamento de casos repetitivos, pode haver modulação dos efeitos da alteração no interesse social e no da segurança jurídica;

§4º A modificação de enunciado de súmula, de jurisprudência pacificada ou de tese adotada em julgamento de casos repetitivos observará a necessidade de fundamentação adequada e específica, considerando os princípios da segurança jurídica, da proteção da confiança e da isonomia.

41. Como se vê, o novo CPC quer exorcizar o “espectro” da instabilidade jurisprudencial. Mas esse “fantasma” não assombra apenas o STF e os tribunais superiores. A rigor, todo magistrado e tribunal deve ter compromisso com a estabilidade jurisprudencial.

42. O novo CPC tem a pretensão de fazer com que os magistrados e os tribunais, de quaisquer instâncias, sejam leais aos seus próprios e respectivos precedentes judiciais e/ou aos precedentes de instâncias superiores.

43. Todo texto normativo é pretensioso. E os mais novos são os mais ousados!! E o novo CPC/2015 é um texto muito ousado e bastante pretensioso.

44. Mas, afinal, o que vem a ser um texto normativo processual como o novo CPC? Respondo: um apelo desesperado para que os magistrados não utilizem, de modo arbitrário, o seu poder de julgar.

45. Que os magistrados, desdes as mais humildes Comarcas até os que estão com assento no STF, não julguem as condutas e comportamentos de seus semelhantes, segundo o seu próprio e exclusivo talante, ao sabor de seus interesses e conveniências, ou mesmo, segundo a sua própria noção de Justiça ou de Moral.

46. O novo CPC é um apelo que o povo, por meio de seus legítimos representantes políticos, que são os parlamentares, fazem aos juízes. Não nos julguem com arbítrio apaixonado. Por favor, nos julguem segundo a razão legal.

45. Em nosso País, infelizmente viceja de longa data uma histórica e permanente desconfiança em relação aos magistrados e tribunais. 

46. E quais as razões para esse atávico e permanente comportamento dos magistrados e tribunais brasileiros?

47. Retorno ao tema das estreitas ligações entre as nossas “crenças religiosas” e as nossas “crenças jurídicas”. Muito de nossos “hábitos” e “comportamentos” decorrem de nossos “mitos” normativos, basicamente os “morais”, os “religiosos” e os “jurídicos”, que auxiliam em nossas condutas e comportamentos éticos, especialmente os relativos aos direitos e deveres fundamentais.

48. Evidentemente, não devemos desprezar as inclinações naturais, as psicológicas, as instintivas, e muito menos as nossas necessidades de sobrevivência, como as econômicas, que transformam o ser humano em uma entidade complexa.

49. Pois bem, nessa linha de compreensão, o ilustre professor e advogado Luiz Guilherme Marinoni[6], em livro intitulado “A ética dos precedentes – justificativa do novo CPC”, em feliz intuição, foi buscar nos livros clássicos que interpretaram o “Brasil” e os “brasileiros” a motivação do comportamento dos magistrados brasileiros, de quaisquer instâncias ou tribunais, que induz à permanente desconfiança que temos em relação aos órgãos do Poder Judiciário, especialmente das instâncias ordinárias.

50. Segundo esse mencionado autor, o magistrado brasileiro não se sente constrangido, nem moral nem legalmente, a se submeter às leis e aos precedentes judiciais.

51. Com efeito, quando um magistrado tem uma controvérsia jurídica para decidir, ele se vê diante de uma situação quadridimensional:

a) primeira, a dimensão das circunstâncias fáticas;

b) segunda, a dimensão dos valores sociais e intersubjetivamente compartilhados;

c) terceira, a dimensão de sua subjetividade, de sua ciência, experiência e consciência;

d) e a quarta dimensão dos textos normativos.

52. A dimensão fática é objetiva e complexa, sujeita às narrativas convincentes e aceitáveis.

53. A dimensão dos valores é intersubjetiva, mas sujeita às variações do tempo e do espaço. A dimensão subjetiva do intérprete/aplicador também está sujeita às variações do tempo e do espaço.

54. Resta a mais simples das dimensões, a dos textos normativos, que se presta como instrumento redutor de complexidades, inclusive daquelas decorrentes das outras três dimensões.

55. O papel do texto normativo, nas controvérsias jurídicas, consiste em ser um instrumento de alívio para as dimensões intersubjetivas e subjetivas diante da narrativa sobre a “verdade” dos fatos visando à solução do problema normativo. O texto deve facilitar a vida de quem decide.

56. Pois bem, à luz de nossa experiência histórica, um magistrado, seja de que instância for, ao se defrontar com os textos normativos para a solução de uma demanda tem adotado basicamente duas posturas: ou o texto normativo é um “parâmetro de decidibilidade” ou é um “pretexto justificador”.

57. Se o magistrado lê o texto normativo como “parâmetro de decidibilidade”, ele decide a causa respeitando o quanto prescrito e escrito no texto, ainda que subjetivamente discorde do que prescrito e escrito. Esse magistrado se coloca abaixo das leis, das instituições e das tradições.

58. Mas se o magistrado lê o texto normativo como mero “pretexto justificador”, ele decide a causa independentemente do quanto prescrito e escrito no texto.

59. Esse magistrado impõe a sua vontade pessoal subjetiva sobre o texto. A decisão já está ou já foi tomada. O texto normativo servirá apenas de um singelo “pretexto justificador”.

60. O magistrado que já tomou a decisão, antes mesmo do julgamento, é capaz de realizar uma verdadeira “tortura argumentativa”, de submeter o texto a um “pau-de-arara hermenêutico”, de modo que o texto normativo confesse tudo o que ele quer que o texto possa confessar. Na “tortura” que lhe é infligida, toda a “carne” do texto se trai, como cantou o menestrel paraibano Zé Ramalho. Esse tipo de magistrado se coloca acima das leis, das instituições e das tradições.

61. É desse tipo de magistrado que Eros Roberto Grau[7], ministro aposentado do STF, disse ter medo, em livro intitulado “Por que tenho medo dos juízes – a interpretação/aplicação do direito e os princípios”.

62. E esse magistrado não é necessariamente mal ou desonesto. Não raras vezes ele é extremamente e perigosamente bem-intencionado. 

63. Assim como é possível que muitos “inquisidores” religiosos talvez acreditassem que estivessem fazendo a coisa certa, e que estavam fazendo o bem e salvando as almas dos torturados, esses magistrados também podem acreditar que estejam agindo corretamente “torturando” o texto normativo, salvando o Direito e a sociedade.

64. E por que não poucos magistrados brasileiros, independentemente da instância judicial, agem dessa maneira?

65. Segundo o mencionado autor Luiz Guilherme Marinoni, o magistrado brasileiro, seja de uma pequena Comarca do interior ou da mais Alta Corte judiciária, é formado da mesma “argamassa cultural” de todos os demais brasileiros. 

66. O magistrado partilha das mesmas virtudes e padece dos mesmos vícios que todos nós sofremos. E, se formos a William Shakespeare, ao demonstrar que tanto o judeu quanto o católico são da mesma espécie e natureza, diremos que o magistrado também ri se acaso sentir cócegas, e sangra se acaso for perfurado. Tem instintos e desejos demasiadamente humanos, como quaisquer outros de nossa imperfeita espécie.

67. E, dentre essas características sócio-culturais, ele pode se revelar um “homem cordial”, na construção de Sérgio Buarque de Holanda. Ou seja, um indivíduo que se impõe, em vez de se submeter. Que se impõe sobre as leis, instituições e tradições, em vez de a elas se submeter. Um indivíduo que age soberanamente, independentemente das leis.

68. Marinoni, com apoio na obra “Raízes do Brasil”, de Sérgio Buarque de Holanda e na obra “A ética protestante e o espírito capitalista”, de Max Weber, vai levantar a hipótese de que o nosso sincretismo religioso, um catolicismo à brasileira, de raízes portuguesas, miscigenado com as religiosidades indígenas e africanas, não concedeu o mesmo rigor e valor à racionalidade, à previsibilidade, à cognoscibilidade, à calculabilidade, à confiabilidade e à segurança, que o protestantismo calvinista deu ao Direito, aos negócios econômicos e às relações sociais.

69. Em nossas raízes culturais e religiosas estariam fincadas as razões do voluntarismo judicial dos magistrados e tribunais brasileiros. Ou seja, julgar e decidir não com respeito às leis e aos precedentes, mas a despeito das leis e dos precedentes.

70. Indaga-se: o que ganha o magistrado que julga em estrita obediência às leis, aos precedentes e às instituições? Ou o que ele perde se eventualmente se comportar como se fosse maior que as leis e que as instituições?

71. Não ganha nem perde nada. É um ato de pura vontade subjetiva. O máximo que pode ocorrer é ter o seu ato judicial ou mantido ou reformado ou cassado. E só.

72. E por que o magistrado brasileiro não tem medo ou receio ou sequer o constrangimento de desrespeitar os precedentes ou as orientações das instâncias superiores?

73. Como já mencionei, o magistrado não sofrerá nenhuma sanção normativa pessoal se decidir as causas sob sua responsabilidade utilizando os textos normativos como mero “pretextos justificadores”, ao invés de “parâmetros de decidibilidade”.

74. O magistrado, seja de que instância for, não tem o direito de utilizar o seu poder para se colocar acima das leis, das instituições e das tradições. Ninguém tem esse direito.

75. Em um Estado que se diz e que se quer Democrático e Republicano, nenhuma pessoa pode se colocar acima das Leis, por mais poderosa e influente que seja, assim como o mais humilde não pode ser deixado aquém e à margem do Direito e da Justiça.

76. Uma outra motivação para esse comportamento de não poucos magistrados, de caráter eminentemente psicológico, fruto de uma interpretação intuitiva que faço, decorre da ausência de admiração dos juízes das instâncias inferiores para os magistrados das instâncias superiores (desembargadores e ministros).

77. Com efeito, a cada ano que passa, os concursos para ingresso nas carreiras da magistratura estão cada vez mais disputados e mais difíceis. A aprovação em um concurso desse porte exige muito esforço, muito estudo, muita dedicação e muito sacrifício. Grande é o mérito de quem resta aprovado em um concurso para a magistratura.

78. Todos sabemos que não apenas os concursos para a magistratura são difíceis. Praticamente todos os concursos públicos no Brasil exigem muita superação.

79. Pois bem, tenho que não poucos desses magistrados aprovados nos dificílimos concursos públicos olham para os desembargadores e para os ministros sem admiração. Olham sem entusiasmo e sem encantamento.

80. E, se não bastassem a atávica tradição “cordial” de se colocar sem medos e receios acima das leis, das instituições e dos precedentes, combinada com a ausência de “temor reverencial” para com os desembargadores e ministros, restam os não poucos péssimos exemplos que dimanam dos tribunais.

81. Com efeito, tenho insistido que esse desprezo pelos precedentes e pela coerência judicial não raras vezes começa pelas instâncias judiciais superiores. Ou seja, os próprios magistrados dos tribunais, especialmente dos Superiores e do próprio Supremo, são os primeiros a transmitirem uma imagem simbólica negativa.

82. Se os ministros não são coerentes nem obedientes aos precedentes dos tribunais, como exigir que os juízes o sejam? A força normativa dos precedentes e das súmulas pressupõe que os próprios tribunais sejam os primeiros guardiães dessa exigência ética.

83. A força normativa é uma força mitológica, ou seja, é uma força simbólica.

84. Cuide-se, por exemplo, que recentemente o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) editou a Resolução n. 202, de 27.10.2015, regulamentando os prazos para a devolução dos pedidos de vista nos processos no âmbito do Poder Judiciário. Qual o erro radical dessa Resolução? Não se aplica ao Supremo Tribunal Federal.

85. Insisto. Quem deve dar os melhores exemplos de prática judicante há de ser o STF. Os ministros do STF devem servir de farol comportamental para todos os magistrados brasileiros. Os ministros do STF devem ser as bússolas éticas dos juízes nacionais, e devem ser julgadores mirados e admirados pela ciência, consciência e experiência.

86. Se os ministros do STF não forem objeto dessa reverência pelos demais magistrados e tribunais brasileiros, de nada adiantarão os esforços normativos que visam emprestar força vinculante e persuasiva para os precedentes e para as súmulas.

87. Ora, se a própria Suprema Corte não é fiel às suas decisões e orientações, se não é obediente aos textos normativos, como exigir dos demais tribunais e magistrados essa fidelidade e obediência? Como exigir coerência e submissão, se quem deveria dar os melhores exemplos tende a ser incoerente e insubmisso?

88. Não bastam as mudanças legislativas. Há de haver mudanças de mentalidades. E essas mudanças de mentalidades não ocorrem com normas legais, mas com uma modificação cultural. E essas modificações culturais ou costumeiras não raras vezes são intergeracionais. Talvez uma nova geração de magistrados seja necessária para uma revolucionária mudança de padrões judiciais.

89. Segundo a narrativa bíblica, os hebreus passaram 40 anos vagando no deserto até alcançarem a Terra Prometida. Nesse deserto abandonaram as velhas mentalidades dos que estavam habituados a ser escravos. Uma nova geração estava convidada a ser livre em Israel.

90. Senhoras e senhores, para alívio do distinto auditório, hora de finalizar para não abusar demasiadamente de vossa generosa paciência.

91. Obviamente sabemos que o novo CPC sozinho não será capaz de melhorar substancialmente a prestação jurisdicional. As leis somente têm poderes mágicos se todos nós acreditarmos nelas. Se compartilharmos desse mesmo mito. E também se acreditarmos na seriedade dos magistrados e dos tribunais.

92. Finalizo citando vez mais Calamandrei:

A missão do juiz é tão elevada em nossa estima, a confiança nele é tão necessária, que as fraquezas humanas, que não se notam ou se perdoam em qualquer outra ordem de funcionários públicos, parecem inconcebíveis num magistrado.

93. Que os juízes e tribunais saibam respeitar as leis, as instituições e as tradições. E que todos nós, advogados, professores, estudantes estejamos permanentemente vigilantes.  MUITO OBRIGADO!!!


Notas

[1] CALAMANDREI, Piero. Eles, os juízes, vistos por um advogado. Tradução de Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2000, pp. 257-258.

[2] HOBBES, Thomas. Leviatã – ou matéria, forma e poder de um Estado eclesiástico e civil. Tradução de Pietro Nasseti. São Paulo: Martin Claret, 2001.

[3] SCHMITT, Carl. Teologia política. Tradução de Elisete Antoniuk. Belo Horizonte: DelRey, 2006.

[4] OLIVECRONA, Karl. Linguagem jurídica e realidade. Tradução de Edson Bini. São Paulo: Quartier Latin, 2005.

[5] HARARI, Yuval Noah. Sapiens – uma breve história da humanidade. 3ª ed. Tradução de Janaína Marcoantonio. Porto Alegre: L&PM, 2015.

[6] MARINONI, Luiz Guilherme. A ética dos precedentes – justificativa do novo CPC. São Paulo: RT, 2014.

[7] GRAU, Eros Roberto. Por que tenho medo dos juízes – a interpretação/aplicação do direito e os princípios. 6ª ed. São Paulo: Malheiros, 2013.

Sobre o autor
Luís Carlos Martins Alves Jr.

LUIS CARLOS é piauiense de Campo Maior; bacharel em Direito, Universidade Federal do Piauí - UFPI; orador da Turma "Sexagenária" - Prof. Antônio Martins Filho; doutor em Direito Constitucional, Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG; professor de Direito Constitucional; procurador da Fazenda Nacional; e procurador-geral da Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico - ANA. Exerceu as seguintes funções públicas: assessor-técnico da procuradora-geral do Estado de Minas Gerais; advogado-geral da União adjunto; assessor especial da Subchefia para Assuntos Jurídicos da Presidência da República; chefe-de-gabinete do ministro de Estado dos Direitos Humanos; secretário nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente; e subchefe-adjunto de Assuntos Parlamentares da Presidência da República. Na iniciativa privada foi advogado-chefe do escritório de Brasília da firma Gaia, Silva, Rolim & Associados – Advocacia e Consultoria Jurídica e consultor jurídico da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil - CNBB. No plano acadêmico, foi professor de direito constitucional do curso de Administração Pública da Escola de Governo do Estado de Minas Gerais na Fundação João Pinheiro e dos cursos de Direito da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais - PUC/MG, da Universidade Católica de Brasília - UCB do Instituto de Ensino Superior de Brasília - IESB, do Centro Universitário de Anápolis - UNIEVANGÉLICA, do Centro Universitário de Brasília - CEUB e do Centro Universitário do Distrito Federal - UDF. É autor dos livros "O Supremo Tribunal Federal nas Constituições Brasileiras", "Memória Jurisprudencial - Ministro Evandro Lins", "Direitos Constitucionais Fundamentais", "Direito Constitucional Fazendário", "Constituição, Política & Retórica"; "Tributo, Direito & Retórica"; e "Lições de Direito Constitucional".

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ALVES JR., Luís Carlos Martins. A tutela dos direitos fundamentais e a força normativa dos precedentes e das súmulas.: Perspectivas e expectativas do novo CPC. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 23, n. 5390, 4 abr. 2018. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/64970. Acesso em: 22 dez. 2024.

Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!