5. Competência legislativa
A efetividade do direito à educação depende da existência de toda uma estrutura que permita a organização do sistema educacional. No Estado de Direito, a previsão legal é o mecanismo apto a definir essa estrutura.
A competência legislativa em matéria educacional na Constituição Federal se encontra na previsão do artigo 22, XIV, que consagra competência legislativa privativa da União para legislar sobre diretrizes e bases da educação nacional e na competência concorrente da União, dos Estados e do Distrito Federal para legislar sobre educação, cultura, ensino e desporto, prevista no artigo 24, IX.
Conforme salienta Ranieri (2000, p. 107) a lei de diretrizes e bases da educação tem conteúdo preciso, apontando para idéia de "fundamento, organização, condições de exeqüibilidade". É a lei de diretrizes e bases que traça a estrutura da educação nacional.
Na medida em que estrutura a educação nacional, a lei de diretrizes e bases não é exaustiva. Nesse ponto, constata-se uma impropriedade técnica em situar a lei de diretrizes e bases no rol de competências legislativas privativas da União. Essa modalidade de competência tem como característica permitir legislar de modo pleno, sem limitações de amplitude. Essa a razão da previsão do parágrafo único do artigo 22, acerca da possibilidade de delegação de competência para tratar de questões específicas.
Ranieri (2000, p. 111) demonstra que, em verdade, a competência para legislar sobre diretrizes e bases não é, em sua natureza, privativa, mas concorrente.
Quanto à competência prevista no artigo 24, IX, à União caberá editar normas gerais sobre educação e ensino, e aos Estados e Distrito Federal o estabelecimento de normas suplementares. Dessa forma, há um regramento sucessivo, dupla legislação em graus distintos, uma genérica e outra suplementar (Ranieri, 2000, p. 103).
Como corolário das competências legislativas, a estrutura do sistema educacional brasileiro assenta sobre o modelo do Estado Federal. Nesse sentido, percebe-se que a lei de diretrizes e bases da educação nacional representa o regramento em nível nacional, correspondendo à articulação e coordenação dos sistemas de ensino. Por outro lado, a competência para edição de normas em matéria de educação e ensino prevista no artigo 24, IX garante a atuação dos Estados no tratamento de questões específicas, importante instrumento para atender a variedade de situações decorrentes da extensão e das desigualdades do País.
O que é interessante nessa temática é demonstrar que a definição de competências legislativas, e conseqüentemente a vinculabilidade das normas em matéria educacional está intimamente ligada à fundamentação e estrutura teórica do modelo federativo adotado. Ou seja, não existe relação de subordinação e critério de hierarquia, mas relação de coordenação e critério de competência (Ranieri, 2000, p. 106).
Em que pese o papel articulador e coordenador da União, há amplo espaço para atuação das esferas estadual, municipal e distrital, regulamentando as questões dos respectivos sistemas de ensino. Essa é questão de grande relevância, na medida em que garante não só tratamento de especificidades, mas também porque permite variedade de experiências e de modelos inerentes e indispensáveis, em última análise, para o próprio desenvolvimento e aprimoramento do processo educacional.
No papel de coordenação e articulação, cabe à União estabelecer o plano nacional de educação, cujos objetivos estão definidos no artigo 214 da Constituição Federal.
6. Organização dos sistemas de ensino
Se a existência de esferas de atuação na organização da educação nacional é corolário lógico do modelo de repartição de competências legislativas, por outro lado também decorre de expressa previsão constitucional, conforme artigo 211.
Ranieri (2000, p. 118) demonstra que o sentido da expressão sistema de ensino agrega "tanto o conjunto de instituições educacionais (compreendidos os elementos materiais e humanos que as compõem), como as normas nacionais editadas pela União e as normas especiais que o vinculam a tal ou qual ente federado".
A organização dos sistemas de ensino está alicerçada na definição de áreas prioritárias de atuação e na preocupação em instituir um regime de colaboração entre os mesmos. Nessa ordem de idéias, aos Municípios compete atuar prioritariamente no ensino fundamental e no ensino infantil, os Estados3 e o Distrito Federal no ensino fundamental e médio.
O papel da União não se limita à organização de seu sistema de ensino, mas se vincula especialmente a uma função redistributiva e supletiva, com o objetivo de garantir equalização de oportunidades e padrão mínimo de qualidade. Assim, não existe uma área de atuação prioritária para a União, pois em verdade lhe cabe atuar, ainda que em caráter de apoio técnico e/ou financeiro, em todos os níveis.
Não obstante, em virtude da definição de áreas prioritárias para os Estados e Municípios, em caso de ausência de oferta de ensino superior por este entes, caberá à União incumbir-se dessa tarefa em caráter residual.
Ranieri (2000, p. 123) destaca a discussão acerca da existência de um sistema nacional, abrangendo os sistemas estaduais, distrital e municipais. De uma perspectiva sociológica parece-lhe inegável a existência desse sistema nacional, mas não com um caráter de supremacia sobre os demais e sim inserido no contexto de cooperação e inter-relacionamento decorrente do federalismo cooperativo, cuja expressão maior decorre da previsão constitucional do artigo 214 de um plano nacional de educação.
Embora não propriamente vinculada aos sistemas de ensino, merece referência a previsão de competência comum do artigo 23, V, que determina a todos os entes da federação proporcionar os meios de acesso à cultura, à educação e à ciência. Mais uma vez se determina dever coletivo de todos os entes federativos e por conseqüência se reforça a necessidade de atuação articulada e conjunta, visando otimizar resultados. As iniciativas de proporcionar os meios de acesso abrangem desde a manutenção de instituições de ensino até medidas concretas de garantia de condições de acesso à escola, como transporte, material didático e merenda4.
No âmbito da organização dos sistemas de ensino, o dispositivo do artigo 210 demonstra tanto a preocupação com o papel da educação em promover a integração nacional, como com a preservação das peculiaridades regionais, mediante previsão de conteúdos mínimos para o ensino fundamental, visando formação básica comum e respeito a valores culturais e artísticos, nacionais e regionais. Nesse aspecto, até mesmo a especificidade da cultura indígena é tutelada, nos termos do parágrafo 2º.
Cabe registro que a previsão do ensino religioso, nos termos do parágrafo 1º do artigo 210, deve estar coadunada com a liberdade religiosa e despida de vinculação com qualquer espécie de credo ou religião. Sua função é complementar à formação do indivíduo, vinculada ao seu desenvolvimento espiritual, indispensável ao pleno desenvolvimento da pessoa humana almejado pelo artigo 205.
7. Autonomia Universitária
Ranieri (1994, p. 15), aponta a definição de autonomia formulada por João Mendes de Almeida Júnior, como "direção própria do que é próprio".
A autonomia universitária é instrumento a serviço do bom desempenho da atividade educacional, consistindo "em poder derivado funcional, circunscrito ao que é próprio à entidade que o detém e limitado pelo ordenamento geral em que se insere, sem o qual, ou fora do qual, não existiria" (Ranieri, 2000, p. 220).
O regime de autonomia confere capacidade de autonormação às instituições universitárias em relação às atividades didático-científicas, administrativas e de gestão financeira e patrimonial.
A temática da autonomia universitária está ligada com a organização dos sistemas de ensino, na medida em que confere imunidade em relação à legislação regulamentar por eles expedidas. Em matéria educacional, a vinculação das universidades limita-se aos demais comandos constitucionais e às normas de natureza diretivo-basilar (Ranieri, 200, p. 199).
O regime da autonomia universitária é o de reconhecimento de uma realidade social objetiva, que provoca reflexo na própria efetividade do direito social à educação, encaixando-se no perfil típico de garantia institucional (Sarlet, 1998, p. 301).
Ao lado da autonomia, o artigo 207 consagra a indissociabilidade do ensino, pesquisa e extensão como elemento de organização das instituições universitárias.
8. Financiamento
A Constituição Federal de 1988 tratou do financiamento da educação de modo bastante incisivo. Vinculou receitas para a manutenção e desenvolvimento do ensino em caráter excepcional, fugindo ao preceito genérico do artigo 165, IV; instituiu a contribuição social do salário-educação e previu fundo de natureza contábil voltado para o setor.
O artigo 212 define a estrutura do financiamento da educação, na medida em que determina a aplicação de percentuais mínimos de 18% para a União e 25% para os Estados e Municípios, da receita proveniente de impostos na manutenção e desenvolvimento do ensino; bem como estabelece critérios para efeito de cálculo dos percentuais e de verificação de sua destinação; elege o ensino obrigatório como área prioritária de atendimento; determina o custeio de atividades de apoio ao ensino ligadas à suplementação alimentar e assistência à saúde com outros recursos e destina ao ensino fundamental público a receita da contribuição social do salário educação.
No Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, o artigo 60 traça regras relativas à aplicação dos recursos disponibilizados para a educação, estabelecendo a meta de universalização do ensino fundamental e também criando fundo5 de âmbito nacional, estadual e distrital, cujo objetivo é garantir as atividades de cooperação entre os sistemas de ensino, voltadas para garantir efetividade ao modelo de cooperação entre os entes federativos.
Merece referência a Emenda Constitucional 14, que conferiu novo caráter à meta de eliminação do analfabetismo e universalização do ensino fundamental, passando de norma programática a norma de eficácia plena, mediante discriminação de critérios de atuação e de alocação dos recursos (Ranieri, 2000, p. 83).
9. A relação da iniciativa privada com a educação
A participação da iniciativa privada na educação é admitida pela Constituição Federal subordinada ao cumprimento das normas gerais da educação nacional e autorização e avaliação de qualidade pelo Poder Público, nos termos do artigo 209. Esses são requisitos específicos, aos quais se somam os gerais previstos no título da ordem econômica e financeira, que disciplinam a iniciativa privada como um todo e justificam a intervenção estatal em caráter de fiscalização e controle junto às instituições de ensino particulares no plano de seu desempenho econômico e financeiro.
A atividade educacional exercida pela iniciativa privada não perde o caráter eminentemente público. A previsão de autorização prévia e de controle de qualidade na matéria educacional determina o estabelecimento de critérios seja em relação ao próprio desempenho da atividade educacional, como ao modo de operacionalizá-la.
Na verdade, ainda que a educação seja prestada sob regime de Direito Privado, a subsunção aos demais princípios e valores registrados na Constituição se mantém. O que não poderia ser diferente, na medida em que se enuncia a educação como um direito de todos.
Além disso, a Constituição prevê hipóteses de destinação de recursos públicos para escolas comunitárias, confessionais e filantrópicas, mediante cumprimento de requisitos específicos. A isso se somam as hipóteses de imunidade tributária previstas nos artigos 150, VI, c e 195, parágrafo 7º.
Em que pese o incentivo às instituições educacionais sem fins lucrativos, a Constituição delineia claramente a prioridade de investimento na sua rede de ensino, conforme registra o parágrafo 1º do artigo 213. Ou seja, em princípio a educação deve ser prestada pelo Estado e a atuação da iniciativa privada tem caráter suplementar, ao contrário da regra geral relativa à atuação estatal no domínio econômico.
Enfim, no plano constitucional a atuação da iniciativa privada em matéria de educação é admitida em caráter suplementar ao papel do Estado, incentivada se ausente o fim lucrativo, mas sempre estruturada sobre princípios e valores de ordem pública.
10. Os princípios constitucionais em matéria educacional
Já nos referimos ao caráter principiológico das normas que tratam de educação na Constituição Federal, por outro lado também fizemos menção ao fato de que, a despeito de indispensável intervenção legislativa ordinária para efetivação do direito à educação, seu espaço normativo é mais preciso e delimitado quando temos em vista o disposto nos artigos 205 a 214.
Campello (2000, p. 1/21) apresenta o elenco de princípios dos artigos 205 a 214, dividindo-os em
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(a) garantias individuais: igualdade de condições de acesso e permanência na escola, liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o conhecimento, gratuidade do ensino público nos estabelecimentos oficiais, ensino fundamental obrigatório e gratuito, acesso aos níveis mais elevados de ensino segundo o mérito de cada um, assistência no nível fundamental com material didático, transporte, alimentação e saúde;
(b) garantias de qualidade: pluralismo pedagógico, valorização do profissional do ensino, gestão democrática do ensino público, garantia do padrão de qualidade, normas gerais de educação, autorização e avaliação de qualidade pelo poder público, sistemas de ensino integrados, plano nacional de educação com objetivos de erradicação do analfabetismo, universalização do atendimento escolar, melhoria da qualidade do ensino, formação para o trabalho, promoção humanística, científica e tecnológica do País;
(c) princípios organizacionais: convivência do ensino público e do privado, autonomia para as Universidades, progressiva universalização do ensino público, educação especial, creche e pré-escola para as crianças de 0 a 6 anos, ensino noturno, ensino livre à iniciativa privada, sob condições, financiamento das Instituições Federais de Ensino Superior pela União, atuações prioritárias: Municípios – ensino fundamental, Estados – ensino médio, União – ensino superior, manutenção da rede federal de ensino superior e tecnológico.
A relevância das normas dos artigos 205 a 214 é conferir um conjunto de elementos capazes de vincular de modo mínimo a atuação estatal com vistas à realização do direito à educação. Representam, em última análise, mecanismos capazes de gerar direitos subjetivos passíveis de tutela jurisdicional.
Segundo Barroso (2001, p. 85/86), ao "jurista cabe formular estruturas lógicas e prover mecanismos técnicos aptos a dar efetividade às normas jurídicas". Por efetividade entende-se "a realização do direito, o desempenho concreto de sua função social".
No contexto do estudo da efetividade da Constituição, Barroso (2001, p.93) propõe uma tipologia das normas constitucionais, dividindo-as em normas constitucionais de organização, normas definidoras de direito e normas programáticas.
As normas constitucionais de organização têm a característica de ordenar os poderes estatais, criar e estruturar entidades e órgãos públicos, distribuir atribuições e identificar e aplicar outros atos normativos (Barroso, 2001, p. 95). São normas voltadas para a organização do Estado e se caracterizam pelo efeito constitutivo imediato, não se apresentando como juízos hipotéticos (Barroso, 2001, p. 97).
As normas definidoras de direito, segundo Barroso (2001, p. 103), gravitam sobre a idéia de direito subjetivo, "entendido como o poder de ação, assente no direito objetivo, e destinado à satisfação de certo interesse". Dessas normas decorrem "situações jurídicas imediatamente desfrutáveis, a serem materializadas em prestações positivas ou negativas", exigíveis do Estado ou de outro destinatário, caso não sejam satisfeitas espontaneamente.
As normas programáticas "têm por objeto estabelecer determinados princípios ou fixar programas de ação para o Poder Público" (Barroso, 2001, p. 118). Hoje se reconhece o seu caráter vinculativo, como as demais normas da Constituição, embora a posição dos administrados seja menos consistente (Barroso, 2001, p. 120). Têm como efeito imediato obstar atos normativos divergentes, seja revogando os já existentes, seja determinando a inconstitucionalidade dos supervenientes, conferindo aos administrados o direito de opor-se judicialmente aos atos a elas contrários e obter decisões jurisdicionais alinhadas com os valores nelas consignados (Barroso, 2001, p. 122).
A partir de um paralelismo entre o modelo tipológico proposto por Barroso e a classificação de Campelo, encontramos meios de afirmar a concretude dos preceitos constitucionais que tratam da educação.
Parece-nos possível estabelecer relações entre garantias individuais e normas definidoras de direitos, garantias de qualidade e normas programáticas e princípios organizacionais e normas de organização.
As garantias individuais carregam o traço de direitos subjetivos, sendo certo que se algumas determinam atuações estatais positivas, outras criam deveres de abstenção dirigidos especificamente para o processo educacional.
No âmbito das apontadas garantias de qualidade, encontramos normas de natureza programática, entendidas como normas voltadas a estabelecer planos de ação, orientações de conduta da intervenção governamental. A implementação dos princípios referentes à qualidade do ensino não prescinde da legislação ordinária, bem como da própria atuação normativa dos sistemas de ensino, mas a partir deles se determinam os contornos e os critérios de avaliação de qualidade.
A concepção dos princípios organizacionais se assenta sobre a divisão de encargos e competências, bem como na previsão de sistemas de ensino em cada ente da federação, coordenados entre si. Dentro do rol de princípios organizacionais apontados, alguns podem caracterizar direitos, como a educação especial da pessoa portadora de deficiência.
Convém registrar que classificações servem a propósitos determinados, pois de uma forma ou de outra, acabam generalizando realidades distintas e ocultando particularidades. Nesse contexto, a partir das relações propostas parece possível vislumbrar direitos oponíveis contra o Estado em matéria de educação.