CONSIDERAÇÕES FINAIS
Deixar de garantir a norma mais protetora em favor da vítima no caso em comento é deixá-la ao desamparo, não aplicando, destarte, a norma mais garantidora de seus direitos e, por consequência, ferindo o luminar da vedação da proteção insuficiente.
Isso ocorre pelo fato de que o Estado, por força dos deveres de proteção aos quais está vinculado, não pode se omitir ou atuar de forma insuficiente na promoção e proteção de tal direito, sob pena de incorrer em violação da ordem jurídico-constitucional.
Vale encalamistrar que a Constituição Federal, em seu artigo 226 e §8º, assegurou a proteção da família com primazia, não tendo feito distinção entre tipos de pessoas, determinando que todas estão ao abrigo da lei e possuem indistintamente o direito de proteção e coibição à violência familiar.
A peculiaridade de uma vítima de violência familiar ser criança não é um fator a diminuir sua proteção, mas um requisito de que sua defesa deve ser redobrada, pois, nos termos constitucionais do artigo 227 e §4º, a violência perpetrada contra crianças deve ser punida de forma ainda mais severa, indicando a lei que todos os mecanismos de proteção devem ser utilizados para a efetivação da reprimenda.
Some-se a isso a incidência, neste caso, do princípio da aplicação da norma mais favorável à vítima, segundo o qual, diante do confronto de leis, deve-se dar preferência sempre àquela interpretação ou aplicação onde prepondere o maior benefício da vítima de violação de direitos humanos.
Volvendo ao caso em quadro, é salutar que todo tipo de interpretação ou lei seja preferido em favor da vítima menor, a fim de que a esta seja assegurada a garantia de um juízo especializado que, aplicada a legislação especial n.º 11.340/2006, oferte maiores e mais eficazes instrumentos de defesa à sua vulnerabilidade. A Ministra do STF, Cármen Lúcia Antunes Rocha, discorre acerca desse princípio, ofertando como exemplo os dispositivos protetivos à mulher vítima de violência:
“O princípio da primazia da norma mais benéfica foi consolidado internacionalmente por declarações e tratados internacionais de direitos humanos, tanto no âmbito global quanto no âmbito regional. (...) A Convenção pela Eliminação da Discriminação contra a Mulher, em seu artigo 23, estipula que ‘[n]ada do disposto nesta Convenção prejudicará qualquer disposição que seja mais propícia à obtenção da igualdade entre homens e mulheres e que esteja contida: a) na legislação de um Estado-Parte; ou b) em qualquer outra convenção, tratado ou acordo internacional vigente nesse Estado’.” (ROCHA, Cármen Lúcia Antunes. Constituição e Segurança Jurídica – estudos em homenagem a José Paulo Sepúlveda Pertence. Belo Horizonte: Fórum, 2005, p. 57-58).
Destarte, não parece adequado prosperar uma tese que afasta a lei especial da vítima pelo fato desta ser menor, visto que se trata de impor limites onde a lei não o fez, criando óbices sem fundamento legal e partindo de uma interpretação maléfica à vítima.
REFERÊNCIAS
BRASIL. Lei nº 11.340/2006. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Poder Executivo, Brasília, DF, 2006.
_______. Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher. Pará, 1994.
CALAMANDREI, Pierre. Eles, os juízes, vistos por um advogado. São Paulo: Martins Fontes, 1995.
CAMPOS, Amini Haddad; CORRÊA, Lindinalva Rodrigues. Direitos Humanos das Mulheres. Curitiba: Juruá, 2012.
CRENSHAW, K. Documento para o encontro de especialistas em aspectos da discriminação racial relativos ao gênero. Estudos Feministas, Florianópolis, v. 10, n. 1, p. 171-188, jan. 2002.
MINAYO, M. C. S. Vulnerabilidade à violência intrafamiliar. In: Violência Doméstica: Vulnerabilidades e Desafios na Intervenção Criminal e Multidisciplinar. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2010.
PERROT, M. As mulheres ou os silêncios da história. São Paulo: EDUSC, 2005.
PISCITELLI, Adriana. Interseccionalidades, categorias de articulação e experiências de migrantes brasileiras. Sociedade e Cultura, v.11, n.2, jul/dez. 2008.
ROCHA, Cármen Lúcia Antunes. Constituição e Segurança Jurídica – estudos em homenagem a José Paulo Sepúlveda Pertence. Belo Horizonte: Fórum, 2005.
Notas
[1] Essa forma de aculturação pode ser claramente constatada quando comparamos situações semelhantes em instituições diferentes como é o caso de uma fábrica, de uma loja ou de uma repartição pública, por exemplo. Nesses locais ninguém maltrata fisicamente ou fere um empregado porque ele cometeu algum erro (e se o faz, seu ato é totalmente rechaçado pelas regras sociais). “Na família a situação é diferente. A regra básica é que se alguém faz alguma coisa errada, a violência não só é permitida, como, algumas vezes, requerida” (STRAUSS, 1980, p. 184 apud MINAYO, M. C. S. Vulnerabilidade à violência intrafamiliar. In: Violência Doméstica: Vulnerabilidades e Desafios na Intervenção Criminal e Multidisciplinar. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2010, p. 278).
[2] A doutrina de escol aquiesce nesse mesmo diapasão: “A menção expressa à legislação específica relativa à criança, ao adolescente e ao idoso, levou em conta que muitas vezes as mulheres vítimas de violência doméstica e familiar são crianças, adolescentes ou idosos, que devem ter seus direitos especiais previstos na legislação especifica, também assegurados pelo juízo especializado, de forma a não lhe omitir ou suprimir nenhum dos direitos que lhes foi assegurado em legislação própria, que devem ser aplicados naquilo que não conflitar com o estabelecido nesta Lei, de forma subsidiária” (CAMPOS, Amini Haddad; CORRÊA, Lindinalva Rodrigues. Direitos Humanos das Mulheres. Curitiba: Juruá, 2012, p. 361.) - grifos aditados.
[3] A interseccionalidade trataria da forma como ações e políticas específicas geram opressões que fluem ao longo de tais eixos, confluindo e, nessas confluências constituiriam aspectos ativos do desempoderamento. A imagem que ela oferece é a de diversas avenidas, em cada uma das quais circula um desses eixos de opressão. Em certos lugares, as avenidas se cruzam, e a mulher que se encontra no entrecruzamento tem que enfrentar simultaneamente os fluxos que confluem, oprimindo-a. (PISCITELLI, Adriana. Interseccionalidades, categorias de articulação e experiências de migrantes brasileiras. Sociedade e Cultura, v.11, n.2, jul/dez. 2008. p. 263 a 274.)
[4] A interseccionalidade é uma conceituação do problema que busca capturar as conseqüências estruturais e dinâmicas da interação entre dois ou mais eixos da subordinação. Ela trata especificamente da forma pela qual o racismo, o patriarcalismo, a opressão de classe e outros sistemas discriminatórios criam desigualdades básicas que estruturam as posições relativas de mulheres, raças, etnias, classes e outras. (CRENSHAW, K. Documento para o encontro de especialistas em aspectos da discriminação racial relativos ao gênero. Estudos Feministas, Florianópolis, v. 10, n. 1, p. 171-188, jan. 2002, 177).
[5] Como ensina com fulgor Pierre Calamandrei, “não basta que os magistrados conheçam com perfeição as leis tais como são escritas; seria necessário que conhecessem igualmente a sociedade em que essas leis devem viver” (Eles, os juízes, vistos por um advogado. São Paulo: Martins Fontes, 1995. p. 183).