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O caso das testemunhas de Jeová e a transfusão de sangue:

uma análise jurídico-bioética

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Agenda 28/04/2005 às 00:00

Sumário:1 – Introdução: Análise não preconceituosa dos fatos. 2 – Os riscos inerentes às transfusões de sangue. 3 - Tratamentos alternativos às transfusões 4 – Análise Constitucional. 4.1 – Liberdade de Consciência e Crença 4.2 – Direito à Privacidade 4.3 – Direito à vida 5 – Estudos dos Princípios Bioéticos no caso em análise. 5.1 - Princípios Bioéticos da "Autonomia" e do "Consentimento Informado" 5.2 - Princípios Bioéticos da "Beneficência" e da "Justiça" 6 – Menores de idade. 7 – Conclusão.


1-) Introdução: Análise não preconceituosa dos fatos

A postura das Testemunhas de Jeová de recusa às transfusões de sangue muitas vezes chama à atenção da mídia e causa acalorados debates. Infelizmente, não raro às Testemunhas de Jeová são mal interpretadas e acabam sendo tachadas de "fanáticas" e "suicidas".

No entanto, a lógica e o bom censo ensinam que antes de se fazer um julgamento deve-se analisar serenamente os fatos sem preconceitos ou ódio.

Muitos profissionais da Medicina e do Direito têm demonstrado este sábio espírito. Embora não seja do conhecimento do público leigo, o fato é que nas últimas décadas a medicina tem evoluído a ponto de propiciar alternativas seguras e eficazes às transfusões de sangue. Do mesmo modo, às Testemunhas de Jeová organizaram uma rede internacional de "Comissões de Ligação com Hospitais" (COLIH), a qual atualmente trabalha com cerca de 100.000 médicos ao redor do globo em programas de desenvolvimento de tratamentos e técnicas cirúrgicas sem sangue (que serão abordadas no decorrer deste trabalho).

Ressalta-se que este artigo abordará questões jurídicas e bioéticas. Em nenhum momento serão debatidas crenças religiosas.


2) – Os riscos inerentes às Transfusões de Sangue

A transfusão de sangue é vista pelo público leigo como o mais eficaz, senão único, tratamento para repor a perda do plasma, bem como outros componentes sangüíneos. De fato, tal visão é compreensível, pois durante a II Guerra Mundial tal prática se popularizou e tornou-se até mesmo símbolo de nacionalismo e solidariedade. Enquanto às nações se digladiavam nos campos de batalha, seus governos estimulavam às doações de sangue para serem transfundidos em seus soldados.

No entanto, renomados médicos vêm questionando este caráter ultra-salvador atribuído às transfusões de sangue. Um estudo revelou que:

A utilização excessiva dos componentes sangüíneos é atribuída às idéias errôneas sobre seu valor, à falta de conhecimento das situações em que seu emprego não é justificável e à apreciação equivocada da incidência e da magnitude de suas eventuais complicações. [1]

Uma pesquisa realizada nos E.U.A. nos revela:

... dos residentes entrevistados, 61% indicaram que, pelo menos uma vez por mês, prescreviam transfusões que consideravam desnecessárias pelo mero fato de que um médico com mais experiência sugeria que fosse feito.

Um terço informou que isso ocorria duas ou mais vezes por mês. [2]

A Sociedade Brasileira de Hematologia e Hemoterapia informou que:

... a utilização indiscriminada de sangue e derivados continua sendo muito grande no Brasil, apesar dos enormes riscos inerentes a estas transfusões... foram revisados os prontuários [de 75] pacientes para se determinar a indicação de cada transfusão. Do total, apenas 25% tinha uma indicação precisa... Estes resultados mostram a necessidade de educação continuada em hemoterapia, a fim de se evitarem as transfusões desnecessárias. [3]

Uma publicação médica explanou extensivamente os riscos envolvidos nas transfusões:

As transfusões são perigosas. Podem causar reações do tipo hemolítico, leucoaglutinante e alérgico... O perigo principal é a infecção induzida pela transfusão... o maior perigo é a transmissão da hepatite não-A, não-B. Calcula-se que de 5% a 15% dos doadores voluntários são portadores deste vírus. Os testes laboratoriais prévios à doação, para detectar os anticorpos contra o"core" da hepatite B, permitem detectar entre 30% e 40% dos portadores do vírus da hepatite não-A, não-B... A vasta maioria dos casos de hepatite pós-transfusional são subclínicos, visto que a enfermidade evolui durante vários anos. Uma alta porcentagem de receptores infectados contraem cirrose.... [4]

Algumas pesquisas mostram que pelo menos cerca de 5% do total de pessoas que recebem transfusões de sangue nos E.U.A contraem hepatite (o que representa uma margem de 175.000 por ano), e que cerca de 4.000 morrem! As perspectivas não são muito animadoras, pois outros vírus ainda não detectáveis nos testes de bolsas de sangue podem causar a hepatite. Isso sem mencionar diversas outras doenças que são contraídas como a sífilis, malária, vírus da herpe, a toxoplasmose, tripanossomíase, tifo, leishmaniose e a temível AIDS.

O mais preocupante é que os testes realizados nos bancos de sangue não geram a segurança que muitos pacientes imaginam ter. Um dos diretores da Cruz Vermelha Americana, ao abordar os autos custos que envolvem tais testes, declarou: "Simplesmente não podemos continuar a adicionar teste após teste para cada agente infeccioso que poderia ser disseminado". [5]O Dr. Neil Blumberg, diretor da Unidade de Medicina Transfusional e do Banco de Sangue da Universidade de Rochester, de Nova York, E.U.A., numa estimativa conservadora, afirmou que o número de mortos em seu país devido a tais infecções provenientes das transfusões gira em torno dos 10.000 a 50.000 por ano! [6]

De fato, as transfusões não têm o caráter salvador que o público imagina. Ademais, apresenta um desconfortável grau de periculosidade e morbidade. Devido a estes riscos, a Presidential Commission on the Human Immunodefidiency Vírus Epidemic (E.U.A.), recomendou que antes de realizar uma transfusão de sangue, o médico deve obter o consentimento de seu paciente, e que o procedimento deve incluir uma explicação dos riscos implicados na transfusão de sangue e de seus componentes, entre eles a possibilidade de contrair o HIV, bem como informações sobre terapias alternativas à transfusão de sangue homólogo.... (Negrito acrescentado). [7]

No entanto, surge uma questão: há tratamentos que podem servir de alternativas a transfusão de sangue? Analisaremos esta pergunta no próximo tópico.

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3 -) Tratamentos Alternativos às transfusões.

Nas últimas quatro décadas vem aumentando o interesse em boa parte da classe médica nas alternativas às transfusões. No dia 16 de maio de 1962, o Dr. Denton Cooley realizou a primeira cirurgia de coração aberto, sem sangue, em uma Testemunha de Jeová. No ano de 1977 o Dr. Cooley publicou um relatório de 542 cirurgias cardiovasculares em Testemunhas de Jeová sem realizar transfusão de sangue, no qual ele declarou que os riscos eram baixos e aceitáveis. [8]

No ano de 1997 foi lançado um apêndice no Canadá abordando várias medicações, tratamentos e técnicas cirúrgicas sem sangue, muitas das quais são simples e com um custo acessível. [9]

Uma delas é a Eritropoetina [Humana] Recombinante, a qual é uma forma biossintética de um hormônio humano natural que estimula a medula óssea a produzir hemácias. Este fármaco pode ser administrado antes, durante ou depois do tratamento ou cirurgia, bem como para pacientes com câncer que recebem quimioterapia ou para tratar pacientes anêmicos portadores de insuficiência renal crônica. Aplica-se também ferro e hematínicos para dar suporte a produção de hemácias estimulada pela eritropoetina.

Do mesmo modo, para estimular a produção de plaquetas (as quais são essenciais para o processo de coagulação sangüínea), utiliza-se a Interleucina-11 Recombinante, a qual é uma forma, geneticamente produzida, de um hormônio humano.O Ácido Aminocapróico e Tranexâmico são muito úteis para estimular a coagulação inibindo ou cessando a fibrinólise (decomposição dos coágulos sangüíneos), sendo eficazes nos casos de hemorragia, inclusive na cirurgia cardíaca, a oncologia, a obstetrícia, a ginecologia, o transplante, a cirurgia ortopédica, o trauma e os distúrbios hematológicos. Os Adesivos Teciduais (como por exemplo, à cola de fibrina), são usados para diminuir a perda de sangue. São utilizados para selar superfícies das feridas cirúrgicas de modo a reduzir o sangramento pós-operatório.

Em casos de emergência, no qual se perde muito plasma (parte líquida do sangue), utilizam-se os Expansores do volume do Plasma, tais como os Cristalóides (incluindo a solução salina, lactato de Ringer e a solução salina hipertônica), os quais são fluidos intravenosos compostos de água, com vários sais e açucares, que têm a função de manter o volume circulatório do sangue no corpo. Do mesmo modo, os Colóides são fluidos compostos de água misturada com partículas bem diminutas de proteínas, os quais mantêm os níveis de proteína sangüínea, estabilizando o equilíbrio dos fluidos e o volume circulatório do sangue no corpo. Entre estes incluem o pentastarch, hetastarch (hidroxietila de amido) e o dextran.

Os instrumentos cirúrgicos Hemostáticos são utilizados tanto em cirurgias convencionais a céu aberto como na cirurgia minimamente invasiva. [10] Quando utilizados com habilidade reduzem o sangramento e facilitam o manejo dos tecidos, e permitem que haja maior visibilidade, graças a um campo cirúrgico mais seco, o que pode abreviar o tempo cirúrgico bem como reduzir a exposição da equipe médica ao sangue.

Entre os referidos instrumentos podemos destacar o eletrocautério, lasers, coagulador com raio de argônio, dentre outros.

O coagulador com raio de argônio causa um trauma mínimo aos tecidos, coagula os vasos grandes (2a 3 mm de diâmetro) e reduz o risco de hemorragia pós-operatória. O fluxo de argônio, por ser um gás incolor, inodoro e inativo, facilita a coagulação controlada por uma área mais ampla, acentua a visibilidade no campo cirúrgico, diminui o manejo de tecidos bem como a exposição do médico ao sangue através de rupturas das luvas ou furo de agulhas.

Nos casos de pacientes que dão entrada no hospital com uma variedade de ferimentos, utilizam-se os equipamentos de Recuperação intra-operatória de sangue. Assim, recupera-se parte do sangue derramado (o qual é lavado ou filtrado pelo equipamento) e depois ele é reinfundido no paciente. O sangue pode ser desviado do paciente para um aparelho de hemodiálise ou para uma bomba coração-pulmão. O sangue flui para fora através de um tubo até o órgão artificial que o bombeia e filtra (ou oxigena) e daí volta para o sistema circulatório do paciente. Há também instrumentos para a Recuperação pós-operatória do sangue (tubo de drenagem, no qual o sangue derramado é processado e devolvido ao paciente).

A Hemodiluição, quando é usado um circuito fechado e não se faz coleta de sangue pré – operatório é aceitável para muitas Testemunhas de Jeová.

De fato, há uma enorme lista de tratamentos e métodos isentos de sangue (os quais podem beneficiar não somente às Testemunhas de Jeová, mas a todo paciente independente de opção religiosa). Os que mencionamos são apenas alguns exemplos. Talvez o grande interesse que estes medicamentos vêm despertando em vários setores da classe médica está relacionado a evitar os riscos decorrentes das transfusões de sangue, conforme analisado no tópico anterior [11].


4) – Análise Constitucional

A Constituição Federal ocupa o ápice da pirâmide normativa. De fato, a análise jurídica de um problema deve, por questão de lógica, começar pelos preceitos fundamentais do sistema jurídico. Deste modo, iniciamos com a abordagem dos direitos fundamentais à "liberdade de consciência e crença" (Art.5º, VI, C.F.), á "privacidade" (art.5º,X, C.F.), e á "vida" (art.5º, "caput", C.F.).

4.1) – "Liberdade de Consciência e de Crença" (art.5º, VI, C.F.).

"Penso, logo existo!" Esta famosa frase de Decartes nos revela algo maravilhoso e assombroso a respeito da natureza humana – a saber - a capacidade de nos relacionarmos com o que está ao nosso redor e formarmos valores que, pouco a pouco constroem nossa consciência, a qual moldará nossa personalidade. Assim sendo, é de fundamental importância que a sociedade crie mecanismos para garantir a liberdade de consciência a fim de que o indivíduo possa manifestar seus pensamentos, sentimentos e convicções.

Por outro lado, uma sociedade que não preza a liberdade de consciência dos seus cidadãos, estará sufocando e negando (ou pelo menos subestimando) a própria "personalidade humana". A maior prova disso é que os regimes totalitários (tais como o nazismo, o fascismo e o comunismo stalinista), são encarados como verdadeiras aberrações ao jusnaturalismo, pois estrangulavam a pessoa humana num tenebroso processo de "robotização", transformando cada indivíduo numa "máquina" de propriedade estatal.

Felizmente, a nossa Constituição tutela a "liberdade de consciência e de crença" como um "direito e garantia fundamental" (art.5º, VI, C.F.). É valioso ressaltar que essa proteção é decorrente do mais sublime fundamento da nossa sociedade que é a "dignidade da pessoa humana" (art.1º, III, C.F.). De fato, ao analisarmos o tripé "liberdade de consciência" (a qual projeta a "liberdade de crença"), "direito a privacidade" (art.5º, X. C.F.) e "dignidade da pessoa humana" (art.1º, III C.F.), chegaremos à conclusão de que o mesmo está inexoravelmente ligado a substância humana, e que romper este tripé por suprimir ou desrespeitar tais imperativos da conduta humana seria tão criminoso (e até mais doloroso) que provocar a própria "morte física" do indivíduo.

Abordando de maneira específica a liberdade religiosa, o constitucionalista Manoel Gonçalves Ferreira Filho, observou algo interessante sobre o tema em análise:

Tenha se presente que a liberdade religiosa é uma das formas por que se explicita a liberdade... Mais do que isto, é ela para todos os que aceitam um direito superior ao positivo, um direito natural. É o mais alto dentre todos os direitos naturais. Realmente, é ele a principal especificação da natureza humana, que se distingue dos demais seres animais pela capacidade de autodeterminação consciente de sua vontade. [12]

Mas qual é o alcance da "liberdade religiosa?" Será que a "liberdade de culto" se limita literalmente às missas e reuniões realizadas dentro das igrejas?

Celso Ribeiro Bastos, ao abordar os aspectos que integram a "liberdade de culto", elucida o ponto em questão:

Como já visto, a religião não pode... contentar-se com sua dimensão espiritual, isto é, enquanto realidade ínsita à alma do indivíduo. Ela vai, contudo, via de regra, procurar uma externação... a que se denomina ‘liberdade de culto’. [13]

O referido jurista continua respondendo:

Poder-se-ia inserir, dentro da liberdade de culto, todas as práticas que envolvessem qualquer opção religiosa do indivíduo. Assim, as restrições decorrentes da invocação religiosa estariam, igualmente, albergadas sob este título, sendo certo que, como dito, não há verdadeira liberdade de religião se não se reconhece o direito de livremente orientar-se de acordo com as posições religiosas estabelecidas... Ora, o culto não se exerce apenas em locais pré-determinados, como em igrejas, templos, etc. A orientação religiosa há de ser seguida pelo indivíduo em todos os momentos de sua vida, independentemente do local, horário ou situação. De outra forma, não haveria nem liberdade de crença, nem liberdade no exercício dos cultos religiosos, mas apenas ‘proteção aos locais de culto e as suas liturgias’.(Grifo nosso). [14]

Desta forma, a liberdade de religião não consiste apenas em o indivíduo estar autorizado a crer em algo, antes inclui o direito de exercer os preceitos de sua fé. Dentre estes se destacam os cultos religiosos e suas liturgias (como vem expresso no inciso em análise). Obviamente, isto também abrange a garantia de expressar sua fé nos demais aspectos da vida, como na literatura, na melodia ou na escolha de tratamentos médicos. Esta interpretação segue a lógica do sistema.

Portanto, a lógica do sistema é no sentido de que o "Direito fundamental e constitucional à Liberdade de Consciência e Crença", bem com a proteção aos cultos e liturgias, projetam, no caso em análise, a satisfação da necessidade do cidadão poder adentrar em um hospital cônscio de que seus direitos e o respeito ao seu "ser" não ficarão do lado de fora.

4.2) – Direito à Privacidade (art.5º, X, C.F.)

O Direito fundamental à Privacidade decorre da tutela constitucional no art.5º, X: "São invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação". [15]

A privacidade é uma necessidade básica do ser humano. Esta decorre do nosso desejo nato de levarmos uma vida pacífica, com um mínimo de sossego, tranqüilidade, e não sermos incomodados em nossos relacionamentos mais íntimos, nem termos expostos fatos da nossa vida privada ao público de maneira desautorizada. Desejamos também conduzir nossas vidas com o mínimo de interferência, seja por parte de uma outra pessoa ou do próprio Estado.

Historicamente, tal direito foi por demais vilipendiado. Por exemplo, nos arquivos secretos da GESTAPO [16] ou da STASI [17] na Alemanha, encontra-se a descrição de milhões de indivíduos considerados inimigos do Estado. Consta que uma das táticas de pressão psicológica da STASI consistia em seus membros entrarem secretamente na casa da vítima e mudar os móveis do local. Isso era feito com uma certa freqüência e a vítima, a qual muitas vezes nem imaginava que estava sendo vigiada, ficava perplexa ao cada dia ver alguns móveis em posições diferentes em sua casa sem que aparentemente alguém estivesse no local. Isso levou alguns até mesmo ao estado de loucura.

Vivemos em uma época em que a privacidade como nunca está ameaçada, sobretudo devido ao avanço tecnológico e a propagação do sensacionalismo em uma boa parte da mídia.

Diante de tudo isso, não é à toa que o constitucionalista Manoel Gonçalves Ferreira Filho descreve o direito fundamental à privacidade como projeção do próprio fundamento constitucional da dignidade da pessoa humana. O ilustre jurista define:

O direito à privacidade é dos que reclamam a não-interferência, a não-ingerência, a não-intromissão, seja do Estado, seja de todo o grupo social, seja de qualquer outro indivíduo. Nisto, ele coincide com as liberdades públicas clássicas que impõem um não-fazer, estabelecendo uma fronteira em benefício do titular que não pode ser violada por quem quer que seja.

Reflete ela a dignidade humana cuja primeira e principal expressão é a liberdade.

Dela decorre que cada ser humano tem o direito de conduzir a própria vida como entender – fora dos olhos da curiosidade e da indiscrição alheias – desde que não fira o direito de outrem [18]

Em outras palavras, de uma forma sintética, direito á privacidade consiste em a sociedade permitir que a pessoa faça escolhas e viva não da maneira como os outros querem, mas conforme a sua consciência requer, desde que não interfira na privacidade dos outros.

Manoel Gonçalves Ferreira Filho, fazendo referência a Suprema Corte Americana, cita como incluída na privacidade as decisões relativas ao próprio corpo, se destacando a escolha de tratamentos médicos. [19]

O jurista Celso Ribeiro Basto, também raciocinou:

Quando o Estado determina a realização de transfusão de sangue – ocorrência fenomênica que não pode ser revertida – fica claro que violenta a vida privada e a intimidade das pessoas no plano da liberdade individual. Mascara-se, contudo, a intervenção indevida, com o manto da atividade terapêutica benéfica ao cidadão atingido pela decisão. Paradoxalmente, há também o recurso argumentativo aos ‘motivos humanitários’ da prática, quando na realidade mutila-se a liberdade individual de cada ser, sob múltiplos aspectos. [20]

Deste modo, a transfusão de sangue forçada (ainda mais quando feita de modo precipitado, atendendo a um pedido do hospital sem analisar os argumentos do paciente e a real situação fática, como ocorrem nas liminares), ferem a honra, a intimidade e a privacidade do indivíduo, o que é uma afronta à tutela do art.5º, X, da Constituição Federal.

4.3) – Direito à vida (art.5º, caput, C.F.).

Alexandre de Moraes observa que o enquadramento jurídico do direito à vida inicia com a fecundação do óvulo pelo espermatozóide, e que inclusive o zigoto (posteriormente embrião e feto) é encarado como uma carga genética própria, ou em outras palavras, uma vida autônoma. Deste modo, o nascituro pode até mesmo ser parte num processo (geralmente representado pela mãe) e tem expectativa de direito, o qual se consagra com o nascimento (respiração). [21]

O direito à vida está previsto no "caput" do art.5º da Constituição. Este consiste não só no direito de não ser morto pelo Estado ou algum particular, mas também á uma vida digna, ou seja, também é uma projeção do fundamento constitucional da dignidade da pessoa humana (art.1º, III, C.F.).

Assim, numa visão mais ampla, a Carta Magna não está apenas garantindo o funcionamento biológico do indivíduo, mas o seu bem estar físico, emocional-psicológico e espiritual. Não se pode reduzir o ser humano a uma abordagem puramente fisiológica, pois o mesmo, ao contrário das demais espécies existentes no planeta, é capaz de abstrair e transcender em busca do seu Originador.

O direito á vida é visto como uma condição para o exercício dos demais direitos constitucionais. Por outro lado, a mesma, desprovida de liberdade e dignidade, torna-se pesarosa. Atento a isso, o legislador vai além de prover a mera existência biológica do indivíduo, objetivando também resguardar sua intimidade, privacidade, consciência, crença, segurança etc. No caso em análise, todos esses bens jurídicos devem ser levado em consideração, pois, por mais que um médico bem intencionado realize uma transfusão de sangue forçada acreditando que é o melhor para salvar a vida de seu paciente, na realidade, ele poderá estar ferindo os sentimentos mais íntimos do cidadão, estigmatizando-o permanentemente com a infelicidade! O ideal é obter a cura física do ser humano sem ferir-lhe psicologicamente (e aí entram os tratamentos alternativos às transfusões já abordados).

No próximo tópico, analisaremos alguns princípios bioéticos que lançará ainda mais luz sobre o caso em estudo.

Sobre o autor
Bruno Marini

Professor de Direitos Humanos, Biodireito e Bioética na Universidade Federal do Mato Grosso do Sul (UFMS), em Campo Grande (MS), Doutorando em Saúde (UFMS), Mestre em Desenvolvimento Local (UCDB) e Especialista em Direito Constitucional (UNIDERP).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MARINI, Bruno. O caso das testemunhas de Jeová e a transfusão de sangue:: uma análise jurídico-bioética. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 661, 28 abr. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/6641. Acesso em: 26 dez. 2024.

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