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A insegurança jurídica gerada pelas diversidades de interpretações dadas pelos tribunais em relação à competência da Justiça Militar.

Uma abordagem interdisciplinar

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O presente ensaio se propõe a apresentar algumas reflexões sobre as manifestações interpretativas oferecidas pelos tribunais superiores do país quanto aos elementos constitutivos do tipo penal militar, especificamente em relação ao art. 9º e seus incisos.

Resumo: O presente ensaio se propõe a apresentar algumas reflexões sobre as manifestações interpretativas oferecidas pelos tribunais superiores do país quanto aos elementos constitutivos do tipo penal militar, especificamente em relação ao art. 9º e seus incisos. Com essa perspectiva, analisamos de forma pontual, a largura imprecisa de certas expressões e os subjetivismos imanentes contidos nos incisos e alíneas do citado dispositivo penal castrense, bem como as consequências que deles decorrem. O trabalho está pautado, primordialmente, na competência em razão da matéria, cuja fixação dos limites da atividade jurisdicional pelos diversos ramos da Justiça, em princípio, estão delimitadas pela Lei Fundamental. Para tanto, utilizamos como referencial fático a jurisprudência recente do STF, STJ e STM e empregamos como referencial teórico uma abordagem jurídica e multidisciplinar.


Introdução

Analisando as decisões emanadas pelos Tribunais superiores, sobretudo nos últimos anos, observa-se uma latente oscilação jurisprudencial no âmbito da competência ratione materiae.

As mudanças, não raras, de entendimento das Cortes judiciárias brasileiras têm levado certo desconforto quanto à postura a ser adotada pelos atores processuais em relação à competência material no âmbito da lei penal militar.

Como se sabe, a competência em razão da matéria está delimitada pela Lei Fundamental. O art. 124. da Constituição estabelece a competência da Justiça Militar para processar julgar os crimes militares definidos em lei, cuja fixação dos limites da atividade jurisdicional pelos diversos ramos da Justiça, em princípio, são por ela albergados. Por outro lado, os crimes militares estão previstos na parte especial do Código Penal Militar. Na seara do estudo da competência penal são firmados alguns critérios pautados em pelo menos três razões: competência em razão da matéria, competência em razão do lugar e competência em razão da pessoa. Estas disposições constitucionais e legais, as quais definem e parcelam a distribuição da jurisdição a diferentes órgãos do Poder Público, consagram e possibilitam o exercício pleno da administração da justiça penal.

Nesse aspecto, a aferição de um fato que se apresenta inicialmente com uma roupagem de crime militar deve ser realizada em duas etapas. Primeiro, verifica-se se há adequação da conduta em tese delituosa a um dos tipos penais elencados na parte especial do CPM para, em seguida, examinar o enquadramento do episódio criminoso em uma das hipóteses descritas no art. 9º e seus incisos e alíneas da norma penal em questão (parte geral).

Entretanto, ainda que sigamos a orientação normativa acima, a conclusão desta operação nem sempre nos levará a uma certeza definidora da competência, pois o dispositivo legal em comento, tanto no seu tipo básico fundamental quanto nas suas hipóteses derivadas, está provido de expressões abertas e subjetivas, conduzindo, pari passu, às indisfarçáveis diferenças interpretativas. Daí porque, dentre outros motivações, são observadas decisões antagônicas no cenário jurisprudencial. Enquanto uma Turma jurisdicional decide de uma forma, a outra, em caso similar, segue um caminho interpretativo diferenciado Essa inconstância decisória certamente cria um estado de insegurança jurídica, deixando os sujeitos processuais sem parâmetros sólidos para se manifestarem com convicção acerca da competência em razão da matéria.


1. Experiência interpretativa e a jurisprudência oscilante.

Não é nova a observação que se faz sobre a oscilação nos julgados oriundos os tribunais superiores. O fato de existirem mudanças sistemáticas no contexto interpretativo sobre casos similares levados a julgamento perante os tribunais superiores têm levado a comunidade jurídica a críticas variadas.

É certo que a estrutura central do art. 9º do CPM definindo os crimes militares, em tempo de paz, permanece a mesma e remonta o fim da década de 60; tendo havido alteração, em 1996, especificamente no inciso II, da alínea c1 e, em 2011, no parágrafo único do citado disposto legal2. De resto, o preceito se manteve no mesmo padrão e as decisões judicantes seguiam, de certa maneira, um fluxo homogêneo.

Entretanto, em tempos mais recentes, muitas são as aporias existenciais no campo da interpretação do art. 9º do CPM. Afinal, o que é função de natureza militar? Crimes que envolvem licitação são de natureza militar? Como definir se as funções realizadas por algumas organizações militares são de natureza militar ou de natureza administrativa? E em relação aos crimes dolosos contra a vida praticados por militares federais em lugar sujeito à administração militar? E se for o civil o agente do crime doloso contra a vida de um militar de serviço em lugar sujeito à administração militar?

E Por que será que, atualmente, podemos dizer ter havido uma nova “capa de sentido” quanto à definição de crime militar?

Para enfrentarmos de forma não exaustiva a questiúncula, poderíamos refletir sobre duas experiências significativas no plano filosófico. A primeira relaciona-se com a interpretação que se extrai a partir da consciência individual, isto é, a valoração dada por nós mesmos, cuja validade e eficácia do que julgamos traz, em seu bojo, e, última análise, o nosso próprio juízo. A segunda vertente, porém, está centrada na consciência histórica, do desvelar de uma época, o que significa compreender as vertentes de um determinado tempo, um determinado momento político, social, jurídico, ou mesmo religioso ou filosófico. Quando o filósofo da linguagem afirmava que compreender significa evitar mal entendidos, ele mesmo se perguntava se estaríamos definindo adequadamente o fenômeno da compreensão. Será que todo mal entendido não pressupõe, de uma forma ou de outra, uma espécie de “acordo latente’, indaga Gadamer? (p. 259)3. Compreender é prima facie uma maneira de ser e um modo de acontecer4.

No caso do art. 9º do CPM as dúvidas permanecem, pois não há acordo, por exemplo, em relação ao que seja efetivamente função de natureza militar, como se demonstrará no item subsequente. Por isso, é fundamental a existência e um processo prévio de compreensão que antecipa qualquer interpretação, evitando os “mal entendidos” suscitados por Gadamer. Neste aspecto, a hermenêutica propõe um modelo processual de interpretação que se inicia com a pré-compreensão. Uma espécie de escada, cujos degraus que se sucedem formam o conjunto de atividades reflexivas e posteriormente concretizadas, iniciadas a partir do piso superior de onde a hermenêutica é dimensionada. Até o piso “térreo”, isto é, até alcançar as teorias argumentativas, o intérprete percorreu todos os degraus. É possível afirmar que, antes mesmo de o intérprete argumentar, ele necessariamente terá transposto o compreender. Ainda nessa perspectiva, o processo hermenêutico funciona da seguinte forma: o intérprete estabelece uma observação entre a norma e o fato. Inicialmente, essa relação preliminar se apresenta para o intérprete de maneira um tanto nebulosa, mas na proporção em que o fato e a norma são analisados de forma mais profunda, a pré-compreensão passa a se mostrar mais nítida, mais clara. (Aguiar Britto, 2014) Quando se utiliza a hermenêutica como postura para tomada de certa decisão judicial, por exemplo, esta mostra ser capaz de analisar filosoficamente os elementos da pré-compreensão. Então, a partir do momento em que o intérprete supera a observação preliminar (a pré-compreensão) sobre o fato, esse processo cognitivo ainda não amadureceu. Contudo, se ele voltar a analisar o mesmo problema, é possível que avance na compreensão e, assim, defina a via que deverá tomar. Nesse momento, essa compreensão passa a ser a condição de possibilidade para que o jurista alcance a fase da explicitação. Será na explicitação que se encontrará o espaço para uma teoria do conhecimento. Assim, quando o intérprete logra alcançar a fase da explicitação, deverá utilizar-se de uma das formas argumentativas a fim de legitimar sua decisão.

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Insistindo no campo jusfilosófico, é Ronald Dworkin agora quem chama a atenção para o fato de não ser possível a caracterização de qualquer ato, seja no plano estatal, jurisdicional ou mesmo legislativo, sem o exercício de qualquer valoração. Alguma dose de liberdade de escolha deve existir. A partir dessa premissa, seriam assim inconcebíveis juízos integralmente vinculados. Por esse motivo, Dworkin procurou descrever os fenômenos dos juízos discricionários, classificando-os como em sentido forte e débil. Quando se opera com a discricionariedade judicial, diz-se que o julgador estaria legitimado a “criar” uma solução adequada para o caso que lhe foi apresentado para julgamento, uma discricionariedade strong sense. Nesse caso, a expressão “conceito forte suscitada pelo filósofo, significa dizer que o intérprete (juiz) não estaria atrelado a qualquer disposição normativa ou principiológica a parametrizar o seu julgamento; dessa forma, via de regra, a decisão tomaria inevitavelmente o rumo da decisão “conforme a sua consciência”. A arbitrariedade e discricionariedade são assim entendidas como propriedades do juízo de valor. Então, seguindo nessa trilha, a partir do juízo de mérito, ou juízo de valor, se investiga se o juízo é arbitrário ou discricionário5. A aferição sobre o vício ou validade do ato passa a ser condição de procedibilidade para se resolver sobre a próxima etapa decisória que vem a ser escolhida dentre as alternativas plausíveis apresentadas. Para que o julgador decida de forma adequada para o caso concreto, há necessidade de avaliar se as hipóteses em comento são lícitas ou ilícitas. O Conceito interpretativo de discricionariedade no campo judicial designando como aquele formado a partir da existência de duas ou mais alternativas decisórias igualmente razoáveis, válidas (legais e legítimas), quando então, diz o autor, se poderia eleger livremente uma dentre elas.

Não obstante, aquilo que desponta como fruto de nossas experiências pessoais tem sabor intenso nas tomadas de decisões. Isto é indiscutível. O saber adquirido de cada ator será a base na qual se fundamentarão as leis, os regulamentos, as sentenças, as doutrinas, e assim como as demais atividades “extrajurídicas”.


2. Hipóteses paradigmáticas

A título de ilustração e para melhor compreensão do que acima foi encartada, exporemos os próximos itens, a oscilação jurisprudencial em relação à interpretação conferida ao art. 9º do CPM.

Segundo as disposições contidas no citado dispositivo legal, consideram-se crimes militares, em tempo de paz:

I - os crimes de que trata este Código, quando definidos de modo diverso na lei penal comum, ou nela não previstos, qualquer que seja o agente, salvo disposição especial;

II - os crimes previstos neste Código, embora também o sejam com igual definição na lei penal comum, quando praticados:

a) por militar em situação de atividade ou assemelhado, contra militar na mesma situação ou assemelhado;

b) por militar em situação de atividade ou assemelhado, em lugar sujeito à administração militar, contra militar da reserva, ou reformado, ou assemelhado, ou civil;

c) por militar em serviço ou atuando em razão da função, em comissão de natureza militar, ou em formatura, ainda que fora do lugar sujeito à administração militar contra militar da reserva, ou reformado, ou civil;

d) por militar durante o período de manobras ou exercício, contra militar da reserva, ou reformado, ou assemelhado, ou civil;

e) por militar em situação de atividade, ou assemelhado, contra o patrimônio sob a administração militar, ou a ordem administrativa militar;

f) revogada.

III - os crimes praticados por militar da reserva, ou reformado, ou por civil, contra as instituições militares, considerando-se como tais não só os compreendidos no inciso I, como os do inciso II, nos seguintes casos:

a) contra o patrimônio sob a administração militar, ou contra a ordem administrativa militar;

b) em lugar sujeito à administração militar contra militar em situação de atividade ou assemelhado, ou contra funcionário de Ministério militar ou da Justiça Militar, no exercício de função inerente ao seu cargo;

c) contra militar em formatura, ou durante o período de prontidão, vigilância, observação, exploração, exercício, acampamento, acantonamento ou manobras;

d) ainda que fora do lugar sujeito à administração militar, contra militar em função de natureza militar, ou no desempenho de serviço de vigilância, garantia e preservação da ordem pública, administrativa ou judiciária, quando legalmente requisitado para aquele fim, ou em obediência a determinação legal superior.

Parágrafo único. Os crimes de que trata este artigo quando dolosos contra a vida e cometidos contra civil serão da competência da justiça comum, salvo quando praticados no contexto de ação militar realizada na forma do art. 303. da Lei no 7.565, de 19 de dezembro de 1986 - Código Brasileiro de Aeronáutica. (Redação dada pela Lei nº 12.432, de 2011)

O que pode ser extraído a partir da interpretação extraída dos incisos em comento?

Ponto inicial a ser enfatizado é o fato de ter havido uma real mudança de paradigma empreendida pelos tribunais em relação à análise da norma penal militar em estudo, notadamente às elencadas no inciso II e suas alíneas, nas quais o militar da ativa figura como sujeito ativo do crime.

Vejamos as hipóteses abaixo a título ilustrativo:

2.1. Crime de natureza militar

As regras para definição de delito de natureza castrense eram outrora interpretadas com base no princípio da exclusão, vale dizer, caso um fato se amoldasse a uma das hipóteses constantes na alínea “a” do inciso II do art. 9.º, como por exemplo, militar da ativa, em qualquer circunstância, praticando um crime contra outro militar da ativa, o delito seria, em tese, militar. Não se perscrutava, destarte, se a conduta teria ocorrido em lugar sujeito à administração militar ou se o militar estava exercendo função de natureza militar.

Contudo, a orientação jurisprudencial sofreu visível modificação. Atualmente, tem se entendido que o fator determinante para a caracterização de um crime militar é a natureza militar da conduta do agente. É necessário que o militar, na condição de sujeito ativo do crime, esteja desenvolvendo uma atividade típica da caserna. Dessa forma, não tem prevalecido apenas o critério da competência “em razão da pessoa” (militar da ativa praticando delito contra militar da ativa em qualquer situação) e nem tampouco o local onde o crime transcorreu.

Nessa perspectiva, em decisão unânime exarada em 20156, o STM entendeu que não é de competência da Justiça Castrense, fato criminoso praticado por militar da ativa contra militar em igual situação, ocorrido fora do ambiente militar e estranho à atividade da caserna. A Corte considerou, quando julgava um Recurso em sentido estrito, que a expressão “em situação de atividade” tem como significado estar o militar no exercício de suas atribuições legais, dentro ou fora da área sob a administração militar, ou em situação tal que estejam efetivamente inseridas as questões de disciplina e hierarquia militares. Segundo disposição do julgado proferido, a “competência da Justiça Militar da União reserva-se às hipóteses nas quais o crime ocorra no interior do Quartel, entre militares em serviço ou de efetivo serviço e até mesmo fora da área sob a administração militar, mas desde que estejam no cumprimento de suas atribuições legais”.

No que tange ao lugar sujeito à administração militar, o Superior Tribunal de Justiça7, dirimindo conflito de competência decidiu competir a Justiça Militar processar e julgar os crimes perpetrados por Policial Militar em atividade contra Soldado da Aeronáutica na mesma situação. Neste aspecto, o STJ asseverou que a vila militar, lugar onde teriam ocorrido os crimes imputados ao policial militar da Aeronáutica, não pode ser considerada área sujeita à administração militar, com o fito de atrair a competência de Justiça militar federal.8

No mesmo sentido, mas em julgamento perante a 2ª. Turma do STF, o ministro relator Luís Roberto Barroso, em decisão oriunda da ação cível originária nº 2479/2015, salientou que a circunstância de militares envolvidos em suposto fato criminoso não estarem no exercício de suas funções é elemento suficiente para afastar a natureza castrense de eventual ilícito.

Ainda sob o escólio interpretativo de que a função de natureza militar prepondera sobre o lugar sujeito à administração militar para fins de determinação de competência, a segunda turma do STF9 decidiu que um atentado violento ao pudor praticado por um militar da ativa contra um jovem em um complexo naval, onde o militar ministrava aulas de karatê, teria ocorrido no exercício de atividade estranha à função, o que afasta a confirmação de crime militar. Perceptível, portanto, a complexidade interpretativa no que se refere ao alcance da expressão “função de natureza militar”. Não há consenso nos tribunais superiores sobre o que deve e como deve ser interpretada a aludida locução.

Mas a divergência não termina aqui. Vejamos as demais hipóteses instaladas nos âmbitos de competência em relação às atividades das Forças Armadas na Garantia da Lei e da Ordem, em relação às fraudes em licitação e nos delictum falsum.

2.2. Competência da Justiça militar em relação as forças armadas na garantia da lei e da ordem.

Em relação à atividade das Forças Armadas quando atuantes para garantir a lei e a ordem, conforme disposição constitucional contida no art. 142, a segunda turma do STF10 considerou a conduta de desacato praticada por um civil contra um militar, crime de natureza comum. A turma entendeu que a atividade desenvolvida pelos militares naquela situação específica não poderia ser considerada de natureza militar. -

Entretanto, perfilhando outro entendimento, mas, em hipótese similar, a primeira turma do STF11 asseverou ser da competência da Justiça Militar processar e julgar civil acusada de desacato praticado contra militar das Forças Armadas que atuava em processo de pacificação no Complexo do Alemão, Rio de Janeiro.

2.3. Competência da justiça militar nos casos de crimes licitatórios praticados por membros das forças armadas.

No âmbito dos crimes relacionados às fraudes licitatórias e circunstâncias análogas, em abril de 2016, julgando conflito de competência instalado entre a justiça comum e a militar, o STJ12, por unanimidade de votos, deixou consignado que, em não havendo tipo penal específico licitatório previsto no CPM, e ainda que praticado por militar da ativa, a Justiça Militar não é competente para o processo e julgamento. O órgão superior sublinhou que, é equivocada a aplicação do dispositivo para conduzir à competência da Justiça Castrense no suposto crime licitatório praticado por militar da ativa.

Em outro julgado, mas ainda decidindo sobre conflito de competência, o STJ13 firmou orientação no sentido de definir competência da Justiça Militar para processar e julgar militar da ativa, que na condição de comandante e ordenador de despesas teria praticado irregularidades em atos e contratos administrativos relativos a patrimônio militar.

Malgrado, a Corte ressaltou que nas hipóteses de crimes militares impróprios (que não implicam na violação de deveres típicos da carreira militar e, portanto, podem ser praticados, também, por civil), é a Justiça Castrense a competente para processar e julgar o feito, nos termos do art. 9º do Código Penal Militar, quando comprovada a existência de prejuízo ao patrimônio militar.

Os precedentes do STJ têm demonstrado, portanto, que, nos casos de fraudes em licitação e de desvio de verbas públicas praticados por militar em detrimento do patrimônio militar, mesmo com a eventual participação de civis, a competência é da Justiça Militar.

Dando continuidade à análise dessas oscilações jurisprudenciais, e a título de nova e enfatizada ilustração, julgando o Agravo regimental CC 140.802/RJ, do qual foi Relator o Ministro Reynaldo Fonseca, a terceira turma do STJ deixou assentado que a definição da competência dependerá do bem jurídico tutelado pela norma. Para a turma, é necessário verificar se há ocorrência ou não de violação de um dever restrito e específico que caracterizaria crime militar, e cujas balizas se encontram delineadas no art. 9º do Código Penal Militar. O caso especificamente em relevo envolvia um militar da Marinha em atividade, então responsável pelas contratações do Centro de Instrução Almirante Alexandrino, Organização Militar à qual pertencia. A turma declarou a competência da JM, entendendo ter havido violação aos interesses da administração militar. Isso porque, os procedimentos licitatórios levados a cabo visavam a aquisição de materiais para aquela instituição militar, além do suposto delito (militar impróprio) ter sido praticado por militar.

Note-se que, os julgados referentes aos conflitos de competências suscitados tiveram como supedâneo tão somente o art. 9º do CPM, deixando distante a discussão propriamente dita em relação aos tipos penais constantes na parte especial do códex referentes à licitação.

2.4. Competência da justiça militar nos casos de falsidade documental

Quanto aos delitos envolvendo falso documental, no habeas corpus nº 113.477/CE, cuja relatoria pertenceu ao Ministro Dias Toffoli foi reconhecida a competência da Justiça Militar em situação de crime militar impróprio (art. 315. CPM). A hipótese versava sobre o uso de documento público verdadeiro em que o agente, civil, pretendia a averbação de falsas habilitações específicas de aquaviário, visando à ascensão de grau, averbação essa de exclusiva competência da Marinha. A 1ª. Turma do STF considerou que: “o dano, em potencial e real, sofrido pela Força se consubstancia na quebra de sua credibilidade perante a sociedade, pois, ao emitir, mediante artifício engendrado pelo paciente, uma habilitação atestando capacidades que, na realidade, o civil não detém, a Administração Militar compromete a própria lisura dos cadastros por ela mantidos”.

No HC 105.256/PR, proveniente, porém, da 2ª Turma do STF, do qual, e da mesma forma figurava um civil na prática delitiva militar em sentido impróprio, a Corte considerou a justiça castrense incompetente para o feito, enfatizando seu caráter anômalo. A questão aludia para a prática dos crimes de falsidade ideológica, estampada no art. 312. CPM e do uso de documento falso disposto no art. 415. do mesmo diploma penal castrense. O agente, segundo constou, teria inserido dados inverídicos em documentos da Marinha do Brasil, para regularização de embarcação, obtendo-se o título de inscrição de embarcação expedido pela Força Naval.

No voto exarado pelo relator Celso de Mello, o ministro consignou a excepcionalidade da submissão de civis, em tempo de paz, à jurisdição penal da justiça militar da União. Neste mister, o STF destacou que não se tem configurada a competência penal da justiça militar da união tratando-se de réus civis se a ação delituosa atribuída aos agentes, não afetar , ainda que potencialmente, a integridade, a dignidade, o funcionamento e a respeitabilidade das instituições militares, que constituem , em essência, nos delitos castrenses, os bens jurídicos penalmente tutelados.

Seguiu-se que, em 23 de setembro de 2015, no HC-SP nº 130.210 impetrado perante a 2ª. Turma, O ministro Gilmar Mendes concedeu a ordem para declarar a incompetência da justiça militar para processar e julgar um civil pela suposta prática de falsidade ideológica, pois a conduta atribuída ao agente não atinge as funções típicas das forças armadas O caso versava sobre a apresentação de documentação falsa para renovação de certificado de colecionador, atirador e uso desportivo de tiro prático.

Entretanto, em outubro do mesmo ano, no HC-SP nº 17834-2015, em decisão unânime, o STM denegou a ordem em caso similar, considerando que as atividades de fiscalização e de controle de material bélico de uso restrito estão relacionadas a destinação constitucional das Forças Armadas, nos termos definidos no artigo 142 da Constituição. Segundo o acórdão, os atos praticados pelo Paciente tinham como objeto a obtenção de um certificado de atirador/colecionador de produtos e armamentos de uso controlado, cuja fiscalização é de responsabilidade do Comando do Exército. A Corte castrense declarou que, no caso em tela, a eficiência e a eficácia dessas atividades estão vinculadas à destinação constitucional da Força do Exército, motivo pelo qual, atrairia, por si só, a competência da Justiça Militar.

Sobre os autores
Claudia Aguiar Britto

Pós-Doutora em Democracia e Direitos Humanos. Universidade de Coimbra. IGC. Mestre em Ciências Penas. Doutora Direito Público (Processo Penal). Especialista em Direito Penal Militar. Advogada Criminalista. Professora Universitária.

LUCIANO GORRILHAS

Subprocurador-geral de Justiça Militar

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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