Não é absurdo imaginar que a desapropriação seja a forma mais enérgica de intervenção do Estado na propriedade. Com efeito, consiste ela na transferência compulsória de propriedade alheia ao patrimônio do Estado, o que ocorre nas hipóteses de alegado interesse público, sob pena de desvio de finalidade. É uma aquisição de propriedade originária, mediante o devido processo legal e que, à evidência, normalmente ocorre mediante indenização.
Digo originária, porquanto não depender da vontade do titular da propriedade. É, ademais, um procedimento pautado no devido processo legal para não configurar desapropriação indireta. Finalmente, pressupõe, normalmente, indenização, já que há casos em que a Constituição sequer garante tal direito, prevendo, assim, verdadeiras desapropriações sancionatórias.
Sobre o tema, DIRLEY DA CUNHA JÚNIOR afirmar ser a desapropriação a transferência compulsória da propriedade privada (ou pública de entidade de grau inferior para a superior) para o Estado ou seus delegados, por utilidade ou necessidade pública ou, ainda, por interesse social, mediante a paga de justa e prévia indenização em dinheiro (art. 5º, XXIV), salvo as exceções constitucionais de pagamento em título da dívida pública de emissão previamente aprovada pelo Senado Federal, no caso de área urbana não edificada, subutilizada ou não utilizada (art. 182, §4º, III) e de pagamento em títulos da dívida agrária, no caso de reforma agrária, por interesse social (art. 184).1
A verdade é que a propriedade é garantida pela Constituição Federal de modo preciso em seu art. 5º, XII. Entrementes, o aludido direito não se constitui por absoluto, devendo o seu detentor, ao fim e ao cabo, promover o bem-estar da coletividade, dando uma conotação social à propriedade. Com isto, o Estado [Social] está legitimado a intervir na propriedade alheia caso esta não esteja servindo ao bem comum da coletividade.
Nesta senda, o Supremo Tribunal Federal – STF, por ocasião do julgamento da ADI 2.213 MC, da relatoria do Min. CELSO DE MELLO (julgamento aos 04/04/02), afirmou que “o direito de propriedade não se reveste de caráter absoluto, eis que, pesa grave hipoteca social, a significar que, descumprida a função social que lhe é inerente (CF, art. 5º, XXIII), legitimar-se-á a intervenção estatal na esfera dominial privada, observados, contudo, para esse efeito, os limites, as formas e os procedimentos fixados na própria Constituição da República. O acesso à terra, a solução dos conflitos sociais, o aproveitamento racional e adequado do imóvel rural, a utilização apropriada dos recursos naturais disponíveis e a preservação do meio ambiente constituem elementos de realização da função social da propriedade.”.
Diga-se, por derradeiro, que o posicionamento da Corte não se constitui em uma novidade. Ora, desde a Constituição Imperial de 1824 que o direito de propriedade é garantido, ao tempo em que, ao Estado, igualmente, é garantido o direito de promover a intervenção, mediante desapropriação. Nas constituições posteriores [Republicanas], a propriedade é garantida, com a ressalva da desapropriação. Assim, o Supremo reafirma a visão constitucional do direito à propriedade, seja ela material ou não.
Pois bem, como tido alhures, ao promover a desapropriação, o Estado deverá dar uma destinação pública ao bem. Com isto, caso haja o emprego do bem expropriado em finalidade diversa da declarada pelo Ente, haverá desvio de finalidade do ato [administrativo] que promovera a declaração de utilidade ou necessidade pública ou, ainda, interesse social. E, como é de conhecimento de todos, ao lado da forma, objeto, motivo e competência, a finalidade é elemento que compõe a estrutura dorsal dos atos administrativos.
Porém, na desapropriação, o desvio de finalidade, com a afetação do bem expropriado a escopo diverso daquele constante no ato expropriatório, é chamado de tredestinação, e ela, a seu turno, pode ser lícita ou ilícita. Se o Ente expropriante emprega a propriedade objeto da intervenção em finalidade diversa da anteriormente declarada, porém, mantendo, ao fim, o atendimento ao bem-estar coletivo, haverá tredestinação lícita. Do contrário, a tredestinação será ilícita, nascendo para o particular o direito de reaver, para si, a sua anterior propriedade, ante o desvio de finalidade consubstanciado na conduta ilícita praticada pelo Estado em não empregar o bem aos reclamos da sociedade. A isto nós chamamos de direito à retrocessão.
Segundo o Superior Tribunal de Justiça – STJ, apenas a tredestinação ilícita acarreta a retrocessão, pois na tredestinação lícita o Poder Público concede destinação pública ao bem, ainda que diversa da inicialmente programada (STJ, 1ª Turma, REsp 968.414/SP, Rel. Min. Denise Arruda, DJ 11.10.2007).
Mas, indaga-se: se o Ente Federativo promover a desapropriação e, após, ficar omisso quanto à destinação do bem? Em outras palavras, se o Estado desapropriar bem imóvel, mas não der a ele nenhuma destinação, haverá, ainda assim, tredestinação? O particular poderá exercer o seu direito à retrocessão?
A omissão estatal ou sua simples demora em atender o interesse faz nascer o fenômeno da ADESTINAÇÃO.
Mas, a Adestinação é capaz de configurar tredestinação?
RAFAEL CARVALHO REZENDE OLIVEIRA2 pondera:
“Primeira corrente (majoritária): a mera omissão do Estado não configura tredestinação e não gera direito à retrocessão. Em razão da ausência de prazo legal para destinação pública do bem desapropriado, apenas por meio de ato concreto e comissivo, que deixe clara a intenção de não utilizar o bem na satisfação do interesse público, será possível falar em tredestinação. Nesse sentido: JOSÉ DOS SANTOS CARVALHO FILHO, CELSO ANTÔNIO BANDEIRA DE MELLO, MARIA SYLVIA ZANELLA DI PIETRO e JOSÉ CARLOS DE MORAES SALLES.
Segunda corrente: apesar de não haver prazo estipulado, em regra, na legislação, para que o Poder Público conceda destinação pública ao bem desapropriado, seria possível a aplicação analógica do prazo de caducidade do decreto expropriatório. De acordo com esse raciocínio, na desapropriação por utilidade pública ou necessidade pública, o prazo seria de cinco anos (art.10, do Decreto-lei 3.365/11941). Caso a omissão permaneça, ao final do prazo de cinco anos estaria configurada a tredestinação, nascendo o direito à retrocessão. Nesse sentido MIGUEL SEABRA FAGUNDES.”
Logo, para a maioria da doutrina, a Adestinação não configura tredestinação e não gera direito à retrocessão pelo expropriado.
Agora vejamos situação diversa: se o bem, após sua desapropriação e incorporação ao patrimônio do expropriante é, inicialmente, afetado à finalidade pública, mas, tempos após, é desafetado, poder-se-á afirmar que esta desafetação faz nascer o direito à retrocessão?
O caso em vertente exemplifica o instituto da DESDESTINAÇÃO e, para doutrina majoritária, não gera direito à retrocessão. Afinal de contas, o bem foi empregado no atendimento à finalidade pública, sendo, somente depois, desafetado. Assim, como o bem chegou a ser utilizado na satisfação do interesse público, não há problema. Aqui, no entanto, fica um alerta: tal premissa só é válida se não houver vício no procedimento da desafetação.
Então, fique atento:
-
A TREDESTINAÇÃO é o desvio de finalidade por parte do Poder Público que utiliza o bem desapropriado para atender finalidade ilegítima. Quando ilícita, gera o direito à retrocessão.
-
Outrossim, a ADESTINAÇÃO significa a ausência de qualquer destinação ao bem desapropriado, revelando hipótese de completa omissão do Poder Público. Como dito, não gera direito à retrocessão.
-
Por fim, a DESDESTINAÇÃO envolve a supressão da afetação do bem desapropriado. Aqui, o bem desapropriado é inicialmente afetado ao interesse público, mas, posteriormente, ocorre a desafetação. Nesse caso, não há que se falar em retrocessão, pois o bem chegou a ser utilizado na satisfação do interesse público3.
Notas
1 CUNHA JÚNIOR, Dirley da. Curso de Direito Constitucional. 11ª ed. rev. ampl. e atual. – Salvador : JusPODIVN, 2017; p. 634.
2 OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende Oliveira – 4. ed. ver., atual. e ampl. – Rio de Janeiro : Forense; São Paulo : MÉTODO, 2016, p. 608. e 609.
3 OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende Oliveira – 4. ed. ver., atual. e ampl. – Rio de Janeiro : Forense; São Paulo : MÉTODO, 2016, p. 610.