"(...) O direito à livre manifestação do pensamento não se traduz em direito absoluto, possuindo assim restrições legais ao exercício desse direito, todavia, trata-se de direito fundamental o qual deve ser protegido e garantido pelo Estado, nos termos da Constituição da República e da Convenção Americana de Direitos Humanos. Diante da colisão de direitos de mesma espécie, sendo tais direitos aqueles tidos como princípios, estando assim, o direito à liberdade de expressão em um polo e qualquer outro direito fundamental em outro, a aplicação da regra da ponderação e do princípio da proporcionalidade se traduz no melhor caminho a seguir para a resolução da colisão(...)".
Resumo:A pesquisa busca discutir a colisão da liberdade de manifestação do pensamento e o direito à segurança, direitos estes de proteção constitucional, tendo como fato de análise a ocorrência da Copa do Mundo de 2014 e dos Jogos Olímpicos Rio-2016 no Brasil, momento em que diante da instabilidade política vivenciada no país, torcedores que compareceram aos Estádios, ao exercerem seu direito de manifestação, utilizando de cartazes e camisetas com opiniões políticas eram compelidos a desfazerem de tais objetos ou, quando não, a se retirarem das arenas mediante o uso da força sob o manto do poder de polícia dos agentes dos órgãos de segurança pública, fato este que alcançou o Poder Judiciário.
Palavras-chave: Colisão de princípios, liberdade de expressão, direito a segurança
ABSTRACT:The research seeks to discuss the collision of freedom of expression of thought and the right to security, these rights of constitutional protection, having as a fact of analysis the occurrence of the 2014 World Cup and the Rio 2016 Olympic Games in Brazil, at which time Faced with the political instability experienced in the country, fans who attended the Stadiums, exercising their right to demonstrate, using posters and T-shirts with political opinions were compelled to discard such objects or, if not, to withdraw from the arenas through the use of Force under the cloak of police power of the agents of public security organs, which fact reached the judiciary.
Key words: Collision of principles, freedom of expression, right to security
1. INTRODUÇÃO
O presente trabalho tem por objetivo discutir a aplicação do princípio da proporcionalidade e do sopesamento quando da ocorrência da colisão de princípios constitucionais, tendo como base de estudo a realização dos Jogos Olímpicos e da Copa do Mundo promovidos no Brasil e as manifestações de torcedores no interior dos estádios utilizando camisetas e cartazes para exprimir suas opiniões políticas.
O comportamento dos torcedores provocou a ação de agentes de segurança a reprimirem o direito de liberdade de expressão sob a argumentação de proibição legal, uma vez que nos estádios onde ocorriam os jogos, sendo tais objetos portados, eram os torcedores compelidos a se retirarem das arenas, fato este que provocou a ação do Ministério Público Federal e de Partido Político a provocar a intervenção do Poder Judiciário sobre o assunto.
Tendo sido o Poder Judiciário provocado a intervir e dizer o direito diante da problemática instalada, as decisões exaradas pelo Tribunal Regional Federal e Supremo Tribunal Federal seguiram caminhos divergentes, ora o Tribunal Regional Federal conhecendo da supremacia do direito fundamental de livre manifestação do pensamento, ora o Supremo Tribunal Federal reconhecendo a possibilidade de mitigação deste direito em colisão com outro de mesma proporção.
Neste contexto, tem-se o objetivo central do trabalho de identificar o grau de extensão do direito à livre manifestação de pensamento nos termos de sua proteção constitucional e de normas internacionais, sua possível prevalência ou não diante de possível colisão com o direito à segurança nas manifestações populares que ocorreram no interior do estádios durante os Jogos da Copa do Mundo em 2014 e Jogos Olímpicos Rio-2016.
Trata-se de um estudo exploratório, de caráter qualitativo, com abordagem predominantemente dedutiva. Utilizou-se o estudo de caso, considerando que se buscou por meio da análise de um caso individual abarcar dados que pudessem contribuir com a área de estudo. Para se atingir os objetivos da pesquisa, o caminho percorrido foi dividido em duas etapas: primeiramente, pesquisa bibliográfica de literatura especializada sobre o tema; posteriormente, pesquisa documental de decisão judicial sobre um caso concreto.
A justificativa do estudo é discutir a aplicação da ponderação quando da colisão de direitos fundamentais e do princípio da proporcionalidade, conhecer o alcance normativo dos direitos sob análise e discutir a decisão exarada pela Corte Superior diante do caso em estudo.
2. DIREITO À LIVRE MANIFESTAÇÃO DO PENSAMENTO
A liberdade de manifestação do pensamento tem sua previsão na Constituição de 1988, todavia, por meio de uma análise histórica é possível verificar que a proteção de tal direito também estava nas Constituições Federais de 1937 (art. 122, 15), 46 (art. 141, § 5º) 1967 (art. 150, § 8º) e 1969 (art. 153, § 8º), em mesmo título ou capítulo que ora tratava dos direitos e garantias individuais assim como na Constituição Cidadã, em que pese, a mesma história brasileira demonstre que tal direito sofria violações sem medida.
O legislador constituinte brasileiro ao tratar sobre os direitos fundamentais reservou para estes um título lhes dando um caráter geral, buscando dissecar suas possíveis espécies, tendo então os traduzido em direitos e deveres individuais e coletivos, direitos sociais, nacionalidade, direitos políticos e partidos políticos; direitos estes pautados no princípio da dignidade da pessoa humana e inspirados nos já consagrados direitos humanos universais. O direito à livre manifestação do pensamento está inserido no rol destes direitos constitucionais que traduzem as garantias fundamentais e, de forma mais específica, os direitos individuais e coletivos.
Ao se visitar o texto constitucional que protege a livre manifestação do pensamento[1], a exegese literal pode levar a uma linha que reduza a real proteção que a garantia de direito individual e coletivo pretenda alcançar, visto seu caráter de ordem geral, uma vez que está ligado a outros direitos, ou seja, o direito à manifestação do pensamento vai além de pura e simples exposição de ideias em suas possíveis formas de expressão.
Para a compreensão holística da intenção do legislador constitucional, importa transpassar a proteção da manifestação do pensamento a outros direitos também de ordem fundamental que estão em sintonia, onde, afirma Pedro Lenza (2015 apud Ingo Sarlet, 2013)[2] que a regra contida no referido direito à livre manifestação do pensamento traduz-se em gênero, e os demais dispositivos asseguram a liberdade de expressão nas suas diversas manifestações enquanto espécies: liberdade de manifestação do pensamento (incluindo a liberdade de opinião), liberdade de expressão artística; liberdade de ensino e pesquisa, liberdade de comunicação e de informação (liberdade de “imprensa”) e liberdade de expressão religiosa.
Neste contexto, alerta ROSA[3] (2015, p. 133) que a liberdade de manifestação de pensamento enquanto gênero protege a possibilidade de a pessoa formular juízos, raciocínios lógicos e exteriorizá-los, sendo subsídio para o desenvolvimento individual das pessoas, para sua formação e autodeterminação, sua consciência política e cidadã, mais ainda, possibilita o controle popular do atos estatais e governamentais, servindo, portanto, como alicerce para a manutenção de uma opinião pública livre e informada, necessária na democracia.
O legislador constituinte ao sistematizar a ordem social demonstra o objetivo do bem estar social e da justiça social e impõe como regra o afastamento a qualquer restrição a manifestação do pensamento enquanto direito a comunicação social nos termos do art. 220 da CF/88, onde, o comando constitucional da não restrição deve ser entendido como dirigido a qualquer ação do Estado que venha a limitar o exercício deste direito, seja nas suas funções de legislador, executivo ou judiciário.
Estando o direito a livre manifestação do pensamento no rol dos direitos e garantias individuais nos termos da Constituição, assim entendida nas lições de Robert Alexy[4] como norma principiológica, de alcance genérico relativamente alto, o legislador constituinte cria exceção à regra a não restrição e autoriza o legislador infraconstitucional limitar por meio de lei as diversões e espetáculos públicos, oportunizar à pessoa e à família a possibilidade de se defenderem de programas ou programações de rádio e televisão que desrespeitem os valores éticos e sociais da pessoa e da família, a propaganda de produtos, práticas e serviços que possam ser nocivos à saúde e ao meio ambiente, e ainda, a propaganda comercial de tabaco, bebidas alcoólicas, agrotóxicos, medicamentos e terapias estará sujeita a restrições legais.
Acrescenta ROSA (2015, p. 136) que além das possibilidades constitucionais de limitação da livre manifestação do pensamento, esta poderá ainda sofrer limitações de acordo com as circunstâncias do caso concreto, sopesadas com quaisquer outros princípios, valores ou bens constitucionais. Importa dizer que além das possibilidades de limitação constitucional para o exercício do direito a livre manifestação do pensamento, surgindo fato que demonstre colisão entre normas constitucionais, estas serão sopesadas e ali verificado qual delas deverá prevalecer.
Além da proteção constitucional a tal direito, a análise de documentos internacionais como a Declaração Internacional de Direito Humanos - DIDH e a Convenção Americana sobre Direitos Humanos - CADH demonstra que a proteção a liberdade de manifestação do pensamento é direito protegido internacionalmente e, neste diapasão, não se pode afastar a possibilidade de serem tais documentos motivadores da proteção constitucional brasileira, em que pese o Brasil somente ter promulgado a Convenção Americana sobre Direitos Humanos em 1992 por meio do Decreto n. 678 de 6 de novembro de 1992.
A CADH em seu artigo 13 regula a liberdade de Pensamento e Expressão todavia, faz menção a possível limitação ao exercício de tal direito, senão vejamos:
Art. 13. Liberdade de Pensamento e Expressão
(...)
O exercício do direito previsto no inciso precedente não pode estar sujeito a censura prévia, mas a responsabilidades ulteriores, que devem ser expressamente fixadas pela lei a ser necessárias para assegurar:
a) o respeito aos direitos ou à reputação das demais pessoas; ou
b) a proteção da segurança nacional, da ordem pública, ou da saúde ou da moral pública.
Um comparativo da limitação ou restrição ao exercício da liberdade de pensamento e expressão, nos termos da Convenção Americana e da Constituição Brasileira faz surgir pontos controversos, onde pontua ROSA (2015, p. 139) existir aparente tensão entre a CADH e a CF/88 pois a ordem constitucional brasileira, ao vedar qualquer restrição a essa liberdade, “observado o disposto nesta constituição” (art. 220, caput, parte final), submete seu exercício a uma cláusula geral de reenvio a toda a constituição. Já a convenção, ao contrário, desde logo exclui a possibilidade de qualquer restrição que consubstancie censura prévia à divulgação da manifestação do pensamento, dispondo ser admitido somente responsabilidades ulteriores.
A interpretação literal da Constituição Federal Brasileira demonstra ser possível a adoção de postura preventiva quanto a possibilidade de abuso do exercício do direito de manifestação do pensamento nos termos do art. 220, § 3º e §4º da carta magna uma vez que previsto está a possibilidade de existência de lei infraconstitucional limitadora.
Em análise sobre o assunto, a Corte Interamericana de Direitos Humanos ao proceder interpretação em Opinião Consultiva OC-5/85 sobre o possível abuso da liberdade de expressão versus a possibilidade de medidas de controle preventivo, assim se manifestou: “o abuso da liberdade de expressão não pode ser objeto de medidas de controle preventivo, mas fundamento da responsabilidade da pessoa que cometeu”. (Trad. Livre).[5]
Demonstrou ainda a Corte Interamericana de Direitos Humanos que para que haja a responsabilidade da pessoa que tenha cometido abuso ao exercer o seu direito de liberdade de pensamento e expressão é necessário que se reúna os seguintes requisitos: a) a existência de motivos previamente estabelecidos para a responsabilidade; b) a definição expressa e taxativa desse motivos por lei; c) a legitimidade dos fins que se busca alcançar; d) que os motivos de responsabilidade sejam necessárias para garantir os fins mencionados.
Caminhou a Corte no sentido de demonstrar seu posicionamento de proteção máxima a liberdade de expressão, restando quando de seu abuso a responsabilidade de quem a cometeu, onde, neste sentido, alerta TORRES[6] (2015, p. 76) que:
considerando-se a pertinência e a legitimidade da regulação da liberdade de expressão, ressalte-se que ela, além de atender ao limite da reserva legal, deverá atentar para a exatidão e a clareza textual”. Leis obtusas nesse contexto podem ser consideradas inconstitucionais, pois podem permitir, de modo mediato, censura – seja esta protagonizada pelo Judiciário, seja mesmo pelos próprios detentores da liberdade de expressão, que, ao não reconhecerem com nitidez a amplitude de seu direito, podem, por precaução, censurarem-se previamente.
Sobre a liberdade de pensamento e expressão e a limitação de seu exercício por lei nos termos da CF/88, vivenciou o Brasil ao sediar a Copa do Mundo em 2014 e os Jogos Olímpicos no Rio de Janeiro-2016 a ação de agentes de segurança que sob o argumento de possível restrição legal e controle preventivo, nos termos da Lei 12.663/12 (medidas relativas à Copa das Confederações FIFA 2013, à Copa do Mundo FIFA 2014 e à Jornada Mundial da Juventude - 2013, realizadas no Brasil) e a Lei 13.284/16 (Jogos Olímpicos e Paraolímpicos de 2016 e aos eventos relacionados, que serão realizados no Brasil) passaram a retirar dos estádios torcedores que manifestavam suas opiniões políticas por meio de cartazes e camisetas as quais comunicavam sua insatisfação com a instabilidade política vivenciada no país.
A celeuma alcançou o Tribunal Regional Federal da 2ª Região[7] bem como o Supremo Tribunal Federal, tendo os citados tribunas, transitado em caminhos divergentes, tendo o TRF garantido o direito a livre manifestação do pensamento sob o argumento de que a repressão a liberdade de expressão e pensamento nas arenas de realização do jogos era medida extrema e que feria direito fundamental, não podendo os agentes de segurança, em interpretação extensiva do art. 28 da Lei 13.284/16, principalmente de seu inciso IV (não portar ou ostentar cartazes, bandeiras, símbolos ou outros sinais com mensagens ofensivas, de caráter racista ou xenófobo ou que estimulem outras formas de discriminação;) adotar tais ações repressivas de retirada de torcedores dos estádios ou de ordenar que guardassem tais camisetas ou qualquer outro objeto utilizado para tais fins.
Por outro lado o Supremo Tribunal Federal, na Ação Direta de Inconstitucionalidade 5.136 Distrito Federal, proposta pelo Partido da Social Democracia Brasileira, ao contrário da decisão exarada pela Justiça Federal, julgou pela inexistência de violação da liberdade de expressão, tendo por análise que o exercício do direito à liberdade de expressão e pensamento naquele ambiente (arenas de realização dos jogos) poderia tender a gerar maiores conflitos, atentando assim contra a segurança dos demais participantes, fato este que demonstrava a colisão de direitos, onde, sob o argumento da aplicabilidade do princípio da proporcionalidade por meio do juízo da ponderação fazia prevalecer frente ao caso concreto o direito a segurança em detrimento da liberdade de expressão.
O questionamento que faz surgir frente a decisão da Suprema Corte, onde decidiu ser a Lei Geral da Copa ou mesmo a Lei dos Jogos Olímpicos constitucionais diante da ponderação de prevalência frente ao caso concreto da segurança em detrimento da livre manifestação do pensamento é: não estaria o supremo afastando a responsabilidade do Estado de prestar o serviço de segurança pública em condições de atender a todos e a garantir os direitos fundamentais previstos na magna carta?.
Para responder ao questionamento é necessário que se busque a previsão legal do direito a segurança, e por sua vez, segurança pública enquanto direito fundamental, bem como, uma análise de posicionamentos doutrinários sobre o tema.