“Somente os livres, pessoas, povos, Estado e seus Poderes, podem ser fiéis às promessas feitas, às normas editadas, podem confiar e se responsabilizar pela confiança gerada e podem fazer justiça. O caminho do Direito e da Ética, como caminho da virtude, é longo. Há muito ainda a percorrer.”
(Misabel Derzi)[1]
No ano de 2016 passou a viger o novo Código de Processo Civil (Lei 13.105/2015). E nesse ano o Código Tributário Nacional (Lei 5.172/1966) completará 50 anos de vigência. Neste breve texto, que serve de singela homenagem à professora Misabel Derzi, de quem fui aluno e permaneço aprendiz, pretendo tecer algumas considerações e compartilhar algumas reflexões sobre as perspectivas e as expectativas do contencioso tributário nos tribunais, tendo em vista as inovações legislativas processuais, especialmente no tocante à questão da força normativa dos precedentes judiciais. Verificaremos se os precedentes judiciais poderão vir a se tornar verdadeiros “mitos normativos”.
Segundo Yuval Harari[2], o que permitiu que nós, membros pertencentes à espécie dos homo sapiens sapiens, nos tornássemos a espécie dominante deste orbe terrestre foi a incrível capacidade de criarmos uma rede de cooperação graças aos nossos “mitos normativos”. E os “mitos” consistem no compartilhamento de crenças sobre coisas inexistentes no mundo natural, apenas no mundo virtual ou fictício. E dentre os “mitos” com maior força “normativa” estão os “morais”, os “religiosos” e os “jurídicos”.
Ao longo deste texto, também será percebido, sem grandes esforços, que muitos dos atuais problemas normativos processuais não são novos e que não raras vezes são atávicas algumas equivocadas práticas judicantes. Além disso, verificaremos que as soluções não dependem apenas da boa vontade legislativa ou dos esforços solitários dos magistrados ou dos advogados, ou das contribuições doutrinárias da academia jurídica brasileira. Há uma arraigada mentalidade cultural (portanto normativamente coletiva) que justifica o porquê de certos preceitos legislativos e de determinadas práticas normativas.
Recorde-se o que escreveu, no ano de 1862, o juiz de direito José Antônio de Magalhães Castro:
“Não é meu propósito demonstrar a necessidade da reta administração da justiça; todos a querem e sabem todos que sem justiça distributiva sofrem muito os Estados em seus alicerces, se não levam existência ignominiosa: ninguém o ignora, todos sabem que sendo a lei única e sempre a mesma para todos os casos que nela se contêm, também a justiça deve ser uniforme; e nem a justiça preencheria o seu fim sem esta uniformidade tão necessária, que importa a mesma justiça.
Quando com as mesmas leis variam as decisões em casos idênticos, agrava-se o mal a ponto de ser melhor viver sem lei alguma.
Estamos nestas circunstâncias desanimadoras.
Interpreta-se a lei como cada um quer; não há limite para a liberdade de julgar, e desta liberdade, tão ampla pode abusar, sem receio algum, desde o juiz de paz até o ministro da Justiça, e este, talvez, com mais algum receio”[3]
Na mesma senda a judiciosa advertência que no ano 1850 fez José Antônio Pimenta Bueno (o Marquês de São Vicente), o principal jurista brasileiro do século XIX e um dos maiores juristas de toda a história do Direito escrito em língua portuguesa:
“A parte da legislação que estabelece as formas porque devem tratar-se as causas e ações cíveis é a que denomina-se Processo Civil. Seu estudo é árido e fatigante, e sua teoria entre nós muito pouco cultivada. Nossos praxistas, na quase totalidade, limitam-se a indicar os resumidos, e algumas vezes obscuros e incompletos preceitos das ordenações, os casos julgados, estilos ou opiniões, algumas delas controversas, sem desenvolver os princípios elementares desta parte da ciência jurídica, e muito menos as razões fundamentais de suas diversas disposições.
Um tal método de estudo, além de degradar a importância da matéria, assassina a inteligência, e tende mui positiva e diretamente a embrutece-la: é fazer jurisprudência relativa a este transcendente ramo dos interesses públicos um verdadeiro ininteligível hieróglifo.” [4]
Obviamente sabemos que o novo CPC sozinho não será capaz de melhorar substancialmente a prestação jurisdicional. As leis somente têm poderes mágicos se todos nós acreditarmos nelas. Se compartilharmos desse mesmo mito. E também se acreditarmos na seriedade dos magistrados e dos tribunais.
Com efeito, há inquestionável elemento de fé e de crença nas relações dos cidadãos com os seus magistrados. Piero Calamandrei[5] assertou:
Estou cada vez mais convencido de que entre o rito judiciário e o rito religioso existem parentescos históricos muito mais próximos do que a igualdade da palavra indica. Quem fizesse um estudo comparativo do cerimonial litúrgico e das formas processuais perceberia na história certo paralelismo de evolução. Quase se poderia dizer que, nos tribunais e nas igrejas, a religião degenerou em conformismo.
A sentença era, originariamente, um ato sobre-humano, o juízo de Deus: as defesas eram preces. Mas com o passar dos séculos o espírito voltou para o céu, e na terra só ficaram as formas exteriores de um culto que ninguém mais acredita. Ao assistirmos ao cansaço distraído de certas audiências, somos levados a pensar na indiferença com que tanta gente boa, nos feriados religiosos, continua indo à missa por força do hábito e para ostentar em público uma fé que já não tem no coração.
Talvez as profundas diferenças que se notam entre a simplicidade e a lealdade dos juízes nos países anglo-saxões e o complicado e dispendioso formalismo do nosso processo tenham seu fundamento numa resistência diferente do espírito religioso. No procedimento judiciário inglês, tão rápido e leal, traduziu-se a Reforma; o nosso ainda é um procedimento católico romano.
Também nas cerimônias do processo se nota certa diferença entre crentes e carolas, entre religiosos e conformistas, entre a humilde fé na justiça e a faustosa carolice judiciária.
A judiciosa e longa, porém indispensável, advertência de Piero Calamandrei, parte da premissa das similitudes entre o fenômeno jurídico e o religioso. Por consequência, a cultura jurídica de uma Nação tem estreita ligação com a sua cultura religiosa. Karl Olivecrona[6] afirma que a linguagem jurídica origina-se da linguagem da magia. Cuide-se que Thomas Hobbes[7], o direto precursor do moderno positivismo jurídico, segundo o autorizado magistério de Norberto Bobbio[8], no sentido de que o Direito e a Justiça consistem na decisão vencedora de quem possui o poder estatal ou institucionalizado, lançou mão da figura mitológica do “Leviatã”, extraída das “Sagradas Escrituras”, para personificar o Estado. A Religião servindo como estratégia normativa e simbólica justificadora do Poder, da Política e do Direito. Na mesma toada o pensamento de Carl Schmitt[9]:
Todos os conceitos concisos da teoria do Estado moderna são conceitos teológicos secularizados. Não somente de acordo com seu desenvolvimento histórico, porque ele foi transferido da teologia para a teoria do Estado, à medida que o Deus onipotente tornou-se o legislador onipotente, mas, também, na sua estrutura sistemática, cujo conhecimento é necessário para uma análise sociológica desses conceitos. O estado de exceção tem significado análogo para a jurisprudência, como o milagre para a teologia...
À luz dessas ligações entre o Direito e a Religião, aceita-se a premissa de que a “força normativa” consiste em uma “força mítica” ou quiçá “mágica”. Isso porque o Direito não existe na natureza. Ele – o Direito - não passa de uma criação da mente humana, assim como os “duendes”, os “elfos”, os “unicórnios”, os “sátiros”, os “dragões” etc. Talvez essas figuras do imaginário sejam até mais concretas do que o próprio Direito. Com efeito, se fecharmos os olhos e pensarmos nesses aludidos “seres” extraídos de narrativas mitológicas, somos capazes de lhes concretizar mentalmente. Mas quase nenhum de nós tem a capacidade de imaginar o Direito. Todos sabem que um “sátiro” tem os pés de bode; ou que o “unicórnio” consiste em um cavalo com um chifre na cabeça. Por mais absurdos e por mais inexistentes que sejam, somos capazes de imaginar e de representar esses “seres” mitológicos. Mas provavelmente nenhum de nós consegue materializar em sua mente o fenômeno jurídico.
Malgrado esse indiscutível aspecto de não realidade natural concreta, nenhum de nós duvida da existência do Direito. E nenhum de nós duvida da sua força normativa. Se o Direito não existe na natureza e ainda assim consegue influenciar as nossas condutas e comportamentos, isso significa que ele tem poderes mágicos, extranaturais (porque fora da natureza real). E se o Direito não existe concretamente na natureza, se não pode ser materializado, pensado, desenhado, iconografado, e ainda assim ele exerce indiscutível influência em nossas vidas concretas, é porque ele é uma ficção criada pela mente humana. O Direito é uma virtualidade, assim como todos os padrões normativos culturais (Religião, Moral, Ética...).[10]
É fato que, no mundo natural, tudo o que for possível de acontecer, acontece. O único limite à natureza é a própria natureza. Nesse mundo da natureza factual, tudo aquilo que se “quer” e que se “pode” tem condições de efetivamente ocorrer. Já no mundo dos “mitos”, os limites não são naturais, são “normativos”. No reino da natureza o “incesto” pode acontecer. Mas no reino de nossa mitologia moral o “incesto” é um tabu, uma conduta que não deve ocorrer. No reino da natureza, Zeus pode não ter existido, mas na mitologia “religiosa” dos antigos gregos, Zeus foi objeto de culto e adoração. O reino da natureza é o campo do exercício das possibilidades, enquanto que o reino dos “mitos’” é o campo do exercício das autorizações normativas, decorrentes das “realidades imaginadas” por força de “crenças intersubjetivamente compartilhadas”. [11]
Tenha-se, por exemplo, as instituições como bons modelos de realidades mitológicas. Imaginemos uma instituição de ensino: uma universidade. Se acaso todos os seus prédios físicos desaparecessem, ela deixaria de existir? Se acaso todos os seus professores fossem substituídos, ela deixaria de existir? Ou todos os seus alunos? Ou se mudassem a sua logomarca? Quantas pessoas cooperaram, estão cooperando e ainda vão cooperar entre si, tendo como motivação uma determinada instituição? O que torna uma instituição universitária como uma “realidade mitológica” consiste na “crença intersubjetivamente compartilhada” que induz à cooperação entre a sua específica comunidade que gravita em seu redor ou em seu interior (alunos, professores, funcionários, administradores, colaboradores) ou em seu exterior, pessoas que sabem que existe objetivamente uma determinada universidade. [12]
Pois bem, o Direito tem força normativa porque é um “mito”, ou seja, um conjunto de crenças intersubjetivamente compartilhadas: uma realidade imaginada; um instrumento que viabiliza a cooperação social. Por isso o Direito consegue influenciar os comportamentos humanos. Eis o aspecto mágico da normatividade jurídica. A força do “Mito” que é o Direito pressupõe que tanto os profissionais do Direito (magistrados, advogados, promotores, professores etc.) quanto as pessoas comuns (não versadas nas “ciências jurídicas”) acreditem no império de sua força normativa, como realidade palpável. Sem essa crença mitológica, o Direito se tornaria instrumento social inútil. No reino da natureza, as coisas inúteis ou que não conseguem se adaptar ao meio ambiente deixam de existir. O mesmo sucede com os “mitos” que deixam de ter utilidade. Eles deixam de existir. O Direito deve ser socialmente útil, deve ser um instrumento viabilizador da cooperação humana, se quiser continuar existindo. [13]
Alguns mitos normativos (assim como os deuses e as crenças) são mais fortes do que outros. Tenha-se, por exemplo, o mito dos “direitos fundamentais ou dos direitos humanos”. Esse mito foi uma genial criação da mente humana: a crença de que todo indivíduo, pelo simples fato de ser humano ou de ter a forma humana ou de apenas estar no ventre de uma mulher, é dotado de prerrogativas inalienáveis, especialmente as de existir, de viver, de ser livre, e de ser tratado com respeito e consideração. O mito de que pelo simples fato de ser membro da espécie humana é tão digno e tão igual a qualquer outro ser humano. Talvez seja uma das maiores conquistas evolutivas e mitológicas da humanidade. [14]
A rigor, tenha-se que essa é uma crença mitológica recente. Com efeito, na longa história da humanidade sapiens, com os seus quase 1 milhão de anos, e somente uns 100 mil anos como espécie dominante, e com o estabelecimento das primeiras civilizações em torno dos últimos 10 mil anos, somente há pouco mais de 250 anos que essa crença passou a ser intersubjetivamente compartilhada.[15] Nada obstante sejam os “direitos fundamentais da pessoa humana” um “mito jovem”, há de ser a crença ideológica vencedora, apesar dos pesares. Mas isso suscita algumas indagações: será que a prescrição nos textos normativos, nas Constituições, nos Tratados, nas Leis, dos direitos fundamentais tem sido suficiente e bastante para a sua real concretização universal para todo e qualquer ser humano? A resposta é negativa. Não são poucas as pessoas humanas que ainda estão muito longe de vivenciarem plenamente os seus direitos fundamentais, de terem asseguradas as inalienáveis prerrogativas de viver e de ser livre, de ser tratado com respeito e com consideração.[16]
Os mitos normativos tendem a se consolidar lentamente, sobretudo quando esses mitos são “antinaturais”, são “civilizatórios” porque objetivam domesticar os instintos humanos (e de toda a humanidade). Essa tarefa não é fácil, quiçá impossível.
O mito normativo que cuidaremos neste texto consiste na “força normativa dos precedentes e das súmulas”. Será que o novo CPC será suficiente e bastante para tornar essa virtualidade em realidade? Tenho que os “precedentes e as súmulas” somente terão “força normativa” se eles se tornarem “mitos normativos”. Se eles tiverem a capacidade mágica de moldar as condutas e os comportamentos dos profissionais do direito, especialmente dos magistrados e tribunais. Ou seja, “a força normativa dos precedentes e das súmulas” pressupõe que haja uma crença intersubjetivamente compartilhada de sua utilidade social, de modo que todos os envolvidos enxerguem esses institutos processuais como instrumentos viabilizadores da cooperação humana, especificamente, da cooperação entre os profissionais do Direito (magistrados, advogados, promotores, professores etc.).
O sucesso do novo CPC e da própria estrutura normativa do Direito brasileiro pressupõe quais respostas estamos dispostos a dar a essas indagações:
-Têm os magistrados e tribunais o direito de julgar as causas e as controvérsias contra o sentido razoável atribuível aos textos normativos?
-Têm os magistrados e tribunais o direito de julgar as causas e controvérsias contra a razoável compreensão das provas dos fatos segundo o contido nos autos?
-Têm os magistrados e tribunais o direito de julgar contra as próprias orientações jurisprudenciais predominantes ou das instâncias superiores?
Sem maiores dificuldades, as respostas a essas três indagações não oferecem muitas dúvidas. Os magistrados e os advogados devem se comportar adequadamente e devem compreender os novos tempos e a nova realidade da reivindicante sociedade de contribuintes brasileiros. Com efeito, o cidadão brasileiro paga muito caro e tem o direito de receber uma adequada prestação jurisdicional dos magistrados e tribunais. Ou o Direito dialoga com sinceridade com a “sociedade”, servindo de parâmetro confiável de solução dos problemas reais dos cidadãos, ou a “sociedade” irá desprezar o Direito ante o seu irrealismo ou excessivo idealismo.
Pois bem. Neste novo Código de Processo Civil a matéria recursal está contida no Livro III, entre os artigos 926 e 1.044. O mencionado Livro III tem o seguinte rótulo: “Dos Processos nos Tribunais e dos Meios de Impugnação das Decisões Judiciais”, que é dividido em dois Títulos, o I denominado “Da Ordem dos Processos e dos Processos de Competência Originária dos Tribunais”, e o II denominado “Dos Recursos”. A regulação dos recursos para o STF e para o STJ consta no Capítulo VI desse aludido Título II, entre os artigos 1.027 e 1.044, nos quais se disciplinam o recurso extraordinário, o recurso especial, os agravos e os embargos de divergência em recurso extraordinário e em recurso especial.
O artigo 926 do Novo CPC preceitua um truísmo ululante: que os tribunais devem uniformizar sua jurisprudência e mantê-la estável, íntegra e coerente. O mencionado preceito é de uma obviedade constrangedora. Não apenas os tribunais devem ser coerentes, mas todos os magistrados. É o mínimo que se espera dos membros e órgãos do Poder Judiciário. Já que a ideia é preceituar o óbvio, essa disposição deveria ser acompanhada do seguinte enunciado: os magistrados e tribunais devem julgar em conformidade com as leis.
Nada obstante essa atávica advertência, o que se pode extrair desse comando normativo contido no caput do art. 926 do NCPC? Que os magistrados e tribunais, ou seja, que os membros e órgãos do Poder Judiciário devem ter compromisso com a certeza, estabilidade e segurança do Direito. Nessa toada, no citado artigo 926 constam os parágrafos 1º e 2º que estimulam e disciplinam a edição de enunciados de súmulas correspondentes a sua respectiva jurisprudência dominante e que essas súmulas devem ser editadas com atenção às circunstâncias fáticas dos precedentes que a sua criação. Esse comando normativo, como soe acontecer com qualquer mandamento legal, pode ser solenemente desvirtuado.[17]
No art. 927 está determinado que os juízes e tribunais observarão:
I - as decisões do Supremo Tribunal Federal em controle concentrado de constitucionalidade;
II - os enunciados de súmula vinculante;
III - os acórdãos em incidente de assunção de competência ou de resolução de demandas repetitivas e em julgamento de recursos extraordinário e especial repetitivos;
IV – os enunciados das súmulas do Supremo Tribunal em matéria constitucional e do Superior Tribunal de Justiça em matéria infraconstitucional;
V – a orientação do plenário ou do órgão especial aos quais estiverem vinculados.
Esse dispositivo deve ser interpretado como decorrência inevitável do comando normativo contido no art. 926. Os magistrados e tribunais, de quaisquer instâncias, devem ser leais aos seus próprios e respectivos precedentes judiciais e/ou aos precedentes de instâncias superiores.
Em nosso País, infelizmente viceja de longa data uma histórica e permanente desconfiança em relação aos magistrados e tribunais. E quais as razões para esse atávico e permanente comportamento dos magistrados e tribunais brasileiros? Retorno ao tema das estreitas ligações entre as nossas “crenças religiosas” e as nossas “crenças jurídicas”. Muito de nossos “hábitos” e “comportamentos” decorrem de nossos “mitos” normativos, basicamente os “morais”, os “religiosos” e os “jurídicos”, que auxiliam em nossas condutas e comportamentos éticos, especialmente os relativos aos direitos e deveres fundamentais. Evidentemente, não devemos desprezar as inclinações naturais, as psicológicas, as instintivas, e muito menos as nossas necessidades de sobrevivência, como as econômicas, que transformam o ser humano em uma entidade complexa.
Pois bem, nessa linha de compreensão, Luiz Guilherme Marinoni[18], em feliz intuição, foi buscar nos livros clássicos que interpretaram o “Brasil” e os “brasileiros” a motivação do comportamento dos magistrados brasileiros, de quaisquer instâncias ou tribunais, que induz à permanente desconfiança que temos em relação aos órgãos do Poder Judiciário, especialmente das instâncias ordinárias. Segundo esse mencionado autor, o magistrado brasileiro não se sente constrangido, nem moral nem legalmente, a se submeter às leis e aos precedentes judiciais.
Com efeito, quando um magistrado tem uma controvérsia jurídica para decidir, ele se vê diante de uma situação quadridimensional ou tetradimensional:
a) primeira: a dimensão das circunstâncias fáticas;
b) segunda: a dimensão dos valores sociais e intersubjetivamente compartilhados;
c) terceira: a dimensão de sua subjetividade, de sua ciência, experiência e consciência;
d) e a quarta: dimensão dos textos normativos.
A dimensão fática é objetiva e complexa, sujeita às narrativas convincentes e aceitáveis. A dimensão dos valores é intersubjetiva, mas sujeita às variações do tempo e do espaço. A dimensão subjetiva do intérprete/aplicador também está sujeita às variações do tempo e do espaço. Resta a mais simples das dimensões, a dos textos normativos, que se presta como instrumento redutor de complexidades, inclusive daquelas decorrentes das outras três dimensões.
O papel do texto normativo, nas controvérsias jurídicas, consiste em ser um instrumento de alívio para as dimensões intersubjetivas e subjetivas diante da narrativa sobre a “verdade” dos fatos visando à solução do problema normativo. O texto deve facilitar a vida de quem decide (redutor de complexidade). Pois bem, à luz de nossa experiência histórica, um magistrado, seja de que instância for, ao se defrontar com os textos normativos para a solução de uma demanda tem adotado basicamente duas posturas: ou o texto normativo é um “parâmetro de decidibilidade” ou é um “pretexto justificador”.
Se o magistrado lê o texto normativo como “parâmetro de decidibilidade”, ele decide a causa respeitando o quanto prescrito e escrito no texto, ainda que subjetivamente discorde do que prescrito e escrito. Esse magistrado se coloca abaixo das leis, das instituições e das tradições.
Mas se o magistrado lê o texto normativo como mero “pretexto justificador”, ele decide a causa independentemente do quanto prescrito e escrito no texto normativo. Esse magistrado impõe a sua vontade pessoal subjetiva sobre o texto. A decisão já está ou já foi tomada. O texto normativo servirá apenas de um singelo “pretexto justificador”. O magistrado que já tomou a decisão, antes mesmo do julgamento, é capaz de realizar uma verdadeira “tortura argumentativa”, de submeter o texto a um “pau-de-arara hermenêutico”, de modo que o texto normativo confesse tudo o que ele quer que o texto possa confessar. Na “tortura” que lhe é infligida, toda a “carne” do texto se trai, como cantou o menestrel paraibano Zé Ramalho. Esse tipo de magistrado se coloca acima das leis, das instituições e das tradições.
É desse tipo de magistrado que Eros Roberto Grau[19], ministro aposentado do STF, disse ter medo, em livro intitulado “Por que tenho medo dos juízes – a interpretação/aplicação do direito e os princípios”. E esse magistrado não é necessariamente mal ou desonesto. Não raras vezes ele é extremamente e perigosamente bem-intencionado. Assim como é possível que muitos “inquisidores” religiosos talvez acreditassem que estivessem fazendo a coisa certa, e que estavam fazendo o bem e salvando as almas dos torturados, esses magistrados também podem acreditar que estejam agindo corretamente “torturando” o texto normativo, salvando o Direito e a sociedade.
E por que não poucos magistrados brasileiros, independentemente da instância judicial, agem dessa maneira? Segundo o mencionado autor Luiz Guilherme Marinoni, o magistrado brasileiro, seja de uma pequena Comarca do interior ou da mais Alta Corte judiciária, é formado da mesma “argamassa cultural” de todos os demais brasileiros. O magistrado partilha das mesmas virtudes e padece dos mesmos vícios que todos nós sofremos. E, se formos a William Shakespeare, ao demonstrar que tanto o judeu quanto o católico são da mesma espécie e natureza, diremos que o magistrado também ri se acaso sentir cócegas, e sangra se acaso for perfurado. Tem instintos e desejos demasiadamente humanos, como quaisquer outros de nossa imperfeita espécie.
E, dentre essas características sócio-culturais, ele pode se revelar um “homem cordial”, na construção de Sérgio Buarque de Holanda. Ou seja, um indivíduo que se impõe, em vez de se submeter. Que se impõe sobre as leis, instituições e tradições, em vez de a elas se submeter. Um indivíduo que age soberanamente, independentemente das leis. Marinoni, com apoio na obra “Raízes do Brasil”, de Sérgio Buarque de Holanda e na obra “A ética protestante e o espírito capitalista”, de Max Weber, vai levantar a hipótese de que o nosso sincretismo religioso, um catolicismo à brasileira, de raízes portuguesas, miscigenado com as religiosidades indígenas e africanas, não concedeu o mesmo rigor e valor à racionalidade, à previsibilidade, à cognoscibilidade, à calculabilidade, à confiabilidade e à segurança, que o protestantismo calvinista deu ao Direito, aos negócios econômicos e às relações sociais. Em nossas raízes culturais e religiosas estariam fincadas as razões do voluntarismo judicial dos magistrados e tribunais brasileiros. Ou seja, julgar e decidir não com respeito às leis e aos precedentes, mas a despeito das leis e dos precedentes.
Indaga-se: o que ganha o magistrado que julga em estrita obediência às leis, aos precedentes e às instituições? Ou o que ele perde se eventualmente se comportar como se fosse maior que as leis e que as instituições? Não ganha nem perde nada. É um ato de pura vontade subjetiva. O máximo que pode ocorrer é ter o seu ato judicial ou mantido ou reformado ou cassado. E só. E por que o magistrado brasileiro não tem medo ou receio ou sequer o constrangimento de desrespeitar os precedentes ou as orientações das instâncias superiores? O magistrado não sofrerá nenhuma sanção normativa pessoal se decidir as causas sob sua responsabilidade utilizando os textos normativos como mero “pretextos justificadores”, ao invés de “parâmetros de decidibilidade”.
O magistrado, seja de que instância for, não tem o direito de utilizar o seu poder para se colocar acima das leis, das instituições e das tradições. Ninguém tem esse direito. Em um Estado que se diz e que se quer Democrático e Republicano, nenhuma pessoa pode se colocar acima das Leis, por mais poderosa e influente que seja, assim como o mais humilde não pode ser deixado aquém e à margem do Direito e da Justiça.
E, se não bastasse a tradição “cordial” de se colocar sem medos e receios acima das leis, das instituições e dos precedentes, combinada com a ausência de “temor reverencial” para com os desembargadores e ministros, restam os não poucos péssimos exemplos que dimanam dos tribunais. Esse desprezo pelos precedentes e pela coerência judicial não raras vezes começa pelas instâncias judiciais superiores. Ou seja, os próprios magistrados dos tribunais, especialmente dos Superiores e do próprio Supremo, são os primeiros a transmitirem uma imagem simbólica negativa. [20]
Se os ministros não são coerentes nem obedientes aos precedentes dos tribunais, como exigir que os juízes o sejam? A força normativa dos precedentes e das súmulas pressupõe que os próprios tribunais sejam os primeiros guardiães dessa exigência ética. A força normativa é uma força mitológica, ou seja, é uma força simbólica. Os melhores exemplos de prática judicante devem vir do STF. Os ministros do STF devem servir de farol comportamental para todos os magistrados brasileiros. Os ministros do STF devem ser as bússolas éticas dos juízes nacionais, e devem ser julgadores mirados e admirados pela ciência, consciência e experiência. [21]
Se os ministros do STF não forem objeto dessa reverência pelos demais magistrados e tribunais brasileiros, de nada adiantarão os esforços normativos que visam emprestar força vinculante e persuasiva para os precedentes e para as súmulas. Ora, se a própria Suprema Corte não é fiel às suas decisões e orientações, se não é obediente aos textos normativos, como exigir dos demais tribunais e magistrados essa fidelidade e obediência? Como exigir coerência e submissão, se quem deveria dar os melhores exemplos tende a ser incoerente e insubmisso? Não bastam as mudanças legislativas. Há de haver mudanças de mentalidades. E essas mudanças de mentalidades não ocorrem com normas legais, mas com uma modificação cultural. E essas modificações culturais ou costumeiras não raras vezes são intergeracionais. Talvez uma nova geração de magistrados seja necessária para uma revolucionária mudança de padrões judiciais. [22]
Nada obstante, continuemos na análise dos pertinentes preceitos do novo CPC. Ainda no artigo 927, constam 5 parágrafos relativos ao tema dessa coerência e regularidade dos precedentes judiciais, em homenagem à certeza do direito e à segurança jurídica, que visam criar um novo padrão comportamental dos magistrados.
Desses mencionados 5 parágrafos do referido artigo 927 pede-se licença para recordar três deles: o 2º, o 3º e o 4º que têm as seguintes enunciações:
§2º A alteração de tese jurídica adotada em enunciado de súmula ou em julgamento de casos repetitivos poderá ser precedida de audiências públicas e da participação de pessoas, órgãos ou entidades que possam contribuir para a rediscussão da tese;
§3º Na hipótese de alteração de jurisprudência dominante do Supremo Tribunal Federal e dos tribunais superiores ou daquela oriunda de julgamento de casos repetitivos, pode haver modulação dos efeitos da alteração no interesse social e no da segurança jurídica;
§4º A modificação de enunciado de súmula, de jurisprudência pacificada ou de tese adotada em julgamento de casos repetitivos observará a necessidade de fundamentação adequada e específica, considerando os princípios da segurança jurídica, da proteção da confiança e da isonomia.
Vê-se que o novo CPC pretende exorcizar o “espectro” da instabilidade jurisprudencial. Mas esse “fantasma” não assombra apenas o STF e os tribunais superiores. A rigor, todo magistrado e tribunal deve ter compromisso com a estabilidade jurisprudencial.[23] O tempo é um personagem que exerce papel dramático e às vezes desesperador na pacificação das controvérsias judiciais. [24] E quando se compara o “tempo” gasto pelo Poder Judiciário na solução definitiva das controvérsias com o tempo gasto por outras áreas da ciência e do conhecimento, os resultados são preocupantes, especialmente se imaginarmos o impacto dessa demora para o aumento do “custo” Brasil. Temos de indagar: quais as dificuldades reais para a solução desses conflitos normativos? Será que os problemas jurídicos são tão complexos assim? [25]
O mundo jurídico, e em especial os tribunais, deve se adaptar à realidade, ou a realidade vai atropelar o Direito e a Justiça (os Tribunais e as Funções Essenciais à Justiça). Pois não há nada que justifique a demora absurda para a solução das controvérsias normativas e dos conflitos interpretativos judiciais. Como premissa para facilitar e dar maior rapidez e agilidade aos julgamentos deveria se estabelecer o seguinte:
a) a Lei só é inconstitucional se for chapadamente contrária ao enunciado prescrito no texto normativo da Constituição;
b) a decisão judicial (sentença ou acórdão) só deve ser modificada se for flagrante e acintosamente contrária ao texto normativo da Lei ou da Constituição, ou se a interpretação judicial for absurdamente teratológica, e contrária à letra e sentido dos precedentes judiciais das instâncias superiores;
c) o magistrado que, sem um justo e convincente motivo, julgar contra a letra dos textos normativos (Constituição, Leis, Tratados, Contratos, Regulamentos etc.), contra as provas evidentes nos autos e contra os precedentes judiciais, deverá sofrer sanções administrativas.
Conquanto draconianas, essas medidas seriam um primeiro passo para resgatar a credibilidade do Direito e da Justiça no Brasil. Mas voltemos ao novo CPC e as exigências da celeridade processual. O ministro Luís Roberto Barroso[26] propôs que cada um dos ministros do STF escolhesse 10 recursos com repercussão geral para relatar e julgar, por ano. Isso levaria a 110 teses constitucionais por ano. 1.100 teses por década. Se o STJ acolhesse essa proposição metodológica, seriam 330 teses infraconstitucionais por ano, 3.300 teses por década. Mas os nossos Tribunais, infelizmente, produzem poucas teses jurídicas, conquanto julguem muito. Há muita decisão, mas pouca deliberação. Há muitos julgamentos sobre dispositivos jurídicos, mas poucas teses jurídicas. [27]
Quanto aos específicos recursos destinados para o STF e para o STJ, o novo Código resgata o antigo caráter de objetividade dos recursos excepcionais, no caso o extraordinário para o STF e o especial para o STJ. O que se pretende dizer com isso? A tão propalada novidade de objetivação desses recursos excepcionais não tem nada de novo. A rigor, tanto no RE quanto no REsp pouca relevância há nos interesses subjetivos das partes. E isso está nas raízes processuais desses recursos.
Analisemos a Constituição de 1824. O órgão de cúpula do Poder Judicial intitulava-se Supremo Tribunal de Justiça (arts. 151 a 164) e, no ponto que interessa, tinha a competência para julgar os “recursos de revista”. O já recordado Marquês de São Vicente, no melhor livro de direito constitucional escrito em língua portuguesa intitulado Direito público brasileiro e análise da Constituição do Império, chamava esse aludido recurso de extraordinário, pois somente deveria ser manejado em circunstâncias graves e excepcionais nas hipóteses em que a decisão de última instância tivesse cometido violação frontal à Lei.
Entendia esse citado autor que o principal interesse do extraordinário recurso de revista era a defesa da Lei, e indiretamente a satisfação dos interesses subjetivos das partes, visto que competia ao STJ “imperial” a uniformidade da jurisprudência e a fiel aplicação das Leis do Império. Essa perspectiva excepcional e objetiva do recurso de revista na Constituição imperial de 1824 influenciou a Constituição republicana de 1891 em relação àquele recurso que também deveria ser de uso extraordinário. Cuide-se que somente com a Lei n. 221, 1894 o termo “extraordinário” se acoplaria ao termo “recurso”. A Constituição de 1891 transformou o STJ (Supremo Tribunal de Justiça) do Império em STF (Supremo Tribunal Federal) da República, competindo-lhe velar pela guarda da Lei federal e da Constituição da República.
Segundo Pedro Lessa[28], ministro do STF de 1907 a 1921, o recurso extraordinário teria como finalidade manter a autoridade da Constituição e das leis substantivas e tratados federais em todo o território nacional. Ou seja, nas raízes do RE e, posteriormente do REsp, estavam fincados o propósito de serem recursos objetivos, e não recursos subjetivos. No RE se aprecia objetivamente a eventual violação de preceito constitucional. No REsp se deve apreciar objetivamente a eventual violação de preceito legal federal.
Poucas coisas são novidades. Não há nada de novo debaixo do sol, como assinalado no Eclesiastes. Tenha-se que na Constituição de 1934, no art. 113, item 35, no capítulo que cuidava dos “Direitos e Garantias Individuais”, estava disposto que:
“A lei assegurará o rápido andamento dos processos nas repartições públicas...”.
Viajemos 70 anos no tempo, chegaremos em 2004 e veremos que a EC 45/2004, incluiu o inciso 78 (LXXVIII) com o seguinte teor:
“a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação”.
No novo CPC há uma especial atenção com a celeridade e com a efetividade da jurisdição, que perpassa por sua uniformidade e estabilidade, princípios indispensáveis par a consolidação de um Estado que se diz e que se quer de Democrático e de Direito.
Todo texto normativo é pretensioso. E os mais novos tendem a ser os mais ousados. E o novo CPC/2015 é um texto muito ousado e bastante pretensioso, pois estabelece um novo standard ético para os magistrados brasileiros. Mas, afinal, o que vem a ser um texto normativo processual como o novo CPC? Respondo: um apelo desesperado para que os magistrados não utilizem, de modo arbitrário, o seu poder de julgar. Que os magistrados, desde as mais humildes Comarcas até os que estão com assento no STF, não julguem as condutas e comportamentos de seus semelhantes, segundo o seu próprio e exclusivo talante, ao sabor de seus interesses e conveniências, ou mesmo, segundo a sua própria noção de Justiça ou de Moral.
Finalizo citando vez mais Calamandrei:
A missão do juiz é tão elevada em nossa estima, a confiança nele é tão necessária, que as fraquezas humanas, que não se notam ou se perdoam em qualquer outra ordem de funcionários públicos, parecem inconcebíveis num magistrado.
O “novo” CPC é um apelo que o povo, por meio de seus legítimos representantes políticos, que são os parlamentares, faz aos seus juízes: não julguem com arbítrio apaixonado; julguem segundo a razão legal. Assim como o “velho” CTN tem sido há quase 50 anos um apelo dos contribuintes em face do poder de tributar do Estado, no sentido de se cobrar o tributo legalmente devido. Esses “mitos normativos” devem se tornar realidade concreta, e não sonhos utópicos.