A NATUREZA JURÍDICA DO INQUÉRITO POLICIAL SOB A ÓTICA DOS ELEMENTOS MIGRATÓRIOS (provas irrepetíveis, cautelares e preliminares)
O presente texto tem como objeto de pesquisa a natureza jurídica processual penal preliminar[1] e cautelar do Inquérito Policial[2] sob a ótica dos elementos migratórios[3], assim como demonstrar que quando esse instrumento é utilizado e robustecido com tais provas tem como imperativo a sua imprescindibilidade no ordenamento jurídico pátrio cujos parâmetros normativos são a Constituição Federal de 1988[4], O Código de Processo Penal Brasileiro[5], Legislação específica sobre Polícia Investigativa/Judiciária representada pelas Leis 12.830/2013[6] , 12.850/2013[7] e 13.047/14[8], doutrina e julgados dos tribunais superiores.
Não foi à toa que enumeramos as premissas a partir da Constituição Federal de 1988 (Princípio do devido processo legal) para depois alocar o Direito Processual Penal Brasileiro (teoria neoinstitucionalista) e a legislação Específica sobre Polícia Investigativa/Judiciária. A primazia cronológica da Constituição visa dar ênfase ao paradigma ou marco teórico do Estado de Direito Democrático, num contexto do ordenamento jurídico hierarquizado e coordenado.
Historicamente o Inquérito Policial é parte integrante do Processo Penal Brasileiro desde o fim do século XIX, importante instrumento de ordem pública, num país de dimensões continentais que necessita da capilaridade policial.
O Inquérito Policial, mola mestra do Processo Penal Brasileiro, é um tipo de investigação criminal, podendo ser definido como instrumento ou método pelo qual os atos de descobrimento para comprovar materialidade delitiva, demonstrar as circuntâncias e individualizar sua autoria[9] são realizados pela Polícia Investigativa/Judiciária (somente judiciária quando atua a requerimento do Juiz ou em cumprimento de medidas cautelares ou preliminares) e processualizados, exigindo rito específico na instauração mediante Auto de Prisão em Flagrante[10] e maior discricionariedade quando iniciado por Portaria.
Importante observar que o Inquérito Policial iniciado por Auto de Prisão em Flagrante quando não observado seu rito legal, a consequência é o Relaxamento da Prisão pelo Juiz competente, portanto, há rito especifico e taxativo cuja inobservância nulifica o ato (prisão) por ilegalidade.
Por muito tempo os atributos do Inquérito Policial foram questionados pela doutrina, principalmente os relativos ao sigilo e não participação do advogado, sob o argumento de que a defesa estava prejudicada quanto ao devido processo legal, ampla defesa e contraditório. Tais anseios foram sanados pelo Supremo Tribunal Federal e Legislador Ordinário através da Súmula Vinculante 14 e Lei 13.245/2016.
Com o advento da Lei 13.245/16 a defesa passou a ocupar lugar de destaque no Inquérito Policial, podendo requerer diligências no interesse do investigado. Tal norma legal e verdadeiro corolário da súmula Vinculante n.14 do STF privilegia a ampla defesa e o contraditório, mutatis mutandis, já há muito existentes na fase processual penal preliminar.
Importante enfatizar que a participação ativa da defesa na fase preliminar processual penal conferida pela Súmula Vinculante n. 14 STF e a Lei 13.245/16 (acresentou institutos ao Estatudo do Advogado) ocorre quando há possibiidade de apresentar os meios de defesa, documentos, testemunhas, perícias e negar as provas eventualmente não compateiveis com o fato, respectivamente a consagração dos princípios da Ampla Defesa e Contraditório, ambos corolários do princípio do Devido Processo Legal no Estado de Direito Democrático, equilibrando as personagens do Processo Penal na fase preliminar denominada Inquérito Policial.
Cabe esclarecer que a ampla defesa e o contraditório da forma como exposto acima sempre foram observados e permitidos no andamento processual do Inquérito Policial de forma oral ou por meio de petições e vistas dos autos pelos advogados, porém a informalidade e a falta de marcos legislativos e metodológicos específicos que demonstrassem a sua realização. A participação do advogado nunca gerou incomodo ao espírito investigativo que sempre está voltado para a descoberta da "verdade provável" num contexto de valoração da conduta, tendo como norte o Direito Penal do Fato.
Podemos fazer uma linha cronológica comparativa da evolução temporal do tratamento legislativo brasileiro despendido ao Inquérito Policial (séculos XIX e XXI) e a evolução metodológica da Teoria do Crime (naturalismo, neokantismo, finalismo e funcionalismo). Utilizando a teoria do pêndulo (existência e inexistência de valores normativos) percebemos que as modificações filosóficas que influenciaram o tratamento do conceito analítico de crime tiveram repercussão imediata na política criminal e consequente enxugamento ou retirada de atribuições legais do Delegado de Polícia, titular do Inquérito Policial ao longo de toda a história desse instituto processual penal, fazendo com que, consequentemente, o Inquérito Policial fosse equivocadamente estigmatizado e relegado a procedimento administrativo e informativo, e ainda mais absurdo, preparatório da ação penal, ideologia não sustentada, em nenhum momento, pelo legislador pátrio.
Afirmamos que o Inquérito Policial é Processo Penal Preliminar e Cautelar, uma vez que é instrumento metodológico do único Órgão de Estado, Polícia Investigativa/Judiciária cuja atribuição constitucional é a comprovação de materialidade e individualização da autoria. Para isso, é especializada, possui ciência própria para criar o projeto de descoberta, realizar o esforço investigativo e instrumentalizar o seu produto em uma única forma documentada oficial (autos).
São exemplos de esforço investigativo, vulgarmente conhecidos como Diligências Policiais da Polícia Investigativa/Judiciária, os institutos Policiais conhecidos como: 1) Oitivas (Declarações, Interrogatório, Depoimento - vítima, suspeito, indiciado, testemunha), 2) Perícias (Papiloscópicas, Biológicas e Técnicas), 3) Interceptação (Telefônica, Telemática, Escuta Ambiental), 4) Quebra de sigilo de dados, 5) Delação Premiada, 6) Entrega Vigiada, 7) Apreensões, 8) Sequestros de Bens e etc.
Da análise do parágrafo anterior, percebemos que determinadas diligências policias têm natureza de elementos migratórios, pois são impossíveis de serem submetidas à defesa e ao contraditório no momento da coleta, no entanto passíveis de conhecimento após a sua produção se oportuno às investigações (Súmula Vinculante 14 do STF). A oportunidade temporal da captura cautelar da informação penalmente relevante, logicamente não se alinha de imediato com o princípio da ampla defesa e contraditório, em razão do seu caráter objetivo, científico e cautelar. Isso não nos leva a crer que não exista de forma diferida. Por exemplo, a coleta de vestígios de sangue em um automóvel utilizado numa suposta ação criminosa ou a coleta de vestígios papiloscópicos em determinada superfeicie do cenário criminoso num contexto amparado por prova testemunhal (obtida preliminarmente ou antecipadamente). A lógica é que através da coleta técnica e cintífica dessas amostras de sangue e papiloscópicas e a existência de um(a) suspeito(a), consigamos “cruzar" os elementos de prova técnica (perícia) e subjetiva (testemunho antecipado) para individualizar a autoria delitiva de forma objetiva, técnica científica. Outro exemplo seria a filmagem de uma entrega vigiada de uma atividade criminosa de tráfico de substância entorpecente onde fica cabalmente demonstrado as personagens do fato e essa prova é amparada por interceptações telefônicas que vinculam o vídeo aos interceptados, possibilitando o nexo de causalidade exigido para a integração conduta e resultado, culminando na consumação do delitiva. Nessas situações, não tempos índícios ou elementos informativos, temos provas irrepetíveis, cautelares e preliminares, elementos migratórios que determinam o oferecimento de denúncia.
O Código Penal Brasileiro, determina que o Juiz não poderá condenar ninguém com base nas informações coletadas em fase de Inquérito Policial, salvo no caso de provas cautelares, irrepetíveis e preliminares (elementos migratórios na doutrina de Luiz Flávio Gomes). Certíssimo o Legislador, pois a informação (qualquer elemento indicatio de materiaidade e autoria) é diferente da prova irrepetível cautelar e preliminar (aquela que só pode ser obtida no local do fato, meios de produção de prova do Art. 3˚ da Lei 12.850/2013, testemunho de pessoa morta e etc), as primeiras devem e podem ser submetidas ao contraditório já as segundas não, o tempo faz perecer o fato. Vejamos o entendimento do STF consentâneo com a ideia aqui defendida:
EMENTA: I. Habeas-corpus: cabimento na pendência de indulto condicional (D. 1.860/96). II. Princípio do contraditório e provas irrepetíveis. O dogma derivado do princípio constitucional do contraditório de que a força dos elementos informativos colhidos no inquérito policial se esgota com a formulação da denúncia tem exceções inafastáveis nas provas - a começar do exame de corpo de delito, quando efêmero o seu objeto, que, produzidas no curso do inquérito, são irrepetíveis na instrução do processo: porque assim verdadeiramente definitivas, a produção de tais provas, no inquérito policial, há de observar com rigor as formalidades legais tendentes a emprestar-lhe maior segurança, sob pena de completa desqualificação de sua idoneidade probatória. III. Reconhecimento fotográfico. O reconhecimento fotográfico à base da exibição da testemunha da foto do suspeito é meio extremamente precário de informação, ao qual a jurisprudência só confere valor ancilar de um conjunto de provas juridicamente idôneas no mesmo sentido: não basta para servir de base substancial exclusiva de decisão condenatória.
(HC 74751, Relator(a): Min. SEPÚLVEDA PERTENCE, Primeira Turma, julgado em 04/11/1997, DJ 03-04-1998 PP-00003 EMENT VOL-01905-03 PP-00405)
A natureza jurídica preliminar e cautelar do Inquérito Policial demonstra o sentido processual desse instrumento, o fim é o Judiciário, pois torna objetivo e seguro do ponto de vista técnico jurídico o livre convencimento do magistrado na valoração dos elementos migratórios.
É equivocado afirmar que o Inquérito Policial é preparatório da Ação Penal quando na verdade a ação penal é consequência lógica do Inquérito Policial que traz no seu bojo provas irrepetíveis, cautelares ou preliminares, nesses casos a Denúncia deve ser oferecida[11].
Estigmatizar o esforço investigativo policial como “meros atos de informação” só pode ser visto como ideologia inexistente no Código de Processo Penal e Legislação Especial sobre Polícia Investigativa/Judiciária com o objetivo de sucatear e assumir o Órgão Policial, façanha não sustentada abertamente, mas assumida na prática por interesses coorporativistas.
As provas irrepetíveis produzidas no bojo do Inquérito Policial vinculam a Denúncia, não há margem para independência funcional do órgão acusador estatal em razão do princípio da oficiosidade e da indisponibilidade dos interesses coletivos existentes em determinados bens jurídicos, princípio da legalidade estrita que vincula o agir dos servidores públicos. Lembre-se, o legislador processual penal exige, no mínimo, indícios de materialidade e autoria.
Podemos perceber a posição privilegiada no Inquérito Policial no contexto Processual Penal Brasileiro, iniciando cautelarmente a persecução penal e vinculando a Denúncia e a decisão do Juiz quando presentes elementos migratórios de materialidade e individualização de autoria, só podendo gerar absolvição se os mesmos forem obtidos ilegalmente ou derivados de uma prova ilícita, teoria do fruits of the poisonous tree[12] ou em processo incidente de falsidade documental Artigos 145 a 148 do CPP, do contrário, a opinio delicti decorrente do projeto e esforço investigativo do titular do Inquérito Policial prevalece para a condenação.
Referências:
[1] CÓDIGO DE PROCESSO PENAL LIVRO I – Do Processo em Geral (...) Título II – Do Inquérito Policial.
[2] Método de organização das coletas de informações e provas irrepetíveis realizadas pela Polícia Investigativa ou Judiciária.
[3] Luiz Flávio Gomes afirma que os elementos migratórios coletados no Inquérito Policial servem de sustentáculo para sentença condenateoria. São aqueles extraídos do inquérito policial e que podem servir de sustentáculo para eventual sentença condenatória.Existem três elementos migratórios no Brasil:a) provas irrepetíveis: são as de iminente perecimento, que são colhidas durante o inquérito policial por inviabilidade lógica da sua realização na fase processual: por exemplo, a constatação da embriaguez para os efeitos do artigo 306, CTB. c) provas cautelares: pautadas pela necessidade e urgência, como a interceptação telefônica, por exemplo.c) incidente de produção antecipada de prova: instaurado perante o juiz, mesmo durante o trâmite do inquérito, já fixando a prevenção. Cabe ao juiz convocar as futuras partes do processo e promover o respeito ao contraditório e ampla defesa. Exemplo: oitiva de uma testemunha que está prestes a deixar o país ou prestes a morrer. (https://professorlfg.jusbrasil.com.br/artigos/121928539/o-que-se-entende-por-elementos-migratorios-no-processo-penal)
[4] Art. 144. A segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, através dos seguintes órgãos:
I - polícia federal;
(...)
§ 1º A polícia federal, instituída por lei como órgão permanente, estruturado em carreira, destina-se a:
I - apurar infrações penais contra a ordem política e social ou em detrimento de bens, serviços e interesses da União ou de suas entidades autárquicas e empresas públicas, assim como outras infrações cuja prática tenha repercussão interestadual ou internacional e exija repressão uniforme, segundo se dispuser em lei;
II - prevenir e reprimir o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o contrabando e o descaminho, sem prejuízo da ação fazendária e de outros órgãos públicos nas respectivas áreas de competência;
III - exercer as funções de polícia marítima, aérea e de fronteiras;
IV - exercer, com exclusividade, as funções de polícia judiciária da União.
[5] Art. 4o A polícia judiciária será exercida pelas autoridades policiais no território de suas respectivas circunscrições e terá por fim a apuração das infrações penais e da sua autoria.
[6] Art. 1o Esta Lei dispõe sobre a investigação criminal conduzida pelo delegado de polícia.
(...)
§ 1o Ao delegado de polícia, na qualidade de autoridade policial, cabe a condução da investigação criminal por meio de inquérito policial ou outro procedimento previsto em lei, que tem como objetivo a apuração das circunstâncias, da materialidade e da autoria das infrações penais.
[7] Art. 10. A infiltração de agentes de polícia em tarefas de investigação, representada pelo delegado de polícia ou requerida pelo Ministério Público, após manifestação técnica do delegado de polícia quando solicitada no curso de inquérito policial, será precedida de circunstanciada, motivada e sigilosa autorização judicial, que estabelecerá seus limites. (grifo nosso)
[8] “Art. 2o-A. A Polícia Federal, órgão permanente de Estado, organizado e mantido pela União, para o exercício de suas competências previstas no § 1o do art. 144 da Constituição Federal, fundada na hierarquia e disciplina, é integrante da estrutura básica do Ministério da Justiça.
Parágrafo único. Os ocupantes do cargo de Delegado de Polícia Federal, autoridades policiais no âmbito da polícia judiciária da União, são responsáveis pela direção das atividades do órgão e exercem função de natureza jurídica e policial, essencial e exclusiva de Estado.”
[9] Art. 6 Logo que tiver conhecimento da prática da infração penal, a autoridade policial deverá: I – dirigir-se ao local, providenciando para que não se alterem o estado e conservação das coisas, até a chegada dos peritos criminais; II – apreender os objetos que tiverem relação com o fato, após liberados pelos peritos criminais; III – colher todas as provas que servirem para o esclarecimento do fato e suas circunstâncias;
[10] Art. 8 Havendo prisão em flagrante, será observado o disposto no Capí- tulo II do Título IX deste Livro.
[11] Art. 46. O prazo para oferecimento da denúncia, estando o réu preso, será de 5 dias, contado da data em que o órgão do Ministério Público receber os autos do inquérito policial, e de 15 dias, se o réu estiver solto ou afiançado. No último caso, se houver devolução do inquérito à autoridade policial (art. 16), contar-se-á o prazo da data em que o órgão do Ministério Público receber novamente os autos.
[12] Frutos da Árvore envenenada.
13)http://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/529749/codigo_de_processo_penal_1ed.pdf;
14) http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2014/lei/L13047.htm;
15) http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2011-2014/2013/Lei/L12830.htm;
16)http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/visualizarEmenta.asp?s1=000110882&base=baseAcordaos