4 - A prisão cautelar: fábrica de danos morais
A prisão cautelar é um dos momentos mais propícios ao desrespeito da dignidade da pessoa humana, dentro do âmbito penal, e, principalmente, à inobservância do fundamental princípio da presunção de inocência e séria possibilidade de mácula da liberdade do indivíduo (status libertatis). O que se vê é uma grande tendência a se requerer, ao juiz, a tão propalada prisão cautelar. São espécies de prisão cautelar: prisão em flagrante (arts. 301 a 310 do CPP), prisão temporária (possui tempo predeterminado de duração, que será de cinco dias, prorrogáveis por mais cinco, nos termos do art. 2º, da Lei n.º 7.960, de 21 de dezembro de 1990, nos crimes considerados não hediondos, ou de trinta dias, prorrogáveis por igual período, nos termos do § 4º, do art. 2º, da Lei n.º 8.072, de 25 de julho de 1990, quando tratar-se de crimes classificados como hediondos ou equiparados aos mesmos), prisão decorrente de sentença de pronúncia (nos termos do art. 413 do CPP, com a nova redação que lhe deu a Lei n.º 11.689, de 2008; a sentença de pronúncia diz respeito aos crimes de competência do Tribunal do Júri, ou seja, os crimes dolosos contra a vida, em sua modalidade tentada ou consumada, que são: homicídio, aborto, infanticídio e induzimento, instigação ou auxílio a suicídio, todos previstos no Código Penal), prisão preventiva “stricto sensu” (nos termos dos arts. 311 a 316 do CPP; referida modalidade de prisão não possui tempo predeterminado de duração) e prisão resultante de sentença condenatória recorrível que não faculta recurso em liberdade (neste momento, ou seja, quando prolatada a sentença penal condenatória, da qual ainda cabe recurso, o juiz decide se o réu pode ou não recorrer em liberdade; na prática, se o réu permaneceu, durante toda a instrução criminal, em liberdade, comparecendo a todos os atos do processo, sempre que convocado, o juiz permite que o mesmo recorra, sem ter que se recolher à prisão; se permaneceu preso durante todo o transcorrer do processo, nesta condição o juiz mantém o réu, mesmo diante da possibilidade da reforma da decisão, que poderá vir a absolver o acusado). Evidente que a prisão cautelar não pode ser requerida a esmo, posto que para a concessão da mesma, alguns requisitos legais devem estar cabalmente demonstrados e presentes.
O grande jurista pátrio Julio Fabbrini Mirabete, assim faz constar em sua obra “Processo Penal”, Editora Atlas, 8ª ed. (1997), p. 384:
A expressão prisão preventiva tem uma acepção ampla para designar a custódia verificada antes do trânsito em julgado da sentença. É a prisão processual, cautelar, chamada de “provisória” no Código Penal (art. 42) e que inclui a prisão em flagrante, a prisão decorrente da pronúncia, a prisão resultante da sentença condenatória, a prisão temporária e a prisão preventiva em sentido estrito. Neste sentido restrito, é uma medida cautelar, constituída da privação de liberdade do indigitado autor do crime e decretada pelo juiz durante o inquérito ou instrução criminal em face da existência de pressupostos legais, para resguardar os interesses sociais de segurança.
(...)
Mas como ato de coação processual e, portanto, medida extremada de exceção, só se justifica em situações específicas, em casos especiais onde a segregação preventiva, embora um mal, seja indispensável. (Mirabete, 1997, p. 384)
Não obstante isso, o que se tem notado é uma tendência a se requerer a mesma todas as vezes que o clamor público se faça presente, ou, simplesmente, por puro arbítrio das autoridades públicas. De medida excepcional e extremada, apenas possível de se fazer presente em casos muito específicos e mediante o concurso dos requisitos legalmente exigidos para sua decretação, a prisão cautelar tem se tornado medida comum, decretada já na fase inquisitiva, sob o pálido argumento de se estar resguardando a aplicação da lei penal, ou para se evitar que o indiciado se evade do distrito da culpa, ou ainda, por conveniência da instrução criminal, ou ainda, o mais comum dos motivos, que é para a garantia da ordem pública.
A questão é que a prisão cautelar é medida excepcional, pois, mesmo diante da suposta autoria e materialidade delitivas, vigora o princípio da presunção de inocência, ou princípio da não-culpabilidade, que determina que a pessoa acusada da prática de determinado crime seja considerada inocente, até a decisão penal condenatória, da qual não caiba mais recurso. Ademais, não basta a mera e simples decretação da prisão cautelar para que a mesma seja considerada legítima e constitucional, sendo necessário que o édito que a decreta, seja devidamente fundamentado, expondo as razões da imposição desta medida extrema. Foi com este entendimento do o Ministro Marco Aurélio, do Supremo Tribunal Federal, no HC 83.534/SP, assim fez constar:
HC 83534 / SP - SÃO PAULO
HABEAS CORPUS
Relator(a): Min. MARCO AURÉLIO
Julgamento: 18/11/2003
Órgão Julgador: Primeira Turma
Publicação
DJ 27-02-2004 PP-00027
EMENT VOL-02141-04 PP-00869
Parte(s)
PACTE.(S): MÁRCIA CRISTINA ALVES DE ARAÚJO OU MÁRCIACRISTYNA ALVES
IMPTE.(S): JOÃO MANOEL ARMÔA E OUTRO (A/S)
COATOR(A/S)(ES): SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA
EmentaPRISÃO PREVENTIVA - EXCEPCIONALIDADE. Em virtude do princípio constitucional da não-culpabilidade, a custódia acauteladora há de ser tomada como exceção. Cumpre interpretar os preceitos que a regem de forma estrita, reservando-a a situações em que a liberdade do acusado coloque em risco os cidadãos. PRISÃO PREVENTIVA - CRIME APENADO COM RECLUSÃO. O fato de o crime ser apenado com reclusão não conduz necessariamente à decretação da prisão preventiva - alcance dos artigos 312 e 313, inciso I, do Código de Processo Penal e 5º, inciso LXVI, da Constituição Federal. PRISÃO PREVENTIVA - CONCURSO MATERIAL E FORMAL - CONTINUIDADE DELITIVA. O concurso de crimes, quer na modalidade material, quer na formal, e a continuidade delitiva são dados neutros relativamente à prisão preventiva - interpretação dos artigos 69, 70 e 71 do Código Penal, 311 ao 316 do Código de Processo Penal e 5º, inciso LXVI, da Constituição Federal. PRISÃO PREVENTIVA - FIANÇA. O descabimento da fiança não embasa a prisão preventiva, repercutindo, isto sim, na manutenção da custódia decorrente de flagrante. PRISÃO PREVENTIVA - FUNDAMENTAÇÃO. O pronunciamento judicial em que implementada a prisão preventiva ou negada a liberdade provisória há de estar individualizado ante o caso concreto e fundamentado, mostrando-se imprópria a alusão genérica aos artigos que a disciplinam. PRISÃO PREVENTIVA - INSTRUÇÃO CRIMINAL - SUPOSIÇÃO. A custódia preventiva que vise à regular instrução criminal deve calcar-se em dados concretos, não se podendo supor a prática de atos que objetivem embaraçá-la. PRISÃO PREVENTIVA - AUSÊNCIA DE INFORMAÇÃO SOBRE ANTECEDENTES. Descabe lançar, como fundamento da manutenção da prisão temporária, a ausência, nos autos, de esclarecimentos sobre os antecedentes criminais do envolvido. PRISÃO PREVENTIVA - PROVA DA MATERIALIDADE - INDÍCIOS DE AUTORIA. A prisão preventiva pressupõe o enquadramento nos permissivos legais e constitucionais. A prova da materialidade do crime e a existência de indícios da autoria não servem, por si sós, a respaldá-la. PRISÃO PREVENTIVA - GRAVIDADE DA IMPUTAÇÃO. A pena prevista para o tipo é norteada, em opção político-legislativa, pela gravidade do delito. O potencial ofensivo da conduta não autoriza a custódia precoce, implementada quando ainda em curso o processo revelador da ação penal. PRISÃO PREVENTIVA - EXCESSO DE PRAZO - RELAXAMENTO. Uma vez constatado o excesso de prazo, impõe-se o relaxamento da prisão, sendo desinfluente o fato de o processo achar-se na fase de alegações finais. FLAGRANTE - CRIME DE QUADRILHA - ARTIGO 14 DA LEI Nº 6.368/76. O crime de quadrilha, ainda que tipificado no artigo 14 da Lei nº 6.368/76, não está enquadrado como crime hediondo, sendo inaplicável a norma excludente da fiança e da liberdade provisória. (fonte: http://www.stf.gov.br/jurisprudencia/nova/pesquisa.asp)
Portanto, a legalidade, legitimidade e constitucionalidade da prisão cautelar, estão condicionadas ao atendimento de todos os requisitos legalmente exigidos para a modalidade do encarceramento excepcional imposto.
O que deve ser levado em consideração quando da imposição de quaisquer das modalidades prisionais cautelares é a periculosidade do acusado, ou seja, sua potencialidade delitiva, traduzido este conceito na possibilidade de vir o acusado, novamente, estando fora do cárcere, a delinquir, e não na culpabilidade do mesmo, que se traduz em sua efetiva responsabilização pelo evento criminoso noticiado. Afinal, a culpabilidade somente pode ser adequadamente averiguada, após todo o trâmite processual, no qual se tenha garantido ao acusado os direitos constitucionais à ampla defesa e ao contraditório, bem como se tenha oportunizado ao Ministério Público, titular da ação penal, desincumbir-se de provar a culpa daquele, por meio da evidenciação da autoria e materialidade delitivas. Portanto, as prisões cautelares são medidas extremas, ou, pelo menos, deveriam ser.
Delegados a requerem, o Ministério público, como regra, sempre a pretende fazer presente na vida do investigado ou indiciado. E quantas prisões preventivas não são desnecessariamente requeridas e deferidas neste país? Certamente muitas. E aí fica a questão: uma vez inocentado, uma vez que a vida do preventivamente preso já foi estraçalhada, uma vez que o mesmo já sentiu o peso da humilhação, da vergonha, do julgamento, ou melhor, do escárnio público, quem irá reparar este dano? Este dano que fere a alma deste ser humano, como a flecha que transfixa um coração ainda pulsante? Deverá este dano ficar irressarcido? Deverá o humilhado suportar tudo porque passou, de forma resignada? Até onde o interesse público justifica a humilhação, o desrespeito, a boçalidade, a dor, a angústia? Quantos erros não são cotidianamente cometidos por este tão propalado e indigitado “interesse público”, ou “ordem pública”? Muitos certamente, mas que acabam ficando no anonimato, pois, num país carente de educação de boa qualidade, no qual o analfabetismo funcional ainda impera, as pessoas, infelizmente, desconhecem seus direitos e os deveres do Estado. Mas, isso precisa mudar.
Será que esse é o preço por se viver em sociedade? A total anulação do indivíduo, da privacidade, da intimidade, da honra, dos direitos fundamentais do mesmo, em detrimento do coletivo! Um coletivo desumano, degradante e quimérico, sempre preocupado com o lucro, com a posse, com bens materiais, que não mede esforços para anular e aniquilar a pessoa humana, quando esta está no caminho de seus mais sórdidos interesses. É este o mundo que pretendemos para nossos filhos? Que desesperador.
Ainda não se parou para se refletir na seguinte verdade: é justamente em decorrência de a sociedade ter anulado o “outro”, anulado o próprio semelhante, que o mundo chegou ao ponto desesperador e caótico no qual se encontra. Sempre o coletivo. Mas, que coletivo? Certamente, se fosse um coletivo de todos, a realidade seria outra. O problema é que o coletivo pregado é o “coletivo de uma minoria”. Pasmem o contrassenso. Quando se fala em coletivo, incontinenti, deveria se fazer presente a ideia de todos, e não de poucos. Mas, é justamente para estes poucos, esta minoria, que o vocábulo “coletivo” hodiernamente é usado. O “coletivo”, modernamente, é utilizado para proteger e salvaguardar as minorias capitalistas e políticas que detém o poder, em detrimento de uma grande massa de despossuídos que vagam pelo país. Não podemos mais fazer vistas grossas a esta realidade. Não podemos permitir que a sociedade sofra uma implosão, bem diante de nossos olhos. Precisamos fazer algo. Daí a necessidade de se conscientizar as pessoas de seus direitos.
5 - Dos requisitos da prisão cautelar: o risco do dano
Bem, como ressaltado, em nosso modesto entendimento, o momento mais delicado da persecução penal é o momento da avaliação do cabimento ou não da prisão cautelar, que se traduz na privação da liberdade do indivíduo, em momento anterior à sentença penal condenatória transitada em julgado (aquela da qual não caiba mais qualquer modalidade de recurso), portanto, uma modalidade privativa da liberdade excepcional, consoante já dito acima. Deveras, o juízo axiológico que deve ser feito para que se requeira esta medida, extravasa o simples cabimento ou não cabimento, a pertinência ou impertinência da medida, mas, se traduz numa questão de humanidade para com a pessoa investigada. Mais do que os requisitos meramente legais, estão em jogo requisitos de ordem moral. Cometer o erro de requerer de forma desnecessária esta medida extrema e, pior, concedê-la, pode produzir danos, que nem mesmo o tempo pode apagar.
Reza o Código de Processo Penal, em seu art. 312, o seguinte: “A prisão preventiva poderá ser decretada como garantia da ordem pública, da ordem econômica, por conveniência da instrução criminal, ou para assegurar a aplicação da lei penal, quando houver prova da existência do crime e indício suficiente de autoria”. O que algumas pessoas têm que entender é que, o primeiro núcleo verbal, da estrutura frásica do artigo sob análise diz é que a prisão preventiva “poderá” ser decretada, significando, referido vocábulo, uma possibilidade, faculdade e não obrigatoriedade da imposição da medida extrema. Deste entendimento é o professor Julio Fabbrini Mirabete, que assim faz constar:
Pelas razões expostas, na nossa lei processual deixou a prisão preventiva de ser obrigatória para determinadas hipóteses, como se previa na legislação anterior; é hoje uma medida facultativa, devendo ser decretada apenas quando necessária segundo os requisitos estabelecidos pelo direito objetivo. Embora providência de segurança, garantia da execução da pena e meio de instrução, o seu emprego é limitado a casos certos e determinados; não é ato discricionário e só pode ser decretada pelo juiz, órgão imparcial cuja função é distribuir justiça. (Mirabete, 1997, p. 384-385)
Não basta o requerimento feito pela autoridade policial, ou pelo órgão do Ministério Público para que o juiz conceda referido pedido, ou seja, a decretação da prisão cautelar, pois, antes de tudo, deverão estar presentes os requisitos legalmente exigidos para tanto. O não atendimento aos requisitos legalmente previstos para a concessão e manutenção da prisão cautelar (em qualquer de suas modalidades) configura constrangimento ilegal, passível de ser reparado por meio de habeas corpus.
A prisão preventiva (modalidade de prisão cautelar) poderá ser requerida para garantir a ordem pública. Eis uma área de infindável discussão. O que é a “ordem pública”? Se a prisão preventiva poderá ser requerida para garantir a ordem pública, isto está a dizer que, referida medida, de caráter excepcional, visa evitar a desordem pública. Mas o que é a ordem ou a desordem? Filosoficamente, a desordem é apenas uma ordem que não me agrada. Muitas coisas podem não me agradar, mas, nem por isso estarem em desordem. Ordenar as coisas de tal forma a possibilitar uma melhor consecução de determinados objetivos, eis uma das grandes metas da existencialidade humana. Nem sempre a ordem estabelecida é a melhor ordem pela qual as coisas estão ordenadas. A palavra ordem assume várias acepções dentro do vernáculo. Eis algumas acepções:
[Do lat. ordine.]
S. f.
1 - Disposição conveniente dos meios para se obterem os fins.
2 - Disposição metódica; arranjo de coisas segundo certas relações: ordem alfabética.
3 - Boa disposição; bom arranjo; arrumação: pôr os livros em ordem; deixar em ordem a casa.
4 - Qualidade de quem é metódico: Revela muita ordem no seu trabalho.
5 - Regra ou lei estabelecida: Tais atos não seguem a ordem.
6 - Tranqüilidade pública resultante da conformidade às leis.
7 - Disciplina, subordinação: manter a ordem.
8 - Determinação de autoridade; mandado, prescrição, ordenação: ordem superior.
9 - Documento que autoriza ou determina a execução de uma ação: ordem de pagamento; ordem de serviço; ordem de crédito; ordem de compra.
10 - Boa administração: cuidar da ordem da empresa.
11 - Categoria (3): artista de primeira ordem; Procedimento de tal ordem é monstruoso.
12 - Maneira, modo, disposição: Pôs as crianças em ordem de altura.
13 - Renque, fila, fileira: várias ordens de ciprestes.
14 - Classe ou hierarquia de cidadãos: ordem dos sacerdotes; ordem dos militares.
15 - Classe de pessoas que exercem determinada profissão liberal: a ordem dos advogados.
16 - Feição especial ou característica da organização política e social: O movimento resultou em nova ordem.
17 - Série, seqüência: Uma ordem de acontecimentos políticos determinou a revolução.
18 - Lei, regulamento.
19 - Publicação de leis, regulamentos ou instruções acerca de serviço militar.
20 - Companhia de pessoas que fazem voto de viver sob a autoridade de certas regras: a Ordem de Malta.
21 - Classe de honra instituída por um governo ou por um soberano, para recompensar o mérito de um indivíduo ou instituição.
22 - Confraria de seculares ligados à Igreja, e que se comprometem a cumprir determinados preceitos exarados em estatuto próprio: a Ordem do Santo Sepulcro.
23 - Insígnia(s) de membro de uma ordem (21).
24 - Ecles. Sacramento que confere o poder de exercer funções eclesiásticas.
25 - Arquit. Sistema de relações fixas entre as dimensões de certas partes dum edifício, como pedestal, coluna e entablamento: ordem dórica; ordem jônica.
26 - Biol. Categoria taxonômica compreendida entre a classe e o grupo, e que se subdivide em famílias.
27 - Mat. Ordinal de um elemento de um conjunto ordenado.
28 - Rel. Comunidade católica masculina ou feminina caracterizada pela emissão de votos solenes (v. voto solene) de pobreza, castidade e obediência[8].
Ordem, assim, pode ser uma boa disposição, um bom arranjo, uma boa arrumação, uma ordem, um comando. Mas, o que vem a ser o conceito de “ordem pública”, utilizado pelo Código de Processo Penal, como requisito autorizador da concessão da prisão preventiva (modalidade de prisão cautelar), por exemplo? Podemos supor que a “ordem pública”, autorizadora da concessão da prisão preventiva é a “ordem social”, ou seja, a forma como a vida em sociedade, atualmente, está ordenada, ou seja, estruturada em termos de costumes, ordenamento jurídico, regime político, sistema educacional, etc. É para preservar este estilo de vida da sociedade que, em tese, a prisão preventiva é requerida e, se consistente o pedido, deferido, tendo como consequência o encarceramento provisório e indefinido, do acusado. E é justamente a indefinição temporária da prisão preventiva, ou seja, sua duração temporal destituída de prazo, o característico que a torna tão perigosa, do ponto de vista do respeito das garantias fundamentais e individuais da pessoa humana.
Quem pode garantir que a atual ordem pública é a mais ideal para ser mantida e para justificar uma medida tão abusiva e brutal quanto uma prisão preventiva? Se a atual ordem de coisas fosse a ideal, talvez não houvesse tanto desemprego e pessoas passando fome, aliando-se a isso um quadro educacional vergonhoso, com políticas voltadas mais aos interesses minoritários das classes burguesas, que estão no poder, do que com a maioria de despossuídos que são todos os dias alijados do sistema e obrigados a viver na margem da sociedade. O sistema lança as pessoas na marginalidade e depois busca políticas mais drásticas para puni-las, quando se tornam marginais, violentas e cometem crimes para poderem sobreviver. Deveras, um contrassenso sociológico muito sério.
O que se está querendo dizer com todos estes prolegômenos é que, o quesito “ordem pública”, deve ser encarado com muita ressalva e parcimônia. Alijar um ser humano do seio social, sob a alegação do mesmo ter cometido um delito é algo muito sério, posto que o meio social estará com os olhos voltados para o mesmo, sempre espreitando sua vida, sua dignidade, sua intimidade. E isso é muito sério. A ordem pública, neste caso, deve ser analisada em cada ocorrência fática, pois, somente o caso concreto poderá dizer se, de fato, a ordem pública está em risco. Não é qualquer delito que enseja a decretação da prisão cautelar, mas sim, aquelas modalidades delituosas que denotem um resfriamento de personalidade, com requintes de crueldade e que, efetivamente, coloquem em risco a incolumidade pública. Aqui entrará em cena a análise da periculosidade do suposto autor do fato criminoso. Defendemos que, seria interessante, nas Delegacias de Polícia, haver profissionais especializados em saúde mental (psicólogos e psiquiatras), cuja incumbência seria analisar as características psicológicas do acusado e, mediante a confecção de Laudo Médico, devidamente detalhado, atestar a personalidade do mesmo, isto é, se a pessoa sofre de alguma síndrome de inadequação social ou outra patologia psíquica, que a torne propensa para a reincidência em novas práticas delitivas. De posse de referido Laudo, o juiz terá maiores elementos para fundamentar a decretação da prisão cautelar requeria. Isso, certamente, traria mais segurança jurídica na fase da persecução penal. Sem sombra de dúvidas, a periculosidade, desde que, devidamente constatada, justifica a segregação cautelar do suposto autor do fato criminoso. Nas palavras do eminente jurista Julio Fabbrini Mirabete: “Mas, sem dúvida, está ela justificada no caso de ser o acusado dotado de periculosidade, na perseverância da prática delituosa, quando se denuncia torpeza, perversão, malvadez, cupidez e insensibilidade moral.” (Mirabete,1997:386)
Ninguém quer, ainda que seja o mais ferrenho defensor dos direitos humanos, que a sociedade seja alvo de um criminoso em série, como os assassinos seriais (serial killer), por exemplo. Se, infelizmente, para a segurança de uma maioria, a liberdade de uma pessoa deve ser sacrificada, o bom senso exige que referido sacrifício seja executado. Um molestador de crianças, por exemplo, possui um desvio de personalidade que o fará delinquir, sempre que aviste a nova vítima. Caso similar ocorre com um estuprador, cujos antecedentes criminais apontem a existência de várias vítimas. Portanto, o receio da reincidência deve existir. Este receio, entretanto, deve ser real e não meramente possível ou imaginário. Ademais, este receio deve estar ancorado em provas contundentes de que, se o acusado permanecer solto, certamente irá delinquir novamente. É por essa razão que sugerimos linhas acima, a permanência de profissionais da saúde mental nas Delegacias de Polícia, para que possam analisar, caso a caso, individualizadamente. Cada caso deverá ser analisado, como dito e ressaltado acima, com muito cuidado e parcimônia. Pergunta-se: o delito de homicídio enseja a decretação da prisão preventiva? Depende. Várias circunstâncias fáticas podem levar uma pessoa a cometer um delito de homicídio. Pode ser que a pessoa se encontre em legítima defesa, ou estado de necessidade que, como já ressaltado, são circunstâncias que excluem a ilicitude do ato praticado.
Desta forma, a interpretação do conceito e requisito legal denominado “ordem pública” é, deveras, uma interpretação que deve ser feita com muita parcimônia e cuidado, posto que, referida interpretação não deve ser feita, consoante meros subjetivismos, mas sim, com espeque na lógica e no bom senso, como ressaltado acima.
Outrossim, não se pode confundir risco à ordem pública, com a balbúrdia e o sensacionalismo que a imprensa monta ao redor de certos acontecimentos inusitados, ou seja, aqueles crimes que apresentam maior repercussão. Em cidades do interior, nas quais a população está mais habituada com certa frequência de calmaria, isso é um prato cheio para a imprensa. As autoridades responsáveis pelas investigações, em momento algum, podem se deixar influenciar pelo sensacionalismo. Ausentes os requisitos legais, a prisão preventiva não pode ser mantida.
O outro requisito da prisão cautelar, mais especificamente, da prisão preventiva, e, portanto, desta modalidade que é exceção dentro do sistema processual penal, é que a mesma seja decretada por conveniência da instrução criminal. Mas, o que vem a ser a instrução criminal? A instrução criminal traduz-se no encadeamento de atos processuais, tendentes a formar a convicção sobre a culpa do acusado, ou seja, se o mesmo é realmente responsável pelas consequências desencadeadas pela prática do ato ilícito que pesa sobre o mesmo, ou seja, do ato que lhe é imputado, atribuído ao mesmo. A prisão preventiva (modalidade de prisão cautelar), neste caso, objetiva impedir que o acusado frustre a concretização destes atos processuais, tendentes a formar a convicção do magistrado, sobre ser o mesmo autor do fato que lhe é atribuído. Estando o acusado preso cautelarmente, não poderá o mesmo desempenhar qualquer iniciativa tendente a apagar os vestígios do crime, porventura, deixados pela ação criminosa, bem como não poderá novamente investir contra a vítima ou seus familiares, ou coagir e ameaçar testemunhas, ou ainda, evadir-se do distrito da culpa. Ademais, tratando-se de criminoso com personalidade psicopatológica (psicopata[9] ou sociopata[10]), ou seja, pessoa premida por comportamentos antissociais ou associais e imorais, na qual falta o senso de responsabilidade moral ou de consciência voltada para o bem-estar da coletividade, fica evidenciada a preocupação em se estigmatizar esta pessoa do convívio social, sob pena de se permitir que a mesma faça novas vítimas. Claro que a constatação de personalidades psicopatológicas deve ser feita, consoante já dito acima, por profissionais especializados em saúde mental. Portanto, sendo a prisão cautelar uma medida excepcional, deve, igualmente, ser aplicada para casos excepcionais.
O outro requisito da prisão preventiva (modalidade de prisão cautelar) visa garantir a ordem econômica. Referido requisito para a decretação da prisão preventiva, apenas se aplica para as modalidades delituosas que atentem contra o sistema financeiro, como os definidos na Lei nº 8.137/90 (define os crimes contra a ordem tributária, econômica e contra as relações de consumo), Lei nº 7.492/86 (define os crimes contra o sistema financeiro nacional) e a Lei nº 1.521/51 (altera dispositivos da legislação vigente sobre crimes contra a economia popular). Em resumo, a decretação da prisão preventiva, visando garantir a ordem econômica, aplica-se apenas aos crimes contra o sistema financeiro, econômico e tributário. Mas, mesmo assim, é um setor do estudo jurídico-penal que somente o caso concreto poderá dizer se a medida é necessária ou não.
Finalmente, o último requisito da prisão preventiva é assegurar a aplicação da lei penal. Estando o acusado detido, o mesmo estará impossibilitado de empreender fuga e, desta forma, não poderá frustrar a aplicação da lei penal. Uma vez que haja a sentença penal condenatória com trânsito em julgado, é dizer, da qual não caiba mais qualquer modalidade de recurso, o mesmo já estará à disposição da justiça para cumprir o lapso temporal previsto e estabelecido em sentença. Entretanto, mesmo diante de todos estes requisitos legais, nada substitui a análise do caso concreto. Por que, uma coisa é certa, o peso da sobre-pena, ou seja, daquela pena informal, imposta pela sociedade, que jamais esquece os erros de seus membros, como ressaltado alhures, é, deveras, pesada. Um erro jurídico pode custar muito caro ao acusado. Custo tão elevado que, não raras vezes, nem mesmo o tempo consegue apagar, pois, sempre haverá um maldoso qualquer à espreita de uma oportunidade para humilhar seu semelhante. Aliás, este sentimento sórdido que o homem tem dentro de seu bojo, de sentir prazer em humilhar seu semelhante, foi algo que sempre causou frustração e indignação em Gandhi. Certa vez ele disse: “Sempre considerei um mistério a capacidade dos homens de sentirem-se honrados com a humilhação de seu semelhante”.
É evidente que os interesses da sociedade precisam ser salvaguardados, óbvio ainda, que quando se está tratando de interesses majoritários, alguns expedientes devem ser tomados para que a vontade da maioria seja protegida, entretanto, estes expedientes nunca podem ser de tal ordem a anular a pessoa humana. Lançar o indivíduo numa zona de esfumaçamento e agir como se ele não existisse, certamente colocam em xeque a própria credibilidade do Estado, bem como a ordem e a paz sociais. Isso, certamente, coloca em risco a segurança individual das pessoas.
Nenhum indivíduo é tão pequenino ou desimportante, a ponto de sua individualidade e intimidade serem violadas de forma impune. Esta violação, certamente, é uma violência desarrazoada e injustificada, que ganha ares de maior gravidade quando perpetrada pelo Estado, pois é o poder legitimamente constituído pelo povo, cuja função e obrigação legal é proteger seus cidadãos. Uma Nação verdadeiramente forte nunca é maior do que o menor de seus membros. Respeito deve ser a palavra de ordem da vida em sociedade.
Certamente muitos despautérios estatais têm sido cometidos sob o pálio do “interesse da maioria”. Muitos discursos demagógicos, bem como políticas desastrosas apresentam tal conceito como pano de fundo e estofo. Quantos desmandos, quantas informações desencontradas. O abuso, em meio à confusão, à falta de ordem e controle e, notadamente, diante do desrespeito da pessoa humana e de seus direitos fundamentais, encontra veio fértil, por meio do qual possa fluir tranquilamente, maculando assim, anos ou décadas de intensa luta pelo respeito de ditos direitos. Muitos são os que criticam as Comissões de Direitos Humanos, dizendo que as mesmas são exageradas nas reivindicações que fazem, ou que são demasiadamente rigorosas no cumprimento das metas estabelecidas. A estes que criticam, duas palavras temos a dar: primeiro, se o respeito imperasse em nosso meio social, partindo referido respeito das autoridades constituídas, certamente os defensores dos direitos humanos não seriam tão intransigentes. Quando o homem aprender a respeitar seu semelhante de forma espontânea, de forma fraterna, sem qualquer coerção que o obrigue a isso, então estaremos a um passo da aurora de uma humanidade na qual não serão mais necessárias leis, diplomas legais e regras. Mas, este dia, crê-se, ainda está um pouco distante, tomando como parâmetro a atual conjuntura brasileira e mundial. Segundo, se sendo intransigentes ainda há o nível de desrespeito que vislumbramos todos os dias, imaginem se deixassem “correr solto”?
A estes dois argumentos, um terceiro poderia se lhes ajuntar, qual seja: somente aqueles que não são vítimas de atos atrozes e bárbaros é que podem taxar os defensores dos Direitos Humanos de radicais e intransigentes. Tão logo a pessoa se torne alvo de tais atos e desrespeitos, clama por alguém que lhe possa vir ao socorro, fazendo cessar, imediatamente, os atos cruéis que se abatem sobre si. De fato, quem nunca apanhou não pode saber qual é a intensidade da dor do golpe sofrido por seu semelhante.
A grande verdade é que, se o desrespeito é intenso, se as pessoas que cometem os abusos são veementes no cometimento dos atos contrários aos direitos fundamentais da pessoa humana, necessário é que a sociedade conte com pessoas igualmente intransigentes e turronas na defesa destes mesmos interesses, destes direitos fundamentais e impostergáveis que são a essência do próprio homem. Se ninguém nunca fizer nada por ninguém e se as pessoas não se unirem na defesa de seus pares, pergunta-se: o que será da humanidade? Por essa razão, aplaudo os grupos que se lançam na defesa dos interesses e dos direitos fundamentais de seus semelhantes, rumo à construção de um mundo melhor. Pode até parecer utopia, mas, se ninguém ousar sonhar, o que será deste mundo? Os que sonham transcendem as barreiras do impensável, do incognoscível, do incomensurável para construir um mundo mais decente, mais justo. Como dizia Einstein, uma coisa somente é impossível até que alguém duvida e prova o contrário.
O mundo é cheio de possibilidades e é sobre elas e por elas que nós temos forças para continuar a lutar.
Quando está em risco a liberdade de um ser humano, todo cuidado é pouco. No momento da investigação de um determinado delito, as autoridades devem se pautar por todos os princípios constitucionais informadores do procedimento investigativo e estarem atentas a todas as garantias da pessoa humana. Até porque, o desrespeito aos direitos fundamentais gera nulidade processual.
Diante disso, quando a autoridade está diante do pedido de prisão preventiva, a análise de todos os requisitos processuais deve ser feita com muita atenção e cautela. Além do que, o simples fato de um determinado delito causar certa convulsão social não autoriza a privação provisória da liberdade de um indivíduo. Até mesmo diante de crimes hediondos, como por exemplo, o tráfico de drogas, há casos de concessão de habeas corpus em decorrência do decreto preventivo não conter a necessária fundamentação.
Nesse sentido, assim já se manifestou o Superior Tribunal de Justiça, 5ª T., Recurso Ordinário em HC nº 15.803-SC; Rela. Min. Laurita Vaz; j. 28/4/2004; v.u., jurisprudência publicada no Boletim da AASP n. 2390, de 25 a 31 de outubro de 2004, p. 3249, cuja ementa é a seguinte:
PROCESSUAL PENAL E CONSTITUCIONAL – Acórdão denegatório de writ originário. Interposição de recurso especial. Recurso especial. Erro grosseiro. Não conhecimento. Crime de tráfico ilícito de entorpecentes. Prisão em flagrante delito. Pedido de liberdade provisória negado, de forma singela, com fulcro apenas no art. 2º, inciso II, da Lei nº 8.072/90. Carência de fundamentação. Precedentes do STJ. Concessão de ofício. 1 – Considera-se erro grosseiro e inescusável a interposição de recurso especial no lugar de recurso ordinário constitucionalmente previsto, razão pela qual não há como conhecer do inconformismo. Precedentes. 2 – Não obstante, nada impede que, formulada e examinada a questão pelo Tribunal a quo, esta Corte Superior conheça de ofício, mormente se há ilegalidade a ser sanada. 3 – A simples alegação da natureza hedionda do crime cometido pelo agente do delito não é per si justificadora do indeferimento do pedido de liberdade provisória, devendo, também, a autoridade judicial fundamentar e discorrer sobre os requisitos previstos no art. 312 do Código de Processo Penal. Precedentes. 4 – Recurso não conhecido, porém, concedida, de ofício, a ordem para que seja concedida a liberdade provisória à paciente, com a conseqüente expedição do alvará de soltura, se por outro motivo não estiver presa, mediante condições a serem estabelecidas pelo juízo processante, sem prejuízo de eventual decretação de custódia cautelar, devidamente fundamentada. Postulada (STJ – 5ª T.; RO em HC nº 15.803-SC; Rela. Min. Laurita Vaz; j. 28/4/2004; v.u.)
A Ministra prolatora desta decisão, em seu voto, assim se manifestou:
Ora, sendo a prisão cautelar uma medida extrema e excepcional, que implica em sacrifício à liberdade individual, é imprescindível, em face do princípio constitucional da inocência presumida, a demonstração dos elementos objetivos, indicativos dos motivos concretos autorizadores da medida constritiva.
Na hipótese vertente, todavia, como se vê, a decisão baseou-se apenas na vedação contida na Lei dos Crimes Hediondos, sem qualquer outra fundamentação concreta que pudesse justificar a medida restritiva da liberdade.
Nesse sentido, confira-se os seguintes precedentes da Colenda Quinta Turma, in verbis:
“Ementa: Criminal. HC. Entorpecentes. Prisão em flagrante. Liberdade provisória. Ausência de concreta fundamentação para a manutenção da custódia.
Necessidade da medida não-demonstrada. Presença de condições pessoais favoráveis. Tentativa. Tese negativa de autoria. Impropriedade do meio eleito. Ordem parcialmente concedida.
Exige-se concreta motivação da decisão que indefere o pedido de liberdade provisória, com base em fatos que efetivamente justifiquem a custódia processual, atendendo-se aos termos do art. 312 do CPP e da jurisprudência dominante. Precedente.
A mera alusão à existência de indícios de autoria não é suficiente para motivar a manutenção da custódia.
O simples fato de se tratar de crime hediondo não basta para que seja determinada a segregação. Precedentes.
Condições pessoais favoráveis, mesmo não sendo garantidoras de eventual direito à liberdade provisória, devem ser devidamente valoradas, quando não demonstrada a presença de requisitos que justifiquem a medida constritiva excepcional.
O habeas corpus constitui-se em meio impróprio para a análise de alegações que exijam o reexame do conjunto fático-probatório – como a apontada tese negativa de autoria, se não demonstrada, de pronto, qualquer ilegalidade nos fundamentos da denúncia.
Deve ser concedida, em parte, a ordem para revogar a prisão cautelar efetivada contra C.F.M., determinando-se a imediata expedição de alvará de soltura em seu favor, se por outro motivo não estiver presa, mediante condições a serem estabelecidas pelo Julgador de 1º grau, sem prejuízo de que venha a ser decretada novamente a custódia, com base em fundamentação concreta.
Ordem parcialmente concedida, nos termos do voto do Relator”. (HC nº 23738/SP, Rel. Min. Gilson Dip, DJ de 3/2/2003, p. 336)
“Ementa: Penal e processual penal. Recurso ordinário em habeas corpus. Duplo homicídio qualificado. Prisão em flagrante mantida pela sentença de pronúncia. Pedido de liberdade provisória. Ausência de fundamentação.
O indeferimento do pedido de liberdade feito em favor de quem foi detido em flagrante deve ser, em regra, concretamente fundamentado.
A qualificação do crime como hediondo não dispensa a exigência de fundamentação concreta para a denegação da liberdade provisória. (Precedentes).
Recurso provido para conceder a liberdade provisória ao recorrente, com a conseqüente expedição do alvará de soltura, se por outro motivo não estiver preso, sem prejuízo de eventual decretação de prisão preventiva devidamente fundamentada”. (RHC nº 12841/PR, Rel. Min. Felix Fischer, DJ de 21/10/2002, p. 374)
“Ementa: Processual penal. Habeas corpus. Tráfico de drogas. Prisão em flagrante. Liberdade provisória. Indeferimento. Fundamentação. Excesso de prazo.
I – O eventual excesso de prazo provocado pela própria defesa não constitui constrangimento ilegal (Súmula nº 64-STJ).
II – Mesmo em sede de crimes hediondos, o indeferimento da liberdade provisória não pode ser genérico, calcado em mera repetição de texto legal ou, então, na gravidade do delito (Precedentes).
Habeas corpus concedido”. (HC nº 15176/RJ, Rel. Min. Felix Fisher, DJ de 13/8/2001, p. 185)
Ante o exposto, não conheço do recurso especial, porém concedo de ofício a ordem para que seja concedida a liberdade provisória à paciente, com a conseqüente expedição do alvará de soltura, se por outro motivo não estiver presa, mediante condições a serem estabelecidas pelo Julgador de 1º Grau, sem prejuízo de eventual decretação de custódia cautelar, devidamente fundamentada.
É como voto.
Laurita Vaz
Relatora
Desta forma, como se infere do julgado, eruditamente redigido, pela Douta Ministra Laurita Vaz, a prisão cautelar, dada sua excepcionalidade, dada sua gravidade, posto atingir direito fundamental da pessoa humana, qual seja, sua liberdade, exige ampla e profunda fundamentação. Pegue-se como exemplo os crimes hediondos. O simples fato de uma determinada conduta delitiva estar inserida no rol estabelecido pela lei 8.072/90 não é motivo suficiente para a decretação desta medida excepcional.
Se a denegação do pedido de liberdade provisória, bem como a determinação de que a prisão preventiva seja decretada, estivem desfundamentadas, ou estiverem respaldadas em argumentos frágeis e insubsistentes, cabível será o remédio do habeas corpus para que a ilegalidade cesse.
Assim, para que a prisão preventiva seja decretada e mais, para que possa produzir efeitos, necessário que, além dos requisitos legais previstos para tal medida, esteja também presente uma boa fundamentação.
Neste mesmo sentido, assim se pronunciou o Ministro do STJ, Gilson Dipp, 5ª Turma, no Resp nº 562.613-RS, julgado de 18/11/2003, publicado no Boletim AASP nº 2387, pág. 3225, nestes termos:
CRIMINAL – Recurso Especial. Entorpecentes. Liberdade provisória. Manutenção da prisão. Necessidade da medida não demonstrada. Recurso conhecido e desprovido. I – Exige-se concreta motivação para a decretação de prisão cautelar, mesmo em se tratando, em tese, de crime hediondo, pois a determinação de custódia deve fundar-se em fatos concretos que indiquem a necessidade da medida, atendendo aos termos do art. 312 do CPP e da jurisprudência dominante. II – Recurso parcialmente conhecido, mas desprovido (STJ – 5ª T.; Resp nº 562.613-RS; Rel. Min. Gilson Dipp; j. 18/11/2003; v.u.).
(...)
O recorrente sustenta, em síntese, que a revogação da custódia cautelar do recorrido é inviável, com base, exclusivamente, no fato de que o crime em tese cometido está dentre aqueles relacionados como hediondos.
Contudo, o simples fato de se tratar de crime hediondo, por si só, não é suficiente para a caracterização da medida como necessária. A determinação de custódia deve ser fundada em fatos relevantes que efetivamente indiquem que a prisão se faz necessária, atendendo aos termos do art. 312 do Código de Processo Penal e da jurisprudência dominante, ainda que se cuide de crime hediondo.
Diante do exposto, conheço do recurso, para negar-lhe provimento.
É como voto.
A fundamentação das decisões judiciais, além de ser um imperativo constitucional, previsto no inciso IX, do art. 93 da CF/88, é uma garantia de segurança jurídica, pois, pela fundamentação, a pessoa tem condições de saber por quais razões está sendo privada de sua liberdade.
Acerca da necessidade de fundamentação das decisões judiciais, já tivemos a oportunidade de aduzir o seguinte entendimento:
Apontamentos acerca da necessidade de fundamentação das decisões judiciais dos requisitos da sentença[11]
A sentença é o momento processual pelo qual o juiz poderá resolver o mérito da causa que lhe é submetida. Isso quando estamos diante do processo civil. Diz-se “poderá”, porque referida resolução do mérito apenas é possível, caso os requisitos legalmente necessários para esta finalidade estejam presentes. Pode ser caso de extinção do processo sem resolução do mérito, nos termos do art. 267 do CPC. A resolução do mérito da causa dar-se-á nas hipóteses do art. 269 do CPC. Esta a pretensão das partes e do próprio Estado.
Ocorre que, a sentença, como todo ato processual, deve apresentar alguns requisitos para que seja válida. Estes requisitos são: relatório, que conterá os nomes das partes, a suma do pedido e da resposta do réu, bem como o registro das principais ocorrências havidas no andamento do processo (inc. I, do art. 458, do CPC); motivação ou fundamentação, em que o juiz analisará as questões de fato e de direito (inc. II, do art. 458, do CPC) e o dispositivo (decisão), em que o juiz resolverá as questões, que as partes lhe submeterem (inc. III, do art. 458, do CPC). No processo penal, na parte da sentença destinada ao relatório, o juiz fará uma síntese da denúncia, peça processual de competência do Ministério Público, na qual o mesmo descreverá o ato que considera típico, é dizer, tipificado no Código Penal e/ou na legislação penal esparsa brasileira como crime, bem como descreverá, em forma sintetizada, os argumentos da defesa. Lembre-se, por oportuno, que, em sede de processo penal, vigora o princípio da correlação entre sentença e denúncia.
Façamos agora, uma incursão no processo penal, e analisemos quais os requisitos da sentença penal. O artigo que os traz referidos requisitos é o art. 381 do CPP. O art. 381 do CPP diz que “a sentença conterá”: I – os nomes das partes ou, quando não possível, as indicações necessárias para identificá-las; II – a exposição sucinta da acusação e da defesa; III – a indicação dos motivos de fato e de direito em que se fundar a decisão; IV – a indicação dos artigos de lei aplicados; V – o dispositivo; VI – a data e a assinatura do juiz. O inciso I diz que a sentença deve conter o nome das partes, ou quando isso não for possível, as indicações que sejam necessárias e suficientes para referida identificação. Como se sabe, a pena não passará da pessoa do condenado, este princípio decorre do princípio da individualização da pena. Somente a pessoa que cometeu um determinado crime, poderá ser submetida às penas previstas para o mesmo. Houve um tempo em que, deveras, a pena atingia toda a família do condenado. Felizmente, este tempo se foi. Diante disso, é necessário que conste na sentença o nome do condenado, ou, pelo menos, os sinais característicos por meio dos quais se possa identificá-lo. Estes sinais característicos são aspectos físicos, como cor de cabelo, dos olhos, cor da pele, ou ainda a alcunha pela qual o mesmo é conhecido, muitas vezes, nos meios policiais ou na sociedade em que reside. O importante é que a pessoa certa seja a destinatária da pena imposta. Deve conter ainda a exposição sucinta da acusação e da defesa (inc. II, do art. 381, do CPP), isso porque, ao decidir, o juiz terá que optar por uma das teses que foram expostas nos autos, quais sejam a tese da acusação, por meio da qual o Ministério Público buscará elementos que convençam o magistrado de que no caso submetido ao mesmo estão presentes os requisitos da materialidade e da autoria delitivas; e a tese defensiva, por meio da qual o acusado buscará os elementos nos quais dá embasamento ao seu pedido. Sem acusação não há que se falar em ação penal. Sem a devida defesa, o Estado não proporciona ao cidadão os direitos constitucionais do contraditório e da ampla defesa e com isso o princípio do devido processo legal (due processo of law), logo, sem estas garantias, o processo é nulo em sua totalidade.
O processo deve funcionar por uma forma estruturalmente dialética, é dizer que, o resultado final é uma síntese da tese apresentada pela acusação, primeira a se manifestar no processo, sendo, na ação penal pública incondicionada e na condicionada à representação, o órgão ministerial quem oferece a denúncia (analogicamente com o processo civil seria a petição inicial); e a antítese (ou anti-tese, ou seja, os argumentos que se contrapõem à tese), apresentada pela defesa. Na defesa, o acusado terá a oportunidade de analisar a acusação que pesa sobre o mesmo e, por conseguinte, a imputação de qual crime é endereçada ao mesmo. Diante das provas que a acusação oferecer, a defesa terá a oportunidade de se contrapor às mesmas. O juiz, portanto, ao fazer um relatório sucinto das teses conflitantes apresentadas por ambas as partes, estará, ao mesmo tempo, traçando o rumo do processo cognitivo que está adotando. Lembre-se, ademais que, o relatório poderá ser sucinto, o que não dispensa o magistrado de fazê-lo.
Ainda na sentença, o juiz deverá fazer “a indicação dos motivos de fato e de direito em que se fundar a decisão” (inc. III, do art. 381, do CPP). Este ponto é de fundamental importância, o que merecerá de nossa parte algumas linhas mais delongadas e detidas acerca de referida temática, qual seja a da FUNDAMENTAÇÃO da decisão judicial.
A necessidade de fundamentação, ademais, é uma exigência constitucional, que assim faz constar no inc. IX, do art. 93 (CF/88): “IX – todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade, podendo a lei limitar a presença, em determinados atos, às próprias partes e a seus advogados, ou somente a estes, em casos nos quais a preservação do direito à intimidade do interessado no sigilo não prejudique o interesse público à informação;” (Redação dada ao inciso pela Emenda Constitucional n. 45, de 08.12.2004, DOU 31.12.2004)
A fundamentação serve para que se possa saber qual foi o juízo lógico, ou silogismo, utilizado pelo magistrado para chegar ao resultado expresso na parte dispositiva da sentença. Ao fundamentar, o magistrado diz em quais fatos, em quais provas ou em quais dispositivos de lei, o mesmo conduziu sua cognição, para chegar ao resultado expresso na mesma. E se o juiz estiver trilhando um caminho incognoscível, ou seja, que não pode ser explorado pelo pensamento, pelos atuais estágios dos vários ramos do conhecimento humano? E se a decisão estiver fundamentada em dispositivos de lei já revogados ou declarados inconstitucionais? Para isso serve este requisito da sentença.
Sem fundamentação a segurança jurídica é posta em xeque. E o processo não é um jogo, no qual a sorte dos contendores é decida por um lançar de dados. Aquele que vence, tem que saber por que venceu, e o que teve sua pretensão indeferida ou julgada improcedente, tem o direito de saber por que determinado resultado lhe foi desfavorável.
Neste momento, transcreveremos alguns excertos de copioso artigo denominado “Sentença civil: Motivação”, da lavra da professora Márcia Fratari Majadas, publicado na Revista Síntese de Direito Civil e Processual Civil n. 22, MAR/ABR de 2003, p. 30, nestes termos:
“SENTENÇA CIVIL: MOTIVAÇÃO – Márcia Fratari Majadas
A CF determina que as decisões sejam judiciais fundamentadas: “todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos e motivadas todas as decisões (art. 93, IX, CF/88), resguardando assim a efetividade do devido processo legal, permitindo o seu controle por meio da publicidade e transparência”. Pela análise da motivação, afere-se a legalidade, a efetividade e a imparcialidade do juiz, com a finalidade de manter a paz social.
3. Requisitos essenciais da sentença quanto à estrutura
3.2. Motivação da sentença – fundamentos
Os fundamentos da sentença devem demonstrar as razões pelas quais o juiz acolheu ou rejeitou o pedido. A exigência da declaração dos fundamentos da decisão encontra-se disposta no inc. IX, do art. 93, da CF/88. Não são admitidas sentenças que não façam referência aos motivos pelos quais o juiz acolheu ou não uma prova. A fundamentação permite ao vencido entender os motivos de seu insucesso e, se for o caso, interpor recurso, fundamentá-lo adequadamente, demonstrando os equívocos da sentença.
A fundamentação também possibilita ao órgão de segundo grau entender os motivos que levaram o julgador de primeiro grau a dar ou não razão ao autor.
O juiz deve demonstrar as razões de seu convencimento, uma vez que a sentença deve ser o resultado do raciocínio lógico, assentado no relatório, no fundamento e no dispositivo.
3.3. A motivação da sentença no direito luso-brasileiro
Motivar as sentenças judiciais é uma tradição do direito luso-brasileiro, prevista desde o Código Filipino, 8 que dispunha: “E para as partes saberem se lhes convém apelar, ou agravar das sentenças definitivas, ou vir com embargos a elas, e os Juízes da mor alçada entenderem melhor os fundamentos, porque os juízes inferiores se movem a condenar, ou absolver, mandamos que todos nossos Desembargadores, e quaisquer outros julgadores, ora sejam Letrados, ora não sejam declarem especificamente em suas sentenças definitivas, assim na primeira instância, como no de apelação, ou agravo, ou revista, as causas em que se fundaram a condenar, ou absolver, ou a confirmar ou revogar”.
É fato que a motivação da sentença continuou a ser uma exigência no ordenamento jurídico brasileiro, mesmo após a independência do Brasil, seja com a portaria de 31.03.1824 e com o art. 232 do Regulamento 737 de 1850, que dispõe: “A sentença deve ser clara, sumariando o juiz o pedido e a contestação com os fundamentos respectivos, motivando, com precisão, o seu julgado e declarando sob sua responsabilidade a lei, uso ou estilo em que se funda”.
O atual CPC, no inciso II, do art. 458, exige como requisito da sentença, sob pena de nulidade, que o juiz mencione os fundamentos de fato e de direito.
A motivação da sentença envolve não só a necessidade de comunicação judicial, o exercício de lógica e a atividade intelectual do juiz, mas também a submissão do ato processual ao estado de direito e às garantias constitucionais previstas no art. 5º da CF/88 (imparcialidade do juiz, publicidade das decisões judiciais e legalidade na decisão judicial).
Assim, tal obrigatoriedade, em 1988, foi classificada como preceito constitucional, conforme o disposto no inc. IX, do art. 93 da CF/88.
3.4. O preceito constitucional da motivação da sentença e o devido processo legal
Preleciona ARENDT 12 que: “O Poder não é arbitrariedade, mas corresponde à capacidade humana não somente de agir mas de agir de comum acordo. O poder nunca é propriedade de um indivíduo; pertence a um grupo e existe somente enquanto o grupo se considera unido. Quando dizemos que alguém está no poder, queremos dizer que está autorizado por um certo número de pessoas a atuar em nome delas”.
Os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos e, motivadas todas as decisões para resguardar a efetividade do devido processo legal, permitir seu controle, por meio da publicidade e transparência impostas; o que identifica o dever de motivar, conforme dispõe o inc. IX do art. 93 da CF/88.
A falta de motivação das decisões jurisdicionais e administrativas do Poder Judiciário acarreta a pena de nulidade.
A motivação da sentença proporciona às partes alcançar a efetividade do direito de ação e aferir a justeza dos argumentos, a imparcialidade do juiz, a legalidade da decisão, a efetividade do contraditório, além de permitir-lhes o controle do processo quanto ao modo como o Poder está sendo exercido. Na lição de CONOGLIO, 13 “A possibilidade de controlar” os pressupostos valorativos da “escolha” efetivada, por meio do filtro da motivação, é um fator de incondicionada fidúcia do cidadão no órgão jurisdicional, ou como preleciona WATANABE 14 – não se organiza justiça para uma sociedade abstrata, e sim para um país de determinadas características sociais, políticas, econômicas e culturais, o que significa garantir o processo, com procedimento adequado (devido processo legal).
O devido processo legal, na definição de FREDERICO MARQUES: 15 “é o direito ao processo, como actus trium personarum e suas diversas implicações essenciais: a garantia do direito de ação de par com a garantia de defesa, a adoção do contraditório processual, a eqüidistância do juiz no tocante aos interesses em conflito, como órgão estatal desinteressado, justo e imparcial”.
Essas garantias prevalecem ao longo de todas as fases processuais. Para que se concretizem, é preciso examinar dois aspectos fundamentais: o substantive due process e o procedural due process. Pode-se considerar como devido processo legal, do ponto de vista do legislador, aquele que assegura um processo, com procedimento adequado, a realização plena do direito material, previsto na legislação ordinária, e de todos os valores e princípios certificados às pessoas pelo Direito Positivo e pela CF.
Por meio da motivação, avalia-se a legalidade da decisão do juiz, a efetividade do contraditório, a imparcialidade do juiz, dentre tantos outros princípios, como instrumentos para conferir a efetividade do direito à ação.
O texto constitucional de 1988 é claro: “todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário são públicos e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade” (CF/88, art. 93, IX).
3.5. Princípios da imparcialidade do julgador, da legalidade das decisões e da ampla defesa – obrigatoriedade da motivação
A obrigatoriedade da motivação da sentença pelo juiz garante a efetividade de vários princípios, tais como o da imparcialidade, o da legalidade das decisões, o da ampla defesa e o do contraditório.
3.5.1. Imparcialidade
Não só o juiz deve ser imparcial. A imparcialidade deve ser exercitada em qualquer decisão concreta. A decisão não é imparcial em si, mas enquanto demonstre ser. A relação com a obrigatoriedade de motivar é intuitiva: se a decisão não motivada pode, indiferentemente, ser parcial ou imparcial, somente por meio da motivação pode ser revelada a parcialidade e, então, garantida a imparcialidade.
Leciona TARUFFO, 17 que: “a fundamentação da sentença se insere no princípio do devido processo legal trazido de forma expressa no direito constitucional brasileiro (art. 93, IX, da CF/88) e é sem dúvida uma grande garantia de justiça quando consegue reproduzir exatamente o caminho lógico que o juiz percorreu para chegar à sua conclusão”.
3.5.2. Legalidade das decisões
Quanto à legalidade das decisões, todos os poderes estão sujeitos à lei, no Estado de Direito. As opções valorativas que o ordenamento jurídico concede ao julgador, ora acolhendo o princípio da livre apreciação das provas, ora remetendo-o a conceitos jurídicos indeterminados, como o de interesse público, bons costumes, fins sociais a que a norma se destina, exercício regular do direito, tornam, cada vez mais, necessária à motivação da sentença.
Assim, pode-se avaliar a discricionariedade do magistrado, na lição de TARUFFO, La Motivazion: “A legalidade da decisão deve poder ser verificada em todos os casos concretos, mediante o exame das razões com base nas quais o juiz afirma haver aplicado a lei, para conseguir resultados. A decisão deve ser legal... significa obrigação, para o juiz, demonstrar que o princípio da legalidade foi efetivamente respeitado”.
3.5.3. Ampla defesa e contraditório
Os regramentos ampla defesa e contraditório, no dizer de FAZZALARI, consistem na participação dos interessados “em pé de simétrica igualdade” ao longo de todo o arco do processo, com adequados poderes, nos quais se articula a inviolabilidade do direito de defesa, “estabelecendo” entre litigantes e magistrado o circuito de discurso, de arrazoamento.
Enfim, a obrigatoriedade da motivação é correlata ao direito das partes de influir sobre a decisão, em condições de igualdade, valendo-se de todos os instrumentos fornecidos pelo ordenamento processual para o exercício das próprias razões.
3.6. O dever constitucional de motivar – o controle democrático difuso
No Estado de Direito, é fundamental que haja condição de exame das decisões para que toda pessoa interessada possa compreender a razão que levou o julgador a decidir de tal ou qual maneira.
3.7. A motivação da sentença civil em seu aspecto endoprocessual
A função endoprocessual consiste em permitir que as partes exercitem o direito de recorrer, partindo do conhecimento das razões que levaram o iudex a tomar esta ou aquela decisão. A função endoprocessual da fundamentação facilita aos juízes de instância superior a análise das decisões dos julgados de primeiro grau, que lhes são submetidas a exame via recursal. Descortina controle mais apropriado dos atos decisórios, submetidos a uma nova apreciação.
BARBOSA MOREIRA 19 explica: “Não é a circunstância de estar emitindo a última palavra acerca de determinado litígio que exime o órgão judicial de justificar-se. Muito ao contrário é nesse instante que a necessidade de justificação se faz presente: o pronunciamento final, exatamente porque se destina a prevalecer em definitivo e nesse sentido representa a expressão máxima de garantia, precisa, mais do que qualquer outro, mostrar-se apto a corresponder à função delicadíssima que lhe toca. Não é admissível que a garantia se despoje de eficácia, no momento culminante do processo mediante o qual é chamado a atuar”.
3.8. Vícios da sentença – ausência dos chamados requisitos essenciais da sentença
Na falta de um dos requisitos essenciais, a sentença é nula. A CF deixa claro que a sentença deve ser fundamentada, sob pena de nulidade.
Cabe anotar que o reconhecimento da nulidade, por ausência de fundamentação, por ser matéria de ordem pública e, portanto, fora do campo de disponibilidade das partes, pode e deve ser decretada de ofício, 20 e que a ausência de assinatura na decisão, exigência do art. 164 do CPC, torna o ato mais do que inválido isto é inexistente.
Nos casos de sentença mal fundamentada, em que o juiz se equivocara ao apreciar questões, de fato ou de direito, que lhe foram submetidas e, em conseqüência, errou na aplicação de dispositivo legal, não incide em sanção de nulidade: a sentença estará errada, mas será válida. Poderá ser reformada em Superior Instância, sob melhor apreciação das quaestiones facti e das quaestiones iuris, mas não anulada.
A fundamentação sucinta não torna nula a decisão, conforme julgou o STJ, no REsp 2.227, Rel. Min. NILSON NAVES, DJU 30.04.1990. Da mesma forma, o REsp 19.661, Rel. Min. SÁLVIO DE FIGUEIREDO, Ac. de 12.05.1992 e STJ, REsp 10.670, MG, 3ª T., Rel. Min. EDUARDO RIBEIRO, DJU 25.11.1991.
Quanto à ausência de fundamentação, por se tratar de requisito essencial, acarreta nulidade do ato judicial. Arts. 165 e 458 do CPC (STJ, REsp 14.609, 3ª T., Rel. Min. NILSON NAVES, DJU 13.04.1992).
Em resumo, a falta de qualquer dos elementos essenciais ditados pelo art. 458 do CPC, “instituídos não apenas no interesse dos litigantes, mas também no interesse público”, acarreta a nulidade da sentença.”
Como se percebe várias são as razões que tornam necessária a fundamentação da sentença. É uma garantia tanto para o Estado de Direito, como para as partes que compõem a relação processual. Se a sentença não está fundamentada, isso fere o princípio do devido processo legal. Num eventual recurso, a parte que pretende recorrer, não sabe nem por onde começar a confecção de seu recurso, posto que não sabe por qual razão sua pretensão foi indeferida. Tudo o que se disse acerca da motivação em sede de processo civil, serve, ipsis litteris para o processo penal.
Graves são os transtornos decorrentes de uma sentença defeituosa. Alguns podem argumentar que a sentença recorrenda é sucinta, no caso de ausência de fundamentação. Claro que referido argumento não convence, posto que, uma sentença sucinta ou concisa não deve deixar de ser fundamentada.
Somente se pode aquilatar a validade de uma sentença por meio de sua fundamentação. É necessário se conhecer os caminhos que o magistrado percorreu para chegar a tal ou qual resultado.
A sentença que padece de qualquer dos requisitos encartados no art. 458, do CPC, ou no caso do processo penal, do art. 381 do CPP, é ilegal, inconstitucional e é um grande risco à segurança das relações jurídicas. Uma sentença assim é nula, sem qualquer efeito, posto ser um verdadeiro desastre processual.
Por um ato de lógica processual, tem-se que, os efeitos do reconhecimento de uma nulidade, devem retroagir até o ato declarado nulo. Como o processo é uma concatenação lógica de atos processuais que se formam para uma determinada finalidade, tem-se que, a nulidade a ser declarada retroativamente até o ato declarado nulo.
Apenas complementando o entendimento acima esposado, uma opinião de peso se mostra interessante. Acerca da necessidade de fundamentação das decisões judiciais (tanto cíveis, quanto penais e demais sentenças de outras esferas), assim se manifesta o Ministro Athos Gusmão Carneiro, em seu artigo “Sentença mal fundamentada e sentença não fundamentada – conceitos – nulidades”, publicado na Revista Judiciária n. 216, OUT/1995, p. 5, nestes termos:
“Sentença mal fundamentada e sentença não fundamentada – conceitos – nulidade.
(Athos Gusmão Carneiro)
(Publicada na RJ n. 216 – OUT/1995, p. 5)
Ministro jubilado do STJ. Advogado
1. É da Constituição e das leis a necessidade de serem as decisões judiciais fundamentadas:
“Todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade...” (CF, art. 93, IX).
“O juiz apreciará livremente a prova, atendendo aos fatos e circunstâncias constantes dos autos, ainda que não alegados pelas partes; mas deverá indicar, na sentença, os motivos que lhe formaram o convencimento” (CPC, art. 131).
“As sentenças e acórdãos serão proferidos com observância do disposto no art. 458; as demais serão fundamentadas, ainda que de modo conciso” (CPC, art. 165).
“São requisitos essenciais da sentença:
I – ...;
II – Os fundamentos, em que o juiz analisará as questões de fato e de direito;
III – O dispositivo, em que o juiz resolverá as questões, que as partes lhe submeterem” (CPC, art. 458).
“A sentença conterá:
...
III – A indicação dos motivos de fato e de direito em que se fundar a decisão;
IV – A indicação dos artigos de lei aplicados” (CPP, art. 381).
2. Discutem os doutos os porquês da exigência de que o juiz motive a sentença. CALAMANDREI e TARUFFO, embora por caminhos diversos, entendem que a decisão judicial resulta de um apriorístico sentimento, e a motivação seria, destarte, uma forma lógica para controlar, “à luz da Razão, a bondade de uma decisão fruto de sentimento” (PIERO CALAMANDREI, Processo e Democracia. Pádua, 1952, p. 102; MICHELE TARUFFO, La Motivazione della Sentenza Civile. CEDAM, 1957).
Discordou LIEBMAN, para quem a obrigatoriedade da fundamentação será inerente ao próprio “Estado de Direito”, pois neste:
“... tem-se como exigência fundamental que os casos submetidos a juízo sejam julgados com base em fatos provados e com aplicação imparcial do direito vigente; e, para que se possa controlar se as coisas caminharam efetivamente dessa forma, é necessário que o juiz exponha qual o caminho lógico que percorreu para chegar à decisão a que chegou. Só assim a motivação poderá ser uma garantia contra o arbítrio ... (omissis) ... . Para o direito é irrelevante conhecer dos mecanismos psicológicos que, às vezes, permitem ao juiz chegar às decisões. O que importa, somente, é saber se a parte dispositiva da sentença e a motivação estão, do ponto de vista jurídico, lógicos e coerentes, de forma a constituírem elementos inseparáveis de um ato unitário, que se interpretam e se iluminam reciprocamente” (“Do Arbítrio à Razão. Reflexões sobre a Motivação das Sentenças”, Rev. de Processo, RT, 29/79).
Rigorosa obrigação, moral e jurídica do juiz é expor as razões pelas quais decide (LOPES DA COSTA, Direito Processual Civil Brasileiro. 2ª ed., v. III. Konfino, 1948, n. 13), pois a sentença é ato de vontade, que se assenta num juízo lógico, em ato de justiça, da qual devem ser convencidas não somente as partes como também a opinião pública (AMARAL SANTOS, Comentários ao CPC. 4ª ed., v. IV. Forense, n. 324). A sentença é um ato de vontade que representa o epílogo de um ato de inteligência, como disse CARNELUTTI (apud JOSÉ ALBERTO DOS REIS. Processo Ordinário e Sumário, 2ª ed., v. I, 1928, p. 218 a 227).
Refere ERNANE FIDÉLIS DOS SANTOS, ilustre magistrado em Minas Gerais, que:
“... a motivação da sentença é a garantia da própria administração da Justiça, para que não só as partes, mas todos os cidadãos possam saber, exatamente, que a sentença não foi a pura e simples aplicação do arbítrio. JOSÉ CARLOS BARBOSA MOREIRA dá-lhe tamanha importância que chega a dizer expressamente: É conveniente a inclusão, na Constituição da República, de dispositivo que consagre em termos expressos o princípio da obrigatoriedade da motivação”. (Com. ao CPC. Forense, 2ª Coletânea, v. 3, tomo I, 1980, n. 278).
Mestre BARBOSA MOREIRA, em artigo publicado já em 1978, realmente pugnou pela inclusão, em nível constitucional, de preceito tornando obrigatória a motivação das decisões judiciais, inclusive para permitir o controle não apenas endoprocessual dos provimentos, mas também aquele controle “generalizado e difuso” da opinião pública, quisquis do populo, sobre o modo de funcionamento do mecanismo assecuratório da tutela jurisdicional (“A Motivação das Decisões Judiciais como Garantia Inerente ao Estado de Direito”, Rev. Bras. de Dir. Processual. Forense, v. 16/111).
Esta, diga-se, foi a posição de JOÃO MONTEIRO sobre o direito de os jurisdicionados conhecerem os motivos das sentenças, porque só assim poderão eles ajuizar se justiça foi ou não feita, e só na justiça reside a utilidade pública dos decretos daquele poder, e, portanto, a sua legitimidade (Teoria do Processo Civil, 6ª ed. atualizada, tomo II. Borsoi 1956, § 193.2).
Em comentando a vigente norma constitucional (CF, art. 93, IX), afirmou MANOEL GONÇALVES FERREIRA FILHO que a exigência de fundamentação é um obstáculo ao arbítrio, que repugna ao Estado de Direito, mesmo que exercido por juízes. E refere com remissão a ADA PELLEGRINI GRINOVER a lição de GIUSEPPE BETTIOL, de que se trata de mais uma das garantias predispostas pelo Estado de Direito como tutela das liberdades individuais (Coment. à Const. Brasileira, 1ª ed., v. II. Saraiva 1992, p. 199).
13. Cumpre, pois, aos magistrados, o empenho máximo no evitar que questão relevante à defesa do direito de qualquer dos litigantes reste sem apreciação, impedindo assim que a parte sucumbente venha a argüir a nulidade da sentença ou do acórdão”.
Portanto, como se percebe a fundamentação não é apenas um requisito de validade da sentença, é mais do que isso, é uma obrigação do juiz, um direito do cidadão e uma garantida do estado democrático de direito, que prima pelas decisões lógicas, coerentes e respaldadas na lei em vigor, é dizer no direito posto. Deplora-se a abritariedade, pois esta sempre foi característica da tirania e da barbárie, qualidades recorrentes nos estados despóticos.
a) Fundamentação das decisões – garantia da racionalidade e da legitimidade do poder
O ato de julgar é um ato racional, posto que envolve uma atividade do intelecto humano. Ao julgar, o resultado que for dado ao caso concreto deverá ser o resultado de processo lógico, como já dito alhures. Portanto, para ser válido, do ponto de vista legal, lógico e filosófico, referido ato deve ser fundamentado. A não ser assim, a solução a ser dada ao caso concreto passa a ser expressão de puro capricho e das nefastas idiossincrasias do julgador.
Ademais, inquestionavelmente, o ato de julgar é um ato de poder, posto que, apenas alguém, ou um órgão eleito para esta finalidade, pode vir a ter suas decisões acatadas pelos demais. Se este poder não for legítimo, transformar-se-á num ato despótico, arbitrário e totalitário, o que não é próprio de uma democracia.
Portanto, a fundamentação das decisões judiciais garante a racionalidade das decisões, bem como legitima o poder.
O primeiro princípio que deve ser observado no tocante às decisões judiciais, é o “princípio da fundamentação das decisões”.
Trazemos à colação o escólio do professor Eduardo Luis Cabette, que assim faz constar:
“2.2.9. PRINCÍPIO DA FUNDAMENTAÇÃO DAS DECISÕES JUDICIAIS
Certamente relacionado com o anterior, está este importante princípio constitucional do processo previsto no inciso IX do artigo 93 da Constituição Federal. A motivação das decisões tem dois aspectos relevantes, um endoprocessual e outro extraprocessual. Sob o aspecto endoprocessual, a motivação possibilita às partes o conhecimento dos motivos e fundamentos que levaram àquela decisão, possibilitando sua devida impugnação e crítica. Já no aspecto extraprocessual, a motivação dá uma certa sociabilidade às decisões, ou seja, atrelada à publicidade, possibilita à população em geral o conhecimento dos motivos que levaram a ser tomada determinada decisão, legitimando a função jurisdicional”. (Cabette, 2002:31-32)
O princípio da fundamentação das decisões judiciais serve, repise-se mais uma vez, para garantir a racionalidade e a proporcionalidade das decisões que são proferidas pelos órgãos judiciais. Não visão moderna do processo penal, que deve ser permeado por um viés eminentemente garantista, todas as garantias fundamentais devem ser respeitadas e os princípios observados. Estes direitos fundamentais e estes princípios norteadores do devido processo legal, estão previstos na espinha dorsal de todo o ordenamento jurídico, a pedra fundamental da pirâmide legal, para se usar uma expressão do notável Hans Kelsen, ou seja, a CONSTITUIÇÃO FEDERAL.
Nas palavras do professor Aury Lopes Jr. (2005:258): “O juízo penal e toda a atividade jurisdicional é um saber-poder, uma combinação de conhecimento (veritas) e de decisão (auctoritas)”. E mais adiante afirma que: “Com esse entrelaçamento, quanto maior é o poder menor é o saber, e vice-versa. No modelo ideal de jurisdição, tal como foi concebido por Montesquieu, o poder é “nulo”. No modelo autoritarista – totalmente rechaçado na atualidade – o ponto nevrálgico está exatamente no oposto, ou seja, na predominância do poder sobre o saber e a quase eliminação das formas de controle da racionalidade.” Diante disso, Aury Lopes Jr., conclui que: “No pensamento de FERRAJOLI, o ponto nevrálgico de um processo penal garantista está na dimensão do binômio saber-poder”.
Nas próprias palavras de Luigi FERRAJOLI, citado por Aury Lopes Jr. (2005:258), temos que: “el modelo penal garantista equivale a un sistema de minimización del poder y de maximización del saber judicial, en cuanto condiciona la validez de las decisiones a la verdad, empirica e logicamente controlable, de sus motivaciones”.
E concluindo, o professor Aury Lopes Jr. (2005:258), diz que: “Nesse contexto, a motivação serve para o controle da racionalidade da decisão judicial”.
Assim, num primeiro momento, temos que a fundamentação das decisões judiciais tem como fundamento o controle da racionalidade e a legitimação do poder. Isso porque, nas palavras de Aury Lopes Jr.(2005:259): “A motivação sobre a matéria fática demonstra o saber que legitima o poder, pois a pena somente pode ser imposta a quem – racionalmente – pode ser considerado autor do fato criminoso imputado”.
A busca da verdade real (aquela que não permite/admite presunções e deduções vagas) é feita por meio de um processo mental embasado na lógica e na prova dos autos.
Em matéria de direito punitivo não se pode decidir por meio de meros subjetivismos, de paixões, de sensacionalismos midiáticos e de distúrbios psicológicos populares. É preciso margear e delimitar dois conceitos que são diametralmente opostos, quais sejam: o bom senso e o senso comum.
O bom senso (que se opõe ao conceito de contrasenso) é fruto de um processo racional, científico, dialético e que, por essas razões, pode ser provado.
O bom senso processual se fulcra na análise das provas produzidas durante a instrução (produção de provas) do processo. Neste caso, estamos diante das provas endoprocessuais, ou seja, as que são produzidas dentro do processo, e que, portanto, fazem parte integrante do mesmo.
Já o senso comum é produzido e resultado dos conhecimentos populares, com base em seus mitos, crenças, medos, desejos e incertezas. Um conhecimento, portanto, não demonstrável racionalmente ou cientificamente. Logo, perigoso e temerário para um processo de natureza punitiva.
O senso comum critica, ofende e pré-julga os acontecimentos. Este senso comum forma a base das provas exoprocessuais (ou extraprocessuais), ou seja, aquelas que estão fora do processo.
Portanto, a fundamentação é uma garantia do cidadão e da sociedade, pois mostra àquele que está inserido na relação processual quais razões estão a fundamentar sua absolvição ou sua condenação, permitindo ao mesmo propor e fundamentar eventual recurso (princípio do duplo grau de jurisdição). À sociedade, a fundamentação das decisões serve como garantia dos fundamentos e dos direitos fundamentais consagrados na Constituição Federal.
Já Aury Lopes Jr. (2005:260-261), assim faz constar em sua obra: “É também nessa linha que FERRAJOLI desenvolve as noções de estrita jurisdicionalidade e mera jurisdicionalidade. Ao primeiro caso corresponde o modelo processual garantista, cognoscitivo, orientado pela averiguação da verdade processual empiricamente controlável e controlada. Ao segundo, corresponde o modelo decisionista, substancialista, dirigido à descoberta de uma verdade substancial e global fundada essencialmente em valorações éticas, políticas, morais, que vão mais além da prova processualizada”.
O processo penal não pode buscar uma verdade universalizada, mas sim, uma verdade individualizada. Que está sendo apurada naquele momento e para aquele caso específico que está sendo submetido ao crivo do judiciário.
Citemos um exemplo: imagine-se um crime supostamente cometido por um psicopata. Imagine que referido crime envolve abuso sexual e morte de crianças e adolescentes do sexo feminino. Nem é preciso dizer que, ao ser noticiado pela mídia, referido caso insuflará o clamor social (senso comum) que, irá pedir “justiça”. Há duas situações apuráveis: a primeira, se o suposto criminoso realmente (verdade real) cometeu referidos crimes contra referidas vítimas (constatação endoprocessual); a segunda, se todo psicopata deve, efetivamente, ser estigmatizado do seio social, quais modalidades de penas devem ser aplicadas à referida categoria de pessoas, à quais estabelecimentos (penitenciária ou hospitais psiquiátricos) devem, referidas pessoas, serem encaminhadas etc. (constatação exoprocessual ou extraprocessual). Nesta modalidade, qual seja a exoprocessual, a verdade formal pode ser admitida, ou seja, aquela que se espraia e se embasa em presunções, deduções e hipóteses. Assim, haverá, no exemplo citado, duas realidades a serem apuradas: uma endoprocessual – autoria e materialidade delitivas; outra exoprocessual (ou extraprocessual), qual seja a condição do psicopata na sociedade. Qual realidade interessa ao processo? A endoprocessual ou a exoprocessual? Evidentemente que, por se tratar, o processo penal, de um instrumento tendente a impor penas corporais, seja restritiva de direitos, seja privativa de liberdade, a verdade que importa ao processo é a endoprocessual, que deságua, por conseguinte, na verdade real (aquela que não pode admitir presunções). O clamor social, em momento algum, deve interferir no andamento processual e o juiz não deve se deixar influenciar pela pressão e pelo escândalo midiático.
O estudo das conseqüências da psicopatia para a sociedade deve ser reservado para outro momento que não o processo.
Para um processo verdadeiramente compromissado com o garantismo, o que importa é o desvelo da autoria e da materialidade delitivas. É dizer que, um processo garantista faz as seguintes indagações: foi o imputado quem cometeu o crime ou crimes noticiados? Quais meios o mesmo utilizou (modus operandi) no momento do crime? Quais bens jurídicos foram ofendidos (princípio da ofensividade)? Qual a idade das vítimas? Era o agente, ao tempo da ação, inteiramente capaz de entender o caráter ilícito do fato, ou de determinar-se de acordo com esse entendimento? A verificação deste último requisito determinará se o agente é imputável, semi-imputável ou inimputável e, portanto, se será caso de pena ou de medida de segurança, em resumo, se é caso de punição ou de tratamento.
Portanto, a decisão amparada exclusivamente no processo é uma garantia ao Estado Constitucional e Democrático de Direito. Concluindo, assim faz constar o professor Aury Lopes Jr. (2005:261), nestes termos:
“Em síntese, o poder judicial somente está legitimado enquanto amparado por argumentos cognoscitivos seguros e válidos (não basta apenas boa argumentação), submetidos ao contraditório e refutáveis. A fundamentação das decisões é instrumento de controle da racionalidade e do sentire do julgador, num assumido anticartesianismo. Mas também serve para controlar o poder, e nisso reside o núcleo garantista. Permite ainda aferir “que verdade” brota do processo, evitando assim o substancialismo da mitológica “verdade real”. Ademais, é crucial que a fundamentação seja construída a partir dos atos de prova, devidamente submetidos a jurisdicionalidade e contraditório, com se verá a continuação”.
b) Garantia de ser julgado com base na prova judicializada (prova endoprocessual – verdade real)
Num primeiro momento, deve-se frisar, por oportuno, que a sentença legítima, ou melhor, válida do ponto de vista legal e, fundamentalmente, do constitucional, é aquela proferida com base na prova judicializada, é dizer, na submetida aos crivos do contraditório e da ampla defesa. O professor Aury Lopes Jr., faz uma brilhante distinção entre atos de prova e atos de investigação.
Os atos praticados em sede inquisitorial, como é sabido, não se submetem aos crivos do contraditório e do direito de defesa, logo, não podem servir para fundamentar uma sentença penal condenatória. Isso, pelo menos, como deveria ser num Estado que primasse pelo garantismo, o que, diga-se de passagem, ainda é um objetivo que o Estado brasileiro não atingiu.
Distinguindo entre atos de prova e atos de investigação, assim faz constar Aury Lopes Jr. (2005:261):
“Com relação aos atos de investigação:
a) não se referem a uma afirmação, mas a uma hipótese;
b) estão a serviço da instrução preliminar, isto é, da fase pré-processual e para o cumprimento de seus objetivos;
c) servem para formar um juízo de probabilidade e não de certeza;
d) não exigem estrita observância da publicidade, contradição e imediação, pois podem ser restringidas;
e) servem para a formação da opinio delicti do acusador;
f) não estão destinadas à sentença, mas a demonstrar a probabilidade do fumus commissi delicti para justificar o processo (recebimento da ação penal) ou o não-processo (arquivamento);
g) também servem de fundamento para decisões interlocutórias de imputação (indiciamento) e adoção de medidas cautelares pessoais, reais e outras restrições de caráter provisional;
h) podem ser praticadas pelo Ministério Público, ou pela Polícia Judiciária.”
Portanto, como se nota, estes são os requisitos dos atos de investigação e que não podem servir para embasar ou fundamentar uma sentença, mormente, de natureza condenatória. Todavia, o que se nota no quotidiano forense é que os elementos coletados no inquérito, tem servido, corriqueiramente, para embasar as sentenças penais.
Cite-se, como exemplo, o caso do presente trabalho. Mesmo diante da prova judicializada, qual seja a endoprocessual, o acusado foi condenado, basicamente, pela prova produzida em sede inquisitorial.
Assim fez constar o douto juízo a quo em sua sentença: “A forma de acondicionamento justifica a acusação de tráfico (embrulho plástico de cor verde), o qual estava no interior de uma meia de criança, e R$ 101,00, dividido em notas de R$ 1, 2, 5 e 10,00. Impossível, pois, em face do conjunto de circunstâncias acima ponderadas, a desclassificação para uso de entorpecente”. E como fica a prova do exame de dependência toxicológica realizado nos presentes autos? Diga-se que, as provas produzidas em sede de inquérito policial não foram submetidas ao contraditório e ao direito de defesa, mas o laudo toxicológico, sim. A prova judicializada é o exame toxicológico, no caso dos presentes autos. O fato, no caso do tráfico de substância entorpecente, ter sido encontrada acondicionada em pequenos embrulhos (trouxinhas) de plástico, não está a significar que o acusado seja traficante de substâncias entorpecentes. Até porque, quando o usuário adquire o tóxico, o mesmo vem acondicionado da forma descrita acima.
O que ocorre é que, no caso dos presentes autos, o laudo toxicológico foi inobservado. Deveras, houve a comprovação, por perito, de que o acusado é dependente (farmacodependente). Como se percebe, o sistema penal ainda está muito longe dos modernos posicionamentos doutrinários.
Deixamos registrado, por oportuno, que não fazemos parte da vertente abolicionista do direito penal, ou seja, ainda acreditamos que o direito penal seja uma necessidade, compatível com o atual estágio evolutivo da humanidade, que ainda comete erros e atrocidades, muitas delas ainda de forma consciente. Entrementes, também não podemos aderir ao movimento de “lei e ordem”, ou seja, da utilização indiscriminada do direito penal para toda e qualquer situação. A resposta penal a toda e a qualquer situação, banaliza o direito penal, coloca a sociedade em xeque e possibilita a efervescência do totalitarismo. Não perdemos de vista que o ideal de uma sociedade seria a não-existência do direito penal, entendida, referida não-existência, na constatação da patente desnecessidade do mesmo. Que houvesse uma substituição do direito punitivo, pelo direito sancionador. Que ao invés de se prever penas privativas de liberdade, outras modalidades de sanção passassem a ser eleitas. Mas, isso ainda não é possível.
Diante disso, aderimos ao movimento do “minimalismo penal”, ou seja, da utilização mínima do direito penal para a solução dos problemas ocorrentes na sociedade. Pelo princípio da ofensividade, temos que, somente os bens jurídicos verdadeiramente importantes (de alta relevância), devam ser penalmente tutelados.
Não podemos nos esquecer de que, o direito penal, quando se faz presente na vida de uma pessoa, marca a mesma de forma indelével, para o resto de sua vida. Somente quem já foi alvo de uma investigação policial ou de um processo penal, pode atestar e confirmar esta assertiva. Mesmo que a pessoa venha a ser absolvida, não há como apagar de sua memória todos os transtornos pelos quais passou. A vergonha em ser submetida ao escândalo público, a ser mal vista pela sociedade na qual vive, bem como no seio de sua própria família. A questão se agrava ainda mais quando, sem observar as garantias fundamentais da dignidade da pessoa humana, bem como as garantias do devido processo legal, há a requisição e a decretação da prisão preventiva ou temporária. Quem pode apagar as marcas e as cicatrizes de um cárcere, notadamente, quando indevido? Quem arca com referidos danos? Estes questionamentos não podem passar desapercebidos dos protagonistas da área jurídica. É a vida das pessoas que está em jogo quando uma ação penal posta em movimento. Para alguns, destituídos de sensibilidade, um processo, prima facie, pode significar apenas um calhamaço de papéis, mas, para a pessoa que é alvo de referido procedimento, o mesmo, certamente, é muito mais do que apenas um amontoado numerado de folhas. E é esta sensibilidade que não pode faltar na ciência jurídica. As pessoas são as destinatárias das normas jurídicas e não objeto das mesmas. Não podemos permitir que a lei, como mui constantemente vem sendo feito se transforme em objeto legitimador das atrocidades humanas. Não esqueçamos, advirta-se, que os Estados ditatoriais, como o Brasil nas décadas de sessenta e setenta, eram legitimados pelas leis. Mas, voltemos ao tema central do presente trabalho.
De todas as características descritas acima, descritas por Aury Lopes Jr., particularmente, chamamos a atenção para a descrita na letra “a”, ou seja, de que os atos de investigação “não se referem a uma afirmação, mas a uma hipótese”.
A hipótese é apenas uma suposição que ainda não foi submetida ao crivo das provas e das contraprovas, que terão por objetivo confirmar a hipótese ou infirmá-la.
Numa visão heurística, a hipótese é o ponto inicial de uma idéia ou suposição, ou ainda de um fato, ainda não logicamente demonstrado, mas apenas pré-suposto (pressuposto). O início de qualquer investigação, notadamente a científica, se inicia com uma hipótese. Portanto, sendo a hipótese, consoante o léxico uma “Suposição que orienta uma investigação por antecipar características prováveis do objeto investigado e que vale, quer pela confirmação dessas características, quer pelo encontro de novos caminhos de investigação;”. Assim, antes de ser provada e demonstrada, a hipótese não tem qualquer valor lógico e racional, sendo apenas uma conjectura, um exercício mental. Toda hipótese, para ser aceita, tem que, obrigatoriamente, no campo da lógica e da ciência, ser provada.
Esta necessidade de demonstração, tanto mais é necessária quanto mais aproximar-se do campo do direito penal.
Isso o que impõe uma visão garantista do processo penal. Visão sem a qual o cidadão se vê sem qualquer segurança jurídica. A inobservância dos princípios garantistas do processo penal pode levar a equívocos dos mais variados.
Citemos um exemplo: a faca (instrumento que produz ferimentos cortantes e perfurantes) pode ser usado como um instrumento letal no crime de homicídio. Pergunta-se: seria razoável supor que toda pessoa que porta uma faca seja uma homicida em potencial? Seria razoável prender, cautelarmente, toda pessoa que portasse referido instrumento, com a justificativa de que referida pessoa (ou pessoas) é (ou são) um risco à incolumidade pública? De que a prisão se justifica, posto serem pessoas que podem vir a cometer crimes de lesão corporal ou homicídio a qualquer momento? São, deveras, suposições temerárias.
No caso dos tóxicos é razoável supor que todo aquele que é surpreendido portando ou guardando, ou ainda, tendo em depósito substância entorpecente e que causa dependência física ou psíquica seja um traficante (art. 33 da Lei n. 11.343/06)? Essa, em nossa opinião, outra hipótese temerária.
Diante destas ponderações, temos que, os atos de investigação são importantes para a fase inquisitiva da persecutio criminis (persecução penal), mas, pelo viés do garantismo penal, não podem embasar um sentença penal condenatória, vez que, referidos atos, não passam pelas garantias do contraditório e do direito de defesa. Uma sentença que se fundamente em conjecturas e suposições, em atos de investigação, deve ser declarada nula, é dizer, sem qualquer validade jurídica.
Já quanto aos atos de prova, estas são as palavras de Aury Lopes Jr. (2005:262):
“Substancialmente diversos, os atos de prova:
a) estão dirigidos a convencer o juiz da verdade de uma afirmação;
b) estão a serviço do processo e integram o processo penal;
c) dirigem-se a formar um juízo de certeza – tutela de segurança;
d) servem à sentença;
e) exigem estrita observância da publicidade, contradição e imediação;
f) são praticados ante o juiz que julgará o processo.”
Inegavelmente, os atos praticados no inquérito policial são ofensivos a muitas das garantias constitucionais.
São atos sigilosos, secretos, não submetidos ao contraditório e ao direito de defesa. Não é incomum situações nas quais nem mesmo o advogado do investigado consegue ter acesso ao inquérito, tendo que remediar referida situação por meio de habeas corpus, no qual uma liminar é concedida para que a defesa possa se inteirar do conteúdo da peça investigativa. Um trabalho desnecessário se houvesse o respeito pelas garantias mínimas previstas em sede constitucional.
Os atos de investigação servem apenas para buscar uma aparência preliminar que possa dar sustentação à notitia criminis e fazer tomar corpo a opinio delicti do acusador, é dizer, por meio do inquérito policial, o Ministério Público poderá analisar se dispõe de elementos suficientes para dar embasamento e sustentação à denúncia, ou se, ao contrário, é caso de arquivamento das peças investigativas. Se não há elementos suficientes, não há que se falar em propositura da ação penal. Não se pode movimentar o judiciário inutilmente. O inquérito, assim, não pode servir como meio de prova.
Acerca desta temática, estas as palavras de Aury Lopes Jr.:
“Por meio dessa distinção é possível fundamentar o porquê do limitado valor probatório dos atos praticados na investigação preliminar, ficando clara a inadmissibilidade de que a atividade realizada no inquérito policial possa substituir a instrução definitiva (processual). A única verdade admissível é a processual, produzida no âmago da estrutura dialética do processo penal e com plena observância das garantias de contradição e defesa. Em outras palavras, os elementos recolhidos na fase pré-processual são considerados como meros atos de investigação e, como tal, destinados a ter uma eficácia restrita às decisões interlocutórias que se produzem no curso da instrução preliminar e na fase intermediária”. (2005:262)
Os atos de investigação devem se destinar exclusivamente, ao Ministério Público e não ao juiz.
Ainda acerca deste tema, assim argumenta Aury Lopes Jr.:
“No plano das garantias processuais, as constituições modernas asseguram que a sentença condenatória só pode ter por fundamento a prova validamente praticada no curso da fase processual, com plena observância da publicidade, oralidade, imediação, contraditório e ampla defesa. Isso exclui a possibilidade de que os atos de investigação, cuja estrutura não garante esses direitos, sejam considerados como meios de prova, logo, suscetíveis de valoração no momento da sentença”. (2005:263)
Dentro do sistema jurídico brasileiro, consoante pondera Aury Lopes Jr. (2005:263) as garantias aplicáveis ao processo penal estão previstas na Constituição Federal de 1988, nos incisos LIII, LIV, LV e LVI do art. 5º e o inciso IX do art. 93.
Já no âmbito internacional, o Brasil está vinculado, uma vez que é signatário, da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, mais especificamente em seu art. 8º. Isso, aliás, é decorrência do que prevêem os §§ 2º e 3º do art. 5º da CF/88, por força da Emenda Constitucional n. 45/04. Diante disso, como se percebe, várias garantias legais protegem (ou deveriam proteger o cidadão) das arbitrariedades perpetradas pelo Estado.
Arrematando a necessidade de se rechaçar os atos de investigação como aptos a fundamentar uma sentença penal condenatória, assim conclui Aury Lopes Jr. (2005:263): “A limitação da eficácia dos atos de investigação está justificada pela forma mediante a qual são praticados os atos no inquérito policial: secretos, escritos, ausentes o contraditório mínimo e o respeito ao direito ao silêncio”.
Seja qual for o órgão que presida a investigação preliminar (fase pré-processual), referido procedimento “carece das garantias mínimas para que seus atos sirvam mais além do juízo provisional e de verossimilitude necessário para adotar medidas cautelares e decidir sobre a abertura ou não do processo penal”. (LOPES JR., 2005:263)
Do mesmo posicionamento é Jaime Torres Vegas na obra “Presunción de Inocencia y prueba en el processo penal” (p. 39), citado por Aury Lopes Jr. (2005:263) que faz o seguinte registro: “É óbvio que as diligências levadas a cabo na investigação preliminar não podem servir como fonte de convencimento do órgão jurisdicional no momento da sentença”.
Diante destes argumentos, conclui-se que, os atos de investigação não podem embasar uma sentença penal condenatória.
Os atos de prova são a verdadeira garantia do acusado, posto que, a cada argumento levantado pelo órgão de acusação contra o acusado, este tem o direito de produzir e deduzir a devida contra-argumentação. A cada argumento acusatório, o acusado tem o direito de produzir um argumento contra-acusatório. A toda prova, a respectiva contraprova.
Esta é a visão verdadeiramente garantista e que deve permear todo o processo penal. O garantismo é a verdadeira homenagem ao Estado Constitucional, Democrático, Social e Humanitário de Direito. Disso não nos resta a menor dúvida.
Mas, qual solução se poderia tomar no sentido de se evitar que os atos de investigação contaminassem os atos de prova? Que as conclusões da investigação preliminar envenenem o bojo do processo?
Como uma forma de se evitar que o magistrado sinta-se tentado a sentenciar com base no inquérito policial e, portanto, com base nos atos de investigação, há os que defendem, inclusive, a exclusão, a extirpação física do inquérito policial de dentro do processo. Dentre estas vozes, está a do professor Aury Lopes Jr. Assim são suas lições:
“Infelizmente proliferam decisões em que os juízes condenam com base no inquérito policial. Alguns lançam mão de uma fraude discursiva: “cotejando a prova judicializada com a policial...” ou “a prova policial corrobora...”, para então condenarem.
Por mais que se invoque, não há a necessária interiorização das garantias processuais.
Diante de um cenário tão preocupante como esse, temos defendido a exclusão física dos autos do inquérito de dentro do processo, como única maneira de efetivar a garantia da jurisdição e de ser julgado com base nos atos de prova”. (2005:264)
Inquestionavelmente, esta medida possibilitaria que o juiz se ativesse apenas ao processo, evitando possíveis contaminações cognoscitivas, promovidas pelo inquérito policial. Estas contaminações turvam o juízo lógico.
Com o inquérito em mãos, a situação funciona da seguinte forma: se nada restar provado no bojo do processo (provas endoprocessuais), o juiz pode se valer de algum indício ou presunção que esteja contido na peça inquisitiva. Diante disso, força-se uma condenação, ainda que esta não exista, ou que, pelo menos, não tenha restado comprovada no processo penal. Isso aniquila qualquer garantia do cidadão.
Uma condenação não pode ser criada (ou até mesmo forjada), mas sim, ser justificada e legitimada por um conjunto de atos de prova coeso, coerente, realizados dentro do processo e cercados de todas as garantias legais previstas (constitucionais, infraconstitucionais e internacionais).
Tudo isso, porque, os “atos da investigação preliminar têm uma função endoprocedimental no sentido de que sua eficácia probatória é limitada, interna à fase” (LOPES JR., 2005:264). É dizer que servem apenas ao inquérito policial e “para fundamentar as decisões interlocutórias tomadas no curso da investigação, formalizar a imputação, amparar um eventual pedido de adoção de medidas cautelares ou outras medidas restritivas e para fundamentar a probabilidade do fumus commissi delicti que justificará o processo ou o não-processo” (LOPES JR., 2005:264).
Desta forma, a exclusão do inquérito policial do processo penal evita/impede que o juiz se contamine com os atos de investigação, realizados sem as mínimas garantias.
O sistema da exclusão física dos autos do inquérito policial do processo, consoante faz constar Aury Lopes Jr., já fez parte do processo penal brasileiro, por meio do Decreto n. 16.751, de 31 de dezembro de 1924, que assim fazia constar em seu art. 243, nestes termos: “Art. 243. Os autos de inquirição apenas aos de investigação, nos termos dos arts. 241 e 242 servirão apenas de esclarecimento ao Ministério Público, não se juntarão ao processo, quer em original, quer por certidão, e serão entregues, após a denúncia, pelo representante do Ministério Público ao cartório do juízo, em invólucro lacrado e rubricado, a fim de serem arquivados à sua disposição” (LOPES JR., 2005:264).
Consoante noticia o professor Aury Lopes Jr. (2005:265), a Espanha, em lei de 1995, que versa sobre o Tribunal do Júri, prevê a exclusão física do inquérito policial dos autos do processo. Conforme Exposição de Motivos da citada lei, referida medida evita, com isso “as indesejáveis confusões de fontes cognoscitivas atendíveis, contribuindo assim a orientar sobre o alcance e a finalidade da prática probatória realizada no debate (ante os jurados)”.
O juiz deve se ater às provas do processo e somente a estas. Procurar fundamentos fora dos atos de prova é uma aventura cognoscitiva incompatível com o primado do garantismo penal. Processo sem garantias é um ato de violência contra a dignidade da pessoa humana. E, no caso do Brasil, a inobservância das garantias é uma violência contra a própria Federação, uma vez que, a dignidade da pessoa humana é um dos fundamentos do Brasil (art. 1º, inc. III, da CF/88).
Ser julgado com base na prova produzida no processo é uma garantia do cidadão. Negar esta garantia é negar o próprio sistema jurídico em vigência.
Estas, ademais, as palavras do professor Aury Lopes Jr., nestes termos:
“O direito de ser julgado com base na prova (leia-se atos de prova) deve ser visto na sua real dimensão, enquanto garantia de máxima originalidade. Para tanto, deve-se evitar a contaminação do julgador pelos atos de investigação, pois colhidos na fase inquisitiva, sem as mínimas garantias. A falácia do discurso oficial está em apontar para a “suficiência” das garantias da fase processual e permitir, quando da sentença, que o julgador decida com base na pura inquisição (do inquérito)”. (ob. cit., p. 266)
A própria lei, por uma questão de bom senso jurídico, de lege ferenda, deveria prever a impossibilidade de que o magistrado, no momento de sentenciar o processo penal, se utilizasse de atos de investigação, dos elementos que foram coletados em sede investigativa. Aquilo que muitos chamam de prova na fase inquisitorial, chamamos de “pseudo-prova” (falsa prova) uma vez que não é submetida ao crivo do contraditório e da ampla defesa.
São posturas garantistas que, ao nosso sentir, o Estado deveria adotar.
Ademais, o juiz, na sentença penal, deve indicar os artigos de lei que está aplicando ao caso que lhe é submetido (inc. IV, do art. 381, do CPP). Isso porque, cada artigo da lei penal, seja do Código Penal brasileiro, seja da legislação penal esparsa ou extravagante, é constituído de duas partes: a primeira é chamada de preceito primário, na qual está descrita a conduta que o ordenamento jurídico-penal reputa como configuradora de crime; já na segunda parte, temos o preceito secundário, no qual está previsto a modalidade da pena (privativa da liberdade ou restritiva de direitos, que pode ou não ser cumulada com pena de multa) a ser aplicada em caso de condenação, bem como se o regime inicial será o fechado, semi-aberto ou aberto, além disso, no preceito secundário vem expressa a quantificação da pena, entre um máximo e um mínimo, a ser aplicada pelo magistrado.
Essa exigência do inciso IV, do art. 381, do CPP, consagra, ademais, o princípio da legalidade, previsto no art. 1º, do Código Penal, e no inciso XXXIX, do art. 5º, da Constituição Federal de 5 de outubro de 1988 que prega que “não crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal”.
Somente os atos apriorísticamente definidos como crime, podem ser imputados a alguém. Não se poderia admitir, em um Estado Constitucional, a imposição arbitrária de condutas que não estivem, antes, previstas em um determinado diploma legal. A previsão das condutas típicas em diplomas legais visa dar publicidade aos atos, para que os cidadãos, em tese, pelo menos, tenham conhecimento dos mesmos.
O Estado, quando pretende criminalizar uma determinada conduta, deve, antes, por meio de vários conhecimentos (interdisciplinaridade), verificar, por um viés político-criminal, se o mesmo efetivamente terá o condão de atingir o objetivo colimado. Nenhuma conduta pode ser considerada ilícita se, antes de seu cometimento, é dizer, antes de sua verificação no mundo concreto (mundo dos fenômenos), esteja não estiver prevista em lei. Essa é a consagração do princípio da anterioridade penal. O fato gerador do crime é a conduta, mas a conduta apenas pode ser considerada criminosa se a mesma estiver prevista em lei. A conduta passível de ser considerada como criminosa é aquela prevista em lei como necessária e suficiente para sua ocorrência, é dizer, para a configuração do crime. Sem lei não há crime, bem como não pode haver pena. A conduta para ser criminosa depende da lei. A pena para ser legítima deve se respaldar também na lei, portanto, tanto a conduta como a pena, encontram sua justificação na existência da lei.
Portanto, na sentença, o juiz tem a obrigação legal de indicar os artigos de lei nos quais o acusado será considerado incurso, tendo que, por via de conseqüência, suportar as penas pertinentes à modalidade de crime indicada.
Deverá ainda fazer da sentença o dispositivo, inciso V, do art. 381, do CPP. O dispositivo é a parte da sentença na qual o juiz julga procedente ou improcedente o pedido formulado pela parte.
No caso do processo penal, é no dispositivo que o juiz considera culpado e, portanto, CONDENA o acusado nos termos expressos na denúncia formulada pelo Ministério Público, ou reconhece a inocência do acusado, ABSOLVENDO o mesmo. Ademais, é na parte dispositiva da sentença, em caso de condenação, que o magistrado impõe a pena a que o acusado, agora sentenciado, deverá se submeter. Após a realização das três etapas de análise da dosimetria da pena (sistema trifásico), o juiz dirá, no dispositivo, qual a pena final. Além disso, é no dispositivo que o juiz dirá se o acusado poderá apelar em liberdade ou não. Devendo, evidentemente, fundamentar esta sua decisão. Diga-se que, no caso de crimes dolosos contra a vida, portanto, de competência do Tribunal do Júri, temos a sentença de pronúncia, na qual o magistrado, na parte dispositiva, irá PRONUNCIAR ou IMPRONUNCIAR o réu. Se for caso de pronúncia, o acusado será submetido ao julgamento por seus pares, o júri. Se for caso de impronúncia, portanto, de reconhecimento de inexistência de crime doloso contra a vida, o acusado será julgado pelo tribunal comum.
Finalmente, a sentença deverá conter a data e a assinatura do juiz (inciso VI, do art. 381, do CPP). A assinatura e a data na sentença possuem duas finalidades. A assinatura confere legitimidade ao ato, posto que, somente uma pessoa legalmente empossada no cargo de magistrado está apta a julgar e, portanto, manifestar uma decisão que, em tese, é a decisão do Estado-juiz e não da pessoa-juiz. A data serve para a contagem dos prazos para a interposição de eventuais recursos.
Esses, assim, os requisitos necessários para a validade da sentença e, sem os quais o ato deve ser declarado nulo.
Portanto, somente se justifica a medida privativa de liberdade excepcional (prisão cautelar), quando preenchidos os requisitos previstos no Código de Processo Penal, consoante descritos acima e, além disso, e principalmente, que haja uma adequada fundamentação da decisão que concede esta segregação excepcional. Caso contrário, os danos que desta decisão podem advir são devastadores.