1. Aferição dos critérios jurídicos para a utilização da prova e para a formação da convicção judicial
Quando se pensa na relação entre a prova e os tribunais não é possível esquecer da questão da impossibilidade do seu reexame por ocasião dos recursos especial e extraordinário.
Nessa linha, cabe lembrar a importância da prova para a formação da convicção judicial e, diante disso, do valor da imediatidade entre o juiz e a sua produção para uma prestação jurisdicional de maior qualidade. A imediatidade é privilégio do juiz de primeiro grau, embora isso não constitua obstáculo para a reapreciação dos julgados pelos tribunais mediante recurso de apelação, pois esses podem reexaminar a prova para formar a sua própria convicção sobre os fatos. Os tribunais, ainda que destituídos do benefício da imediatidade, estão autorizados a re-julgar a matéria de fato.
Os recursos especial e extraordinário, entretanto, não viabilizam novo exame da causa, nos moldes do recurso de apelação. Tais recursos têm âmbito restrito, permitindo apenas o reexame da solução que pode ter afrontado a lei federal (recurso especial – art. 105, III, CF) ou a Constituição Federal (recurso extraordinário – art. 102, III, CF).
Bem por isso, dizem as Súmulas 279 do Supremo Tribunal Federal e 7 do Superior Tribunal de Justiça 1 que os referidos recursos não permitem o reexame de prova. Ocorre que a doutrina e os tribunais têm tido dificuldades em precisar esse conceito.
O conceito de reexame de prova deve ser atrelado ao de convicção, pois o que não se deseja permitir, quando se fala em impossibilidade de reexame de prova, é a formação de nova convicção sobre os fatos. 2 Não se quer, em outras palavras, que os recursos extraordinário e especial viabilizem um juízo que resulte da análise dos fatos a partir das provas.
Acontece que esse juízo não se confunde com aquele que diz respeito à valoração dos critérios jurídicos respeitantes à utilização da prova e à formação da convicção. É preciso distinguir reexame de prova de aferição: i) da licitude da prova; ii) da qualidade da prova necessária para a validade do ato jurídico ou iii) para o uso de certo procedimento, iv) do objeto da convicção, v) da convicção suficiente diante da lei processual e vi) do direito material; vii) do ônus da prova; viii) da idoneidade das regras de experiência e das presunções, ix) além de outras questões que antecedem a imediata relação entre o conjunto das provas e os fatos, por dizerem respeito ao valor abstrato de cada uma das provas e dos critérios que guiaram os raciocínios presuntivo, probatório e decisório.
Note-se que o que se veda, mediante a proibição do reexame de provas, é a possibilidade de se analisar se o tribunal recorrido apreciou adequadamente a prova para formar a sua convicção sobre os fatos. Assim, por exemplo, é proibido voltar a analisar as provas que convenceram o tribunal de origem sobre a presença de culpa.
2. Prova, motivação e qualificação jurídica dos fatos
Como é óbvio, o problema do reexame da prova não possui relação com a falta de motivação e com a qualificação jurídica dos fatos.
A ausência de motivação constitui, por si só, violação do Código de Processo Civil e da Constituição Federal, pouco importando o conteúdo da decisão que deixou de ser motivada. Uma decisão que, além de não motivada, violou critério jurídico ao estabelecer uma presunção – por exemplo -, é, antes de tudo, violadora do dever de motivar. A motivação, por ser necessária à aferição do uso adequado da prova, configura razão suficiente para a impugnação da decisão.
Por outro lado, a qualificação jurídica do fato é posterior ao exame da relação entre a prova e o fato e, assim, parte da premissa de que o fato está provado. Por isso, como é pouco mais que evidente, nada tem a ver com a valoração da prova e com a perfeição da formação da convicção sobre a matéria de fato. 3 A qualificação jurídica de um ato ou de uma manifestação de vontade acontece quando a discussão recai somente na sua qualidade jurídica. Se a controvérsia diz respeito à qualificação de uma manifestação de vontade por instrumento público, é claro que sequer se chega perto de reexame de prova, pois aí não importa nem mesmo saber sobre a utilização da prova ou a respeito da formação da convicção sobre o fato, mas somente sobre a sua qualificação jurídica, vale dizer, se essa manifestação constitui reversão de doação, doação condicional ou doação "mortis causa" – por exemplo 4.
3. Prova essencial à validade do ato jurídico
De acordo com o art. 366. do CPC, quando a lei exigir, como da substância do ato, o instrumento público, nenhuma outra prova, por mais especial que seja, pode suprir-lhe a falta. Embora esse artigo fale de prova, o instrumento público aí exigido é dito da "substância do ato". Na verdade, trata-se do chamado documento substancial, que não se presta a provar, mas sim a constituir o direito.
Diante disso, se uma decisão dispensa o instrumento público diante de ato cuja existência dele depende, há evidente violação de lei federal, apta a ser corrigida mediante recurso especial. A alegação recursal de inexistência desse documento não enseja simples reexame de prova, mas sim a análise da existência do próprio ato.
4. Uso de prova incompatível com determinado procedimento
Como é sabido, o mandado de segurança não admite o uso de prova diferente da documental. Assim, caso se afirme, em sede de recurso especial, que uma decisão admitiu o uso de prova diversa da documental no mandado de segurança, há inquestionável alegação de violação de lei federal, sendo equivocado pensar em pretensão de simples reexame de prova.
Nesse caso, existe apenas aferição do valor da prova que fundou o julgamento do recorrido, e não reexame da prova para a verificação da procedência da convicção fática. 5
5. Discussão sobre a qualidade da prova necessária ao uso do procedimento
Além disso, o procedimento monitório requer a chamada prova escrita. O CPC alude apenas a "prova escrita sem eficácia de título executivo" (art. 1.102-a), sem dar qualquer outro indicativo desse conceito, deixando de precisar o conceito de prova escrita ou de apontar as provas que mereceriam o qualificativo de "escrita".
De modo que não deve ser rara a discussão a respeito de se a prova oferecida pelo autor da ação monitória realmente constitui "prova escrita". Aqui não importa, como é evidente, definir tal conceito, mas apenas evidenciar que ele pode ser discutido no caso concreto.
Nessa discussão não entra a questão de se saber se o juiz se convenceu adequadamente sobre os fatos, mas sim a de se o juiz poderia ter julgado com base em determinada prova - afirmada não merecedora do qualificativo de "escrita". 6 Nesse sentido, o que se coloca no recurso especial diz respeito à natureza da prova sobre a qual a decisão se apoiou. O enfrentamento da natureza da prova utilizada em concreto não pode ser confundido com a análise da convicção fática que a partir dela se formou.
6. Convicção de verossimilhança
O art. 273. do CPC fala em convicção de verossimilhança, conceito sobre o qual há sérias dúvidas na doutrina e nos tribunais, especialmente porque se pretende tratar desse conceito apenas em uma perspectiva processual, esquecendo-se da obviedade de que toda convicção incide sobre um objeto, o qual, nesse caso, pertence ao plano do direito material.
Portanto, pouco importa concluir que não se pode analisar, mediante recurso especial, a idoneidade da convicção de verossimilhança, pois ninguém discute que a convicção fática não pode ser reavaliada.
O que realmente importa é saber se os critérios jurídicos de formação da convicção de verossimilhança foram utilizados de maneira adequada, quando é imprescindível cogitar a respeito do objeto material da tutela antecipada. 7
Isso significa que a análise da convicção de verossimilhança requer, como antecedente lógico, a descoberta dos diferentes pressupostos das várias tutelas antecipatórias – ditas tutelas de urgência quando vistas somente em perspectiva processual. Tais tutelas têm diferentes pressupostos conforme sejam inibitória, de remoção do ilícito, de ressarcimento na forma específica e do adimplemento na forma específica – por exemplo. 8 Melhor explicando: a compreensão do conceito de convicção de verossimilhança depende da natureza da tutela antecipatória requerida, pois a convicção de verossimilhança, como acontece também com a convicção de verdade, não pode ser compreendida fora do caso concreto.
A tutela antecipatória pode ser preventiva ou repressiva e, nesse último caso, ter por objeto um ato contrário ao direito, um dano, um inadimplemento total ou um cumprimento imperfeito da obrigação. Não é preciso dizer que os pressupostos de cada uma dessas tutelas são completamente distintos.
Quando se alega, no recurso especial, que o tribunal recorrido deixou de devidamente analisar os pressupostos da tutela antecipatória não se cogita acerca de inadequada formação da convicção fática, mas sim de indevida consideração do direito material. Lembre-se que a tutela antecipatória pode ter como pressuposto (por exemplo): i) a probabilidade de vir a ser praticado ato contrário ao direito (tutela antecipatória inibitória), ii) a probabilidade de vir a acontecer dano (tutela antecipatória inibitória), iii) a probabilidade de ter ocorrido ato contrário ao direito (tutela antecipatória de remoção do ilícito), além do iv) fundado receio de dano que deve se juntar à probabilidade de ter ocorrido inadimplemento total ou cumprimento imperfeito (tutela antecipatória do adimplemento na forma específica). 9
Assim, se o Ministério Público requer, em ação civil pública, a apreensão liminar de produtos ilicitamente expostos à venda, e a decisão recorrida deixa de conceder a tutela antecipatória sob a alegação de inexistência de probabilidade de dano, há evidente violação do direito material, pois pressuposto dessa tutela antecipatória é a probabilidade de a exposição à venda constituir ilícito – ato contrário ao direito – e não a probabilidade de vir a ocorrer dano. 10
7. Desconsideração da convicção suficiente
Pior que isso é a desconsideração da convicção suficiente para a concessão da tutela antecipatória. O art. 273. do CPC, como dito, afirma expressamente que para a concessão dessa tutela basta a convicção de verossimilhança.
Não obstante, são freqüentes as decisões que não admitem a antecipação da tutela sob o argumento de inexistência de convicção de verossimilhança sem qualquer alusão e justificativa acerca das razões que levaram a tal conclusão. Quando isso ocorre pode inexistir apenas uma ilegítima despreocupação em relação ao objeto da convicção, mas muitas vezes a exigência de uma convicção que está além da verossimilhança, chegando perto a de verdade – necessária apenas para a procedência do pedido.
Acontece que o juiz, diante de requerimento de antecipação da tutela, não está autorizado a exigir uma convicção mais aprofundada que a estabelecida no art. 273. O respeito à convicção fixada como suficiente pelo legislador é uma garantia do jurisdicionado, que tem direito a obter a antecipação da tutela, no caso em que demonstra perigo, quando há "verossimilhança preponderante", isto é, quando o seu direito é mais verossímil que o do réu.
É claro que há ilegalidade quando o juiz expressamente afirma que é necessário convicção de verdade, pois há aí flagrante violação do ditado legislativo que lhe obriga a contentar-se com a verossimilhança. Mas, na generalidade dos casos de desconsideração da convicção de verossimilhança, o juiz supõe que essa convicção não está presente. Isso porque desconhece o significado dessa modalidade de convicção, especialmente porque está acostumado a raciocinar a partir da convicção de verdade.
A convicção de verossimilhança se expressa mediante a idéia de verossimilhança preponderante. Isso quer dizer que, no caso de perigo, o juiz deve analisar se o direito do autor é mais provável que o do réu, isto é, se a preponderância pende para o lado da parte autora. Em caso positivo, apenas poderá deixar de conceder a tutela na hipótese em que a sua concessão puder acarretar risco de prejuízo irreversível ao direito que, no caso concreto, tiver valor maior que aquele que o autor pretende ver imediatamente tutelado. Se o juiz deixar de conceder a tutela, mas dessa forma não raciocinar e motivar, a sua decisão terá violado o art. 273. do CPC.
Perceba-se que a aferição de tal violação não requer o reexame das provas, e portanto é cabível em sede de recurso especial. Não há como confundir reexame de prova para a formação da convicção com desconsideração da suficiência da "verossimilhança preponderante". No entanto, alguém menos avisado poderia argumentar que para a constatação da verossimilhança preponderante é preciso examinar as provas. Contudo, aqui se está tratando da hipótese em que o juiz nega ou não compreende que a verossimilhança preponderante é suficiente - violando o art. 273. - e não se concluindo que é possível reexaminar se as provas produzidas fizeram surgir convicção de verossimilhança.
8. Redução das exigências de prova e direito material
De lado a hipótese em que a convicção de verossimilhança é estabelecida na lei, existem situações de direito material que permitem ao juiz reduzir as exigências de prova, obviamente que justificando.
Isso acontece, quando a situação específica de direito material, para ser bem tratada, naturalmente requer a redução das exigências de prova. Nessas situações, o direito material não se compatibiliza com a convicção de verdade; a dificuldade de o autor provar o seu direito torna racional a admissão de uma convicção que não seja da mesma intensidade daquela usualmente exigida para a procedência do pedido.
Assim, por exemplo, nos casos de lesões pré-natais, em que não é possível exigir do autor a prova capaz de levar à convicção de verdade de que um acidente automobilístico foi o responsável pelo dano à saúde do recém-nascido. Do mesmo modo, na hipótese em que não se pode provar, de maneira a formar convicção de verdade, que a atividade da empresa ré é diretamente responsável pelo dano ambiental.
Agora não importa saber se a redução do módulo de prova é justificável nessas situações. O que interessa, nesse momento, é evidenciar que o juiz, ao reduzir o módulo da prova – evidentemente justificando -, pode violar a norma que impõe ao autor o ônus da prova. Na mesma perspectiva, quando a situação concreta permitir a conclusão de que não se pode solicitar algo mais do autor, a decisão violará a regra do ônus da prova ao deixar de reduzir as exigências de prova.
Por isso, o recurso especial pode tratar da questão da redução do módulo de prova, sem que se possa pensar que o seu enfrentamento possa significar reexame de prova. No recurso especial é possível discutir a questão de se a decisão poderia, ou não, ter reduzido a convicção usualmente necessária para a procedência do pedido.
9. Inversão do ônus da prova, verossimilhança da alegação e hipossuficiência
O art. 6º, VIII, do CDC admite a inversão do ônus da prova em duas situações: i) no caso de verossimilhança da alegação e ii) na hipótese de hipossuficiência.
A decisão respeitante à verossimilhança da alegação somente é possível por ocasião da sentença. Nessa ocasião, tratando-se de relação de consumo, o juiz deve julgar procedente o pedido quando a alegação do autor for verossímil. Em tal caso, fala-se que o juiz deve inverter o ônus da prova. Entretanto, a força das palavras não é capaz de eliminar a realidade, uma vez que a constatação de verossimilhança é que permite o julgamento de procedência, até porque é irracional pensar em inverter o ônus da prova quando a instrução já acabou. De qualquer forma, é de inversão do ônus da prova que se fala quando se conclui que a alegação é verossímil.
No outro caso, de hipossuficiência, deve-se entender que hipossuficiente é aquele que, diante do caso concreto, possui grande dificuldade de produzir a prova, assim justificando a inversão do ônus da sua produção, que, por isso mesmo, evidentemente deve ser feita na audiência preliminar para dar à parte - que em princípio não está gravada com o ônus - a oportunidade de produzi-la.
Embora tais possibilidades tenham sido estabelecidas no CDC, são aplicáveis a todas as situações de direito material que tenham as mesmas peculiaridades do direito do consumidor. Mas, pretende-se aqui apenas demonstrar que a decisão que trata da inversão do ônus da prova pode ser objeto de recurso especial.
Não se diga, como já fez o STJ, que "o indeferimento do pedido de inversão do ônus da prova na origem, por não se tratar de hipossuficiência, mas, também, pela impossibilidade de se aferir da razoabilidade da verossimilhança das alegações do consumidor, conceito de índole fático-probatório, atrai a censura da súmula 7 do STJ, impedindo o conhecimento do especial, manejado sob o fundamento de maltrato ao art. 6o, VIII do CDC". 11 Lembre-se de que os critérios da hipossuficiência e da verossimilhança da alegação são autônomos, o que significa que, para a inversão do ônus da prova, ambos não precisam estar presentes. O juiz, para decidir sobre a hipossuficiência, deve considerar apenas a dificuldade de produção de prova.. Portanto, a decisão a respeito de hipossuficiência não pode impedir o especial sob o argumento de impossibilidade de reexame de prova. Além disso, como dito no item anterior, não há como confundir exame de prova para a formação da convicção de verossimilhança com redução das exigências de prova para a procedência do pedido ou para a inversão do ônus da prova na sentença.
Decidir sobre a inversão do ônus da prova requer a consideração do direito material e das circunstâncias do caso concreto, ao passo que a formação da convicção nada mais é que a análise da prova e dos demais argumentos. Inverter o ônus da prova não está sequer perto de formar a convicção com base nas provas. Assim, o recurso especial pode afirmar que a decisão que tratou do ônus da prova violou a lei, o que evidentemente não requer o reexame das provas. 12
10. Determinação da credibilidade da prova
O juiz, antes de valorar as provas, deve estar certo de que a prova é idônea para formar o seu convencimento. Prova idônea, nesse sentido, é a que passou pelo teste de credibilidade. Para o juiz decidir sobre a credibilidade de uma prova, deve enfrentar certos critérios, precisamente determinadas regras de experiência. São as regras de experiência que devem guiar a aferição da credibilidade da prova.
Quando essa aferição for explícita, seja em razão de contradita da testemunha, seja em virtude de alguma circunstância a ter exigido, o juiz deve precisar a solidez da regra de experiência utilizada, justificando a sua aplicação no caso concreto.No caso em que tal aferição não tiver sido explicitada – e não houver violação ao dever de motivação -, ainda assim será possível dizer que a prova, diante de sua evidente inidoneidade, não poderia ter sido valorada para formar a convicção judicial.
Em qualquer uma dessas hipóteses, não há como negar a possibilidade de se discutir eventual violação do direito à prova em razão de incorreta aferição da sua credibilidade. Não ocorrerá, nessas situações, reexame de prova, mas sim a verificação de se a prova poderia ter sido valorada.
Analisar se uma prova poderia provar não é o mesmo que examinar a convicção que a decisão recorrida formou a partir das provas valoradas. Em tais circunstâncias, o recurso ficará limitado à análise de uma regra de experiência, ou seja, de uma regra de juízo, pois a análise da credibilidade da prova não poderá ser feita quando, para se determinar a sua própria credibilidade, houver a necessidade de reexame de provas, como pode ocorrer diante da contradita.