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Abandono afetivo parental e suas implicações no mundo jurídico

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5 AJUIZAMENTOS E DIVERGÊNCIAS NAS DECISÕES JUDICIAIS

Diante dos danos sofridos pela criança/adolescente pela omissão de cuidados inerentes ao seu desenvolvimento, observa-se na contemporaneidade um caminho para o surgimento de modificações no ordenamento jurídico devido às complexidades nas relações sociais. Dentre elas, o Direito da Família, que procura organizar-se e inovar-se para defender a família, sendo essa o cerne, a raiz e fonte para formação de todas as outras estruturas sociais existentes dentro da sociedade.

O abandono afetivo não é um fato novo no mundo jurídico, mas recentemente vem tendo novas repercussões na vara da família, como objeto de danos materiais e morais. Como dito anteriormente, o abandono afetivo não é um fato que restringe a nossa atualidade, pois coexiste em nossa sociedade há muito tempo e, por conseguinte, ignorado e visto como um problema que não cabia ao Estado intervir ficando apenas na esfera familiar. A não intervenção foi marcada por uma distorção errônea do conceito de afetividade, o qual era associado exclusivamente ao ato de amor e carinho. Dessa forma, muitos casos levados aos tribunais foram negados pelos juristas, por colocações inadequadas no conteúdo das teses, nas quais o pedido de Responsabilidade Civil era devido à falta de amor, provocando, assim, uma interpretação equivocada a respeito do abandono afetivo.

Para uma melhor compreensão do conteúdo posterior se faz necessário elucidar o que é Responsabilidade Civil e quais suas implicações jurídicas dentro do tema aqui discutido. A Responsabilidade Civil parte da premissa de que o sujeito que violar o direito jurídico por meio de ato lícito, bem como ilícito tem o dever de repará-lo, pois todos possuem a obrigação jurídica de não causar danos a outrem, caso viole esse direito originário, acarreta em um direito consecutivo de compensar o dano causado. Tal responsabilidade emerge dos fatos jurídicos existentes na sociedade, sendo esses acontecimentos da vida de interesse do Direito. São fatos nos quais ele pode ou deve interferir. Podem esses serem provocados por causas naturais, pela força da natureza, nascimento, morte, tempestade, voluntário entre outros. Sendo esse último o que nos interessa. E, como o nome indica, é decorrente das condutas dos humanos, podendo ser lícitas e ilícitas, ou seja, aqui se faz presente a manifestação de vontade por parte do sujeito que o pratica.

Assim, entende-se por lícitos os fatos jurídicos praticados em consonância com as leis, produzindo resultados em conformidade com o ordenamento jurídico. Por sua vez, os atos ilícitos, ao contrário do anterior, estão em desconformidade com a lei, provocando efeitos que, de acordo com as normas, são passíveis de reparação por parte do autor.

Nesse sentido, o Código Civil Brasileiro de 2002 estabelece em seu artigo 186 que: “Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito” (BRASIL, 2015, p. 167). Também, o artigo 927 evidencia a obrigação daquele que praticou ato ilícito e causou danos a terceiros, de reparar. Dessa forma, fica claro o direito de reparação quando o ato praticado por um indivíduo provoca danos a outro, podendo ser tanto de caráter material como imaterial.

Cabe destacar que se compreende por dano material o prejuízo causado ao bem jurídico de valor econômico, no qual pode ser por agressão direta à vítima, tendo como consequência a produção de despesas médicas, assim como o detrimento de seus bens patrimoniais. Já o dano imaterial, ao contrário do citado a priori, está relacionado a todos os direitos da personalidade, como a vida privada, liberdade, honra e imagem das pessoas; os quais, segundo Bittar (1995, p. 11) são "direitos inatos (originários), absolutos, extrapatrimoniais, intransmissíveis, imprescritíveis, impenhoráveis, vitalícios, necessários e oponíveis erga omnes”.

A partir disso, nota-se a importância dada aos direitos inerentes de cada pessoa, bem como seus deveres, uma vez que ninguém pode violar os direitos de outrem e, caso isso ocorra, a devida reparação deverá ser feita, como reza a Constituição Federativa Brasileira de 1988. Caminhando nessa vertente, atualmente os casos de abandono afetivo levados aos tribunais trilham em busca de reparação por danos sofridos contra a dignidade humana, pertencente ao rol dos direitos da personalidade, sendo esses, imprescindíveis para formação dos infantes de forma plena para constituição de uma personalidade em que se tornem cidadãos atuantes, responsáveis e coerentes.

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Dentro desse contexto, constata-se que não é possível obrigar um pai a amar um filho, pois amor não é dever e, consequentemente, não é direito. Ou seja, o não amar não pode gerar indenização, visto que nos ditames da lei não é considerado ilícito. Pode-se apurar isso no artigo 5º da Constituição Federal do Brasil, em seu inciso II: “Ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei. ” (BRASIL, 2011, p. 15). Logo, os pedidos feitos baseados nessa vertente não poderiam ser aceitos por não serem abarcados pela lei. Entretanto, a visão que se apresentava nos tribunais sobre o abandono afetivo ganhou novas nuances por meio de teses que explicitam em seu corpo o pedido de responsabilidade civil com colocações e termos coerentes ao significado real do abandono afetivo. A conduta do pai que abandona seu filho é considerada ato ilícito. Para o autor Paulo Lôbo:

A condenação de hoje pelo dano moral causado no passado, tem imensurável valor propedêutico para evitar ou arrefecer o abandono afetivo do futuro, para que pais irresponsáveis pensem duas vezes antes de usar seus filhos como instrumento de vingança de suas frustrações amorosas. (LÔBO, 2011, p. 377).

De acordo com Romualdo Baptista dos Santos: “A afetividade é um fenômeno psíquico inerente a todos os seres humanos e, por essa razão, produz consequências para o mundo jurídico, constituindo um valor a ser protegido” (SANTOS, 2011, p. 51).

Por meio dessa visão, vale dizer que os novos pedidos não se embasam na obrigação de amar, mas sim na de cuidar, que é de caráter objetivo e está prevista em lei. Logo, assim que provados os danos morais e materiais sofridos pelo descumprimento dessa obrigação na vida dos filhos, o genitor pode ser obrigado a pagar indenizações, segundo decisões judiciais.

Quando se trata de reparação do abandono afetivo por meio de indenização, não se aplica diante de qualquer situação corriqueira e descabida. Para tanto, é imprescindível a reunião de alguns elementos que comprovem o dano. Primeiramente, deve existir o ato ilícito, o qual é caracterizado pela ausência de cuidados por parte dos genitores. Por conseguinte, deve haver o nexo de causalidade, a relação entre a causa e a consequência, a culpa e, por fim, a existência do dano. Ou seja, os prejuízos sofridos pela criança/adolescente pela ausência dos pais em sua formação enquanto indivíduo. O dever parental de cuidar do filho está previsto no ordenamento civil, em seu artigo 1.634, no que tange à competência dos pais em relação aos filhos:

Compete aos pais, quanto à pessoa dos filhos menores: I - dirigir-lhes a criação e educação, II – tê-los em sua companhia e guarda; III - conceder-lhes ou negar-lhes consentimento para casarem; IV- nomear lhes tutor por testamento ou documento autêntico, se o outro dos pais não lhe sobreviver, ou sobrevivo não puder exercer o poder familiar; V– representá-los, até aos 16 (dezesseis) anos, nos atos da vida civil, e assisti-los, após essa idade, nos atos em que forem partes, suprindo-lhes o consentimento; VI - reclamá-los de quem ilegalmente os detenha; e VII- exigir que lhes prestem obediência, respeito e os serviços próprios de sua idade e condição. (BRASIL, 2015, p. 263).

Encontra-se respaldo, ainda a esse respeito, no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) artigo 4°:

É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária. (BRASIL, 2003, p. 13).

Assim, a lei prevê claramente os cuidados que os pais devem ter para com seus os filhos, como zelar pelo desenvolvimento moral, intelectual e espiritual. Por meio das normas explicitadas é evidente que o abandono afetivo está na seara da objetividade, está no agir e não na questão sentimental. Trata-se da negligência do ato de cuidar, de educar e de acompanhar os filhos, sendo essas ações fundamentais para a formação ampla do indivíduo, enquanto homem e mulher. Como assevera o Código Civil, em seu artigo 927, qualquer dano causado a outrem, deve ser reparado por quem o praticou. (BRASIL, 2015, p. 208).

Pode-se vislumbrar a nova visão acerca do abando afetivo por meio do acórdão proferido em 24/04/2012 em decisão do Superior Tribunal de Justiça, cuja relatoria coube à Ministra Nancy Andrighi, em que o abandono afetivo, sob uma nova leitura, é apresentado ao judiciário como “abandono moral” do pai para com o filho, rompendo as fronteiras da subjetividade e sedimentando-se na seara da objetividade. O acórdão versa sobre uma ocorrência de abandono afetivo de um pai em relação à filha. Houve condenação no pagamento de indenização por dano moral e, entre os fundamentos utilizados para tal decisão, está a ausência de cuidado do pai que, no contexto, assumiu status de obrigação legal, dando resposta ao empecilho postulado quando trata-se de abandono afetivo: o de que não pode-se obrigar ninguém a amar.  A ausência do cuidado, que no contexto assumiu status de obrigação legal, dando resposta. Dessa forma, ao empecilho tantas vezes postulado quando se trata de abandono afetivo: o de que não se pode obrigar ninguém a amar (STJ, 3ª Turma, REsp n° 1.159.242/SP, Julg.: 24.04.2012, DJe: 10/05/2012):

Aqui não se fala ou se discute o amar e, sim, a imposição biológica e legal de cuidar, que é dever jurídico, corolário da liberdade das pessoas de gerarem ou adotarem filhos. O amor diz respeito à motivação, questão que refoge os lindes legais, situando-se, pela sua subjetividade e impossibilidade de precisa materialização, no universo meta-jurídico da filosofia, da psicologia ou da religião. O cuidado, distintamente, é tisnado por elementos objetivos, distinguindo-se do amar pela possibilidade de verificação e comprovação de seu cumprimento, que exsurge da avaliação de ações concretas: presença; contatos, mesmo que não presenciais; ações voluntárias em favor da prole; comparações entre o tratamento dado aos demais filhos – quando existirem –, entre outras fórmulas possíveis que serão trazidas à apreciação do julgador, pelas partes. Em suma, amar é faculdade, cuidar é dever. (BRASIL, 2012, online).

Em decorrência da decisão proferida, trouxeram-se à tona subsídios que passaram a colaborar com a solução de casos que chegam com frequência à vara da família, já que o ordenamento jurídico brasileiro não possui uma legislação específica que trata sobre o abandono afetivo, precisando recorrer ao Código Civil e ao Estatuto da Criança e do Adolescente para fundamentar as decisões. Observa-se, também, a evidente contribuição para o Direito da Família, pois em razão contrária da que muitos pensam, uma das maiores queixas do genitor que detém a guarda dos filhos, segundo estimativas, não é exclusivamente sobre a pensão alimentícia que, por sinal, é necessária para a manutenção das necessidades básicas do filho, e sim, em relação à negligência do pai ou da mãe na obrigação de cuidar e acompanhar a prole nos momentos considerados mais importantes como o dia do aniversário e reunião de pais no colegial.

Momentos esses que contribuem para a formação da personalidade do indivíduo e que a falta pode provocar danos sócio-psicológicos. Em contrapartida, alguns pesquisadores da área jurídica temem a possibilidade do perigo da monetarização, visto que pode ser usada como um instrumento nefasto, fazendo do abandono afetivo uma indústria de indenizações. Conforme o ministro Fernando Gonçalves refere:

A admissão desta indenização por dano moral estaria enterrando em definitivo a possibilidade de um pai buscar o amparo do amor dos filhos e, assim, nenhuma finalidade positiva seria alcançada com a indenização pleiteada, pois escapa ao arbítrio do Judiciário obrigar alguém a amar, ou a manter um relacionamento afetivo. (GONÇALVES, 2005, online).

Para Giselda Hironaka, toda alteração de paradigmas, em um primeiro momento, gera efeitos divergentes:

Ora, toda alteração paradigmática é sempre muito complicada, polêmica e gera efeitos divergentes. Se for certo que o mundo e a vida dos homens estão em transição contínua, também será verdade que a mudança causa sempre uma expectativa que, por um lado, é ser eufórica, mas por outro lado, preocupante. E não poderia ser diferente agora, diante deste assunto – tão delicado quanto difícil – que é a responsabilidade civil por abandono afetivo. Tanto a sociedade quanto a comunidade jurídica propriamente dita têm reagido de maneira dúplice em face do tema em destaque. (HIRONAKA, 2005, online).                                                     

No entanto, é visto que diante de qualquer inovação no ordenamento jurídico, cujo objetivo seja atender às novas necessidades e transformações ocorridas no seio da sociedade, abre-se espaço para supostos oportunismos e interpretações deturpadas. Entretanto, as leis em sua posição de dinamicidade, na qual se modifica para abarcar e dirigir as relações dos homens que estão sempre em processo de progressão, não pode retroceder diante de futuros entraves que possam surgir. Para tanto, cabe enfatizar o papel fundamental dos juízes mediante ao perigo da monetarização, uma vez que são eles que terão que analisar atentamente cada caso na sua singularidade e verificar se de fato houve danos pelo abandono afetivo e se cabe ao genitor indenizar ao filho como forma de reparação. Lembrando, também, que é a eles que correspondem a árdua e necessária função de agentes transformadores dos valores jurídicos, de molde a adequar o Direito aplicado aos paradigmas da atualidade. No que diz respeito aos advogados, urge alertar-se para a necessidade de que façam sempre e cuidadosamente uma séria e profunda análise ética dos fatos de cada caso, a fim de apurar se existe efetiva presença de danos causados ao filho pelo abandono afetivo paterno ou materno, se for o caso, antes da propositura de tais ações. No entanto, o mais importante é que o medo da monetarização não seja mais um dos grandes óbices que têm cegado na compreensão daquilo que verdadeiramente pode ser considerado como nobre e essencial nessa conquista jurisprudencial tão significativamente corajosa e inovadora.

Sobre os autores
Luiz Roberto Prandi

Doutor em Ciências da Educação-UFPE Mestre em Ciências da Educação-UNG Especialista em: Metodologia do Ensino Superior Metodologia do Ensino de Filosofia e Sociologia Gestão Educacional Gestão e Educação Ambiental Educação Especial: Atendimento às Necessidades Especiais Educação Especial: Com Ênfase na Deficiência Múltipla Educação do Campo Gênero e Diversidade Escolar Professor Titular/Universidade Paranaense - UNIPAR

Valdir Francisco Pereira

Especialista na área de Educação Especial e em Gestão e Docência na modalidade de Educação à Distância. Graduado em História pela Universidade Paranaense e graduando do curso de Direito pela Universidade Paranaense.

Informações sobre o texto

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