Símbolo do Jus.com.br Jus.com.br
Artigo Selo Verificado Destaque dos editores

As fontes do Direito Penal numa perspectiva axiológica

Exibindo página 1 de 3
Agenda 12/05/2005 às 00:00

Os princípios jurídico-penais possuem força diretriz para a definição dos conteúdos que devem prevalecer no Direito. Sendo normas (mandamentos de dever ser), também possuem a força de imperatividade normativa formal.

            Já de muitos anos venho desenvolvendo um conjunto de reflexões a respeito da idéia de sistema jurídico (1), defendendo a idéia de que o sistema jurídico deve ser encarado numa perspectiva axio-teleológica (2). Ou seja, o Direito, enquanto sistema, deve ter por base os princípios que lhe dão unidade e as finalidades que ordenam o conjunto normativo. Tal concepção procura ressaltar (3) o papel dos direitos humanos como conteúdo desses princípios e como guias das finalidades do sistema jurídico.

            Nas páginas seguintes será desenvolvida uma aplicação destas idéias na esfera do Direito Penal, de modo que as suas fontes de conteúdo sejam analisadas numa lógica de interconexões, repensadas criticamente e projetadas valorativamente.

            A abordagem das fontes do Direito Penal, portanto, é uma abordagem que se deve fazer dentro desse contexto, não podendo, assim, ser uma abordagem asséptica, sendo imprescindível a conjugação dos aspectos normativos e técnicos com os aspectos valorativos e práticos.


3.1 - CLASSIFICAÇÃO DAS FONTES DO DIREITO PENAL

            Em sentido lato, fonte é a origem, a nascente de algo. Nesse sentido, falar-se de fonte do Direito Penal é falar-se onde genericamente é produzido o conteúdo jurídico-penal aplicado no cotidiano de cada um de nós. E esse conteúdo tem origem basicamente no Estado (4).

            Através da edição das normas constitucionais, das leis, dos atos administrativos e das sentenças, o Estado identifica o que está e o que não está contido no âmbito do Direito – no caso, no âmbito penal. Sobretudo em termos legislativos (já que o Direito Penal é construído formalmente sobre o princípio da legalidade) o Estado caracteriza-se como fonte penal.

            Afinal, a definição do que é e do que não é crime, e de quais são as condutas criminosas, é tarefa legislativa, e, portanto, tarefa exclusiva do Estado. Tal preceito é, aliás, expressamente consagrado na Constituição Federal, a qual prevê: "Art. 22. Compete privativamente à União legislar sobre: I - direito (...) penal (...)".

            Não significa, porém, que apenas o Estado defina os conteúdos penais, mas sim que o Estado, por excelência, tem a função de produzir conteúdos penais ou referendar o conteúdo produzido por outras instâncias sociais (doutrinadores, por exemplo).


3.2 - Classificação das Fontes do Direito Penal

            Numa ótica normativista - ou ao menos afinada a ela - tem se posicionado a maioria dos penalistas brasileiros (com elogiáveis exceções) ao abordar as fontes do Direito Penal.

            Tal se dá, primeiramente, pela posição meramente complementar que dão aos princípios jurídico-penais, ignorando ou fingindo ignorar a importância valorativa que os princípios possuem no cotidiano jurídico. Além disso, tratam os costumes, a doutrina e, sobretudo, a jurisprudência como meros complementos interpretativos (alguns lhes negam o próprio caráter de fontes de conteúdo), o que, de pronto, leva a uma dissociação entre a teoria e a prática do Direito Penal.

            Veja-se, nesse sentido, Damásio de Jesus (5), que identifica como fonte imediata a lei, como fontes mediatas os costumes e os princípios gerais do Direito (expressão esta em desuso), relegando tratados, doutrina e jurisprudência ao papel de formas de procedimento interpretativo.

            Menos drasticamente Mirabete (6), que indica como fonte direta a lei e como fontes indiretas os costumes e os princípios gerais do Direito; igualmente doutrina, tratados e jurisprudência são relegados a um segundo plano.

            Tais respeitáveis autores servem como exemplos de uma visão das fontes jurídicas que, embora teoricamente sustentável, não mais satisfaz, nem está adequada à prática cotidiana do Direito.

            Numa perspectiva outra, que procura aproximar teoria e prática - numa ótica que não se limita ao normativismo (7) - as fontes de conteúdo do Direito Penal classificam-se em fontes imediatas e fontes mediatas. As fontes imediatas são aquelas que acabam incidindo, em termos finais, sobre os fatos regulados. Compreendem os princípios jurídico-penais (normas-princípio) e as regras (normas penais legisladas). Já as fontes mediatas se referem a instâncias de produção de conteúdos penais voltados para a interpretação e aplicação das fontes imediatas aos fatos concretos. Pode-se dizer, assim, que as fontes imediatas têm o foco nos próprios fatos regulados, enquanto que as fontes mediatas têm o foco nas fontes imediatas.

            Nessa ótica, as fontes do Direito dividir-se-iam, então, da seguinte maneira:

Fontes do Direito

Imediatas

Princípios (normas-princípio)

Regras (normas legisladas)

Mediatas

Costumes

Doutrina

Jurisprudência

Tratados Internacionais


3.3 - PRINCÍPIOS JURÍDICO-PENAIS

            A teoria geral do Direito se encarregou ao longo do século XX de demonstrar a importância que os princípios possuem para a determinação de conteúdo do Direito como um todo, e de cada área do Direito em específico. Tal determinação através dos princípios ganha corpo sobretudo na interpretação de normas estatais e na aplicação de tais normas interpretadas a casos concretos. Assim o é no Direito Penal. Há um conjunto de princípios que servem como diretrizes interpretativas e aplicativas das diversas normas penais (incriminadoras e não incriminadoras), ou seja, dentro das fontes imediatas, são as diretrizes de conteúdo do Direito Penal.

            3.3.1 - Princípio da Legalidade

            Dentro do Direito Penal, o qual vai lidar com a liberdade de cada cidadão (a qual é um bem especial dentro da relação indivíduo/Estado) o que temos é a legalidade como uma referência fundamental. O rigor na aplicação do princípio da legalidade é absolutamente indispensável devido ao fato de que existe uma relação muito especial entre indivíduos e Estado. O indivíduo se depara com um questionamento: ‘quem é legitimado para retirar a minha liberdade?’. No Direito Administrativo, no Direito Tributário, ordinariamente não há quem tenha este Direito. Já no Direito Penal, o Estado está autorizado a tomar liberdade individual, a retirar o indivíduo do convívio social. Trata-se de um ‘gigante’ - o Estado - contra, no mais das vezes, um indivíduo comum, sem poder.

            É exemplar o pensamento de Ferrajoli, que constrói sua análise penal tendo como referência o princípio da legalidade. Para tanto, trabalha com tal princípio como um duplo axioma; mera legalidade e legalidade estrita. Enquanto princípio de mera legalidade, exigiria a lei como condição necessária da pena e do delito. Enquanto princípio de legalidade estrita, exigiria todas as garantias (a lei em sentido substancial) como condições necessárias da legalidade penal (8).

Assine a nossa newsletter! Seja o primeiro a receber nossas novidades exclusivas e recentes diretamente em sua caixa de entrada.
Publique seus artigos

            A legalidade formal (a necessidade de que os delitos e as penas estejam previstos em lei) teria como complemento necessário, para a adequada configuração do princípio, a legalidade estrita (como condição material de validade da lei formal, na conjunção e adequação substancial desta com as demais normas do sistema jurídico). Como afirma Ferrajoli,

            "A lei, em outras palavras, se bem seja exigida em qualquer caso para a configuração do delito em virtude do primeiro princípio, exige, por sua vez, em virtude do segundo, uma técnica legislativa específica para a válida configuração legal dos elementos constitutivos do delito. Diremos, portanto, para expressar conjuntamente os dois princípios: nulla poena, nullum crimen sine lege valida.". (9)

            O fato é que quando se aplica a privação da liberdade está se retirando o indivíduo do mundo, e, para isso ser feito de forma aceitável, tem que se agir dentro de limites muito estreitos. Com isso, há de ser otimizada a aplicação do princípio da legalidade.

            Como decorrência, somente se pode pensar em crime - partindo da legalidade - se o fato for típico, se a conduta humana corresponder ao preceito normativo, ao que estiver definido em lei.

            Tem-se nesse sentido uma formulação filosófica clássica, de Cesare Beccaria (10), construindo-se uma máxima: nenhum crime e nenhuma pena sem lei prévia. Essa máxima filosófica do Direito Penal está presente no artigo 5o, XXXIX, da Constituição Federal (princípio da legalidade propriamente dito) e no artigo 1o do Código Penal (princípio da anterioridade da lei penal). Todos os princípios jurídico-penais partem destes pontos.

            3.3.1.1 - Subprincípios de Legalidade

            O princípio geral é uma diretriz geral, evidentemente, enquanto que o subprincípio (11), como diretriz específica, o concretiza. Tem-se assim o princípio da legalidade como diretriz geral, e quatro subprincípios que o concretizam (12).

            a) Reserva Legal

            Crimes e sanções só podem ser criados por leis, que só podem ser criadas pelo Estado. Trata-se da reserva legal - somente ao Estado está reservada a possibilidade de, criando leis, criar (juridicamente) crimes.

            b) Jurisdicionalidade (artigo 5o, LIII e LVII, Constituição Federal)

            Tem dois aspectos. Primeiro, só se pode ser julgado e condenado pela prática de um crime por uma autoridade judicial, com poderes jurisdicionais legais específicos para isto. Não é qualquer juiz que pode julgar uma questão penal. O indivíduo não pode, por exemplo, ser condenado penalmente pela prática de um crime na esfera cível. Têm-se, ainda, crimes de competência da Justiça (Jurisdição) Federal e Estadual e existem poderes específicos para, se for o caso, julgá-lo e condená-lo em uma ou outra esfera.

            O segundo aspecto significa que o indivíduo só é considerado culpado penalmente depois que a sentença de um juiz que o condena transitar em julgado, ou seja, quando não couber mais nenhum recurso (em vias normais) que possa levar à alteração de tal sentença condenatória.

            c) Irretroatividade "in pejus" da Lei Penal (artigo 5o, XL, Constituição Federal/ artigo 2o, Código Penal)

            In pejus significa para pior; in mellius significa para melhor. Tanto do Código Penal como na Constituição Federal temos a mesma disposição: a lei penal não retroagirá a não ser que seja para beneficiar o réu. Por conseguinte, não poderá retroagir para agravar a situação de um indivíduo que seja acusado ou condenado.

            Importa aqui destacar a relação da regra de retroatividade com a vigência normativa. Uma lei, ao retroagir estará atingindo um fato que aconteceu antes de ela ter vigência. Ou seja, sua vigência é excepcionalmente estendida para aquele fato.

            Como se afirmou antes, não pode a norma retroagir para prejudicar, mas sim para beneficiar. Isso pode ocorrer inclusive após uma sentença penal condenatória ter sido prolatada (no julgamento de um recurso), e inclusive depois de seu trânsito em julgado (através da revisão criminal). Assim, pode haver a retroatividade benéfica não só por ocasião do julgamento, mas mesmo após ele ocorrer, e inclusive depois de não caber mais recurso da sentença.

            d) Taxatividade Legal (determinação típica)

            Os tipos penais devem ser o mais claros e específicos possível, de maneira a possibilitar uma clara distinção dos limites do lícito e do ilícito. Deve-se evitar, dentro da esfera penal, tipos genéricos, ambíguos, que ampliem demasiadamente os poderes de definição de sentidos do Judiciário. Isto porque o indivíduo, ao agir no exercício de sua liberdade, tem que ter clareza sobre o que pode ou não estar violando.

            3.3.2 - Princípio da Culpabilidade

            Contemporaneamente, só se admite, no Direito Penal ocidental, a responsabilidade penal congregando-se seu aspecto objetivo e seu aspecto subjetivo. No seu aspecto objetivo seria a conduta penal reprovável, que correspondeu, que se encaixou no modelo incriminador - seria a conduta objetivamente típica.

            No entanto, somente através disso não se resolve a questão penal. Não basta a responsabilidade penal objetiva. É preciso que subjetivamente a conduta do agente seja recriminável.

            A idéia de responsabilização subjetiva (e recriminação do fato) compreende, por um aspecto, a idéia geral de dolo e culpa. Além disso, compreende, ainda, a capacidade psíquica de discernir o certo do errado. Tem-se que lidar com os dois aspectos, objetivo e subjetivo, quando se trata da esfera criminal.

            A culpabilidade serve, também, como medida da pena, ou seja, através da culpabilidade vamos fixar uma quantidade específica de pena. Se a lei prevê 6 a 20 anos de privação da liberdade, um dos elementos que se deve analisar para fixar a pena, o quantum da pena, é a culpabilidade (enquanto grau de reprovabilidade da conduta).

            3.3.3 - Humanidade das Penas

            Tem vários reflexos dentro da Constituição Federal e da esfera penal. Dentro da esfera penal não se pode admitir punições que atentem contra a dignidade do ser humano. Assim, o artigo 5º da Constituição Federal, por exemplo, veda prisão perpétua, trabalhos forçados, pena de morte (com exceção), tratamento degradante do ser humano. Tem-se, ainda, por exemplo, a lei de execuções penais exatamente fixando que o cumprimento das penas tem que se dar dentro de alguns parâmetros que respeitem a dignidade do ser humano.

            3.3.4 - Pessoalidade das Penas

            Princípio decorrente do artigo 5º, XLV da Constituição Federal, significa que a pena não pode ultrapassar a figura do agente delitual (aquele que comete o crime), ou seja, só a pessoa que realmente praticou o crime pode ser atingida pela pena. A pena imposta pelo Estado na esfera criminal não pode atingir familiares, amigos, outras pessoas que não o próprio indivíduo. A pessoa que agiu é que é responsável penalmente pelos seus atos.

            Este princípio, atente-se, não se confunde e não entra em choque com o princípio da individualização, que diz que se deve levar em consideração a responsabilidade específica de cada agente. Se alguém é mentor intelectual de um crime de furto, responde pelo crime mesmo que não tenha praticado o ato de furtar, devendo sua responsabilização ser proporcional à importância de sua conduta no contexto do fato criminoso.

            3.3.5 - Individualização das Penas

            A pena deverá ser individualizada caso a caso, e segundo a conduta de cada indivíduo. É o que prevê o artigo 5º, XLVI da Constituição Federal.

            Tendo-se uma pena, por exemplo, de 6 a 20 anos, na hora de definir que o indivíduo X vai receber a quantidade Y ou Z tem-se que individualizar a pena. Para tanto, passando pelo artigo 68 do Código Penal e utilizando-se, também, o artigo 59, deve-se adequar a pena à conduta específica de quem cometeu o crime. Isso é especialmente significativo quando se trata de concurso de pessoas, em que a pena deverá ser fixada individualmente para cada indivíduo

            3.3.6 - Proporcionalidade das Penas

            É um princípio complementar da idéia de individualização. A pena tem que ser proporcional à gravidade da conduta do agente, seja pela conduta em si, seja por seus resultados. Com isso, deve se garantir correspondência entre o fato criminoso praticado e a pena jurisdicionalmente aplicada.

            Trata-se de um princípio garantista, voltado à correlação necessária entre o ônus pessoal e social gerado pelo fato criminoso e a reação estatal de violência (real ou simbólica) incidente sobre o autor desse crime.

            3.3.7 - Princípio da Intervenção Mínima

            Significa que o Direito Penal deve intervir nos conflitos interindividuais (de um agente em relação a outro) apenas quando for absolutamente indispensável. Ou seja, a intervenção do Direito Penal nos conflitos sociais deve ser mínima.

            Além disso, a intervenção penal caracteriza-se por ser residual e fragmentária. A esfera penal interviria, em tese, quando não bastasse a atuação de outra área jurídica sobre a potencial violação de direitos regulada. E, de forma complementar, não haveria nenhum tipo de conduta que fosse objeto jurídico penal por excelência – todos os conteúdos das regulações penais são derivados de outras áreas do Direito, são resíduos de regulações insuficientes. Por decorrência, o conteúdo do Direito Penal é fragmentário, já que engloba os mais variados temas da vida social.

            Por decorrência, o Direito Penal só deve abranger um certo conteúdo quando absolutamente não for possível resolver a questão dentro de uma outra esfera jurídica que não a penal (intervenção mínima). Ferrajoli propugna, neste sentido, que o Direito Penal seja a última instância jurídica a atuar, um último recurso. No mesmo caminho, defende a minimização (e mesmo a eliminação gradual) das penas privativas de liberdade (13).

            Enfim, ressalta-se o fato de que não há um conteúdo insitamente penal: o crime trata-se sempre de uma opção política e cultural de quem detém o poder estatal de legislar, em face de um conjunto de circunstâncias histórico-sociais.

            3.3.8 - Princípio da Adequação Social

            Significa que as condutas que, mesmo sendo típicas, estiverem incorporadas ao cotidiano social como aceitáveis e legítimas dentro do contexto de convivência, devem ser penalmente desconsideradas. Isso não significa aceitação moral da conduta, mas tão somente que, no contexto de diversas condutas socialmente ‘aceitas’, uma determinada conduta não deve ser considerada crime (14).

            Exemplifique-se: em uma partida de futebol, é aceitável que em um disputa pela posse da bola um jogador, ao cometer uma falta, possa até mesmo quebrar a perna do outro em função da disputa. Mas, se fora da disputa pela bola, um jogador inadvertidamente soquear o seu adversário, causando-lhe, por exemplo, a perda de dentes, sua conduta será inaceitável, e passível de punição penal (a depender, nos termos do artigo 88 da Lei 9.099/95, de representação do ofendido).

            3.3.9 - Princípio da Insignificância (15)

            Quando se fala no Direito como um todo, fala-se de bens jurídicos tutelados, ou seja, cada norma protetiva e/ou reguladora vai ter um bem jurídico no seu âmago, na sua essência - há algo que está sendo garantido por aquela norma. O bem jurídico é o interesse atingível por aquela conduta abstratamente prevista e o sujeito passivo é a vítima. Na esfera penal só estariam inseridas condutas cuja proteção penal seria indispensável para garantir aqueles direitos insertos direta ou indiretamente nas normas, devido à proeminência dos bens jurídicos que trazem no seu âmago. Por exemplo: o direito à vida é tutelado pelo artigo 121 do Código Penal, destacando-se no mundo jurídico por condicionar multiplamente o exercício de qualquer outro direito individual.

            Especial importância tem o princípio da insignificância, até mesmo pela polêmica constante que gera. Partindo-se da presunção de que os bens jurídicos protegidos em leis penais são mais destacados, mais relevantes, tais bens mereceriam uma proteção penal especial que pode até mesmo atingir a liberdade dos indivíduos. Este princípio indica que por mais que a conduta formalmente esteja enquadrada no modelo incriminador, se por acaso esta conduta não vier a efetivamente causar um dano a bem jurídico relevante, não deverá ser considerada crime.

            Suponhamos que um indivíduo viesse a subtrair a quantia de um real de um estudante colega seu. Evidentemente, tal situação poderia até gerar inconvenientes (poderia ocorrer, por exemplo, que se tratasse do dinheiro da passagem de ônibus...). Mas, dentro da lógica protetiva do patrimônio contida no artigo 155 do Código Penal, é evidente que a lesão ao direito de propriedade seria, no todo das relações privadas, irrelevante. Tal irrelevância leva à aplicação do princípio da insignificância, indicando que sendo em termos sociais insignificante a lesão de direito causada, dever-se-ia desconsiderar o enquadramento formal da conduta, desconsiderando penalmente a própria lesão de direito (16).

            Observe-se que formalmente houve a subtração, para si, de coisa alheia móvel. No entanto, materialmente, a lesão causada foi tão pequena, diante do contexto geral das relações sociais, que há de ser desconsiderada juridicamente. De maneira que, embora haja formalmente a tipicidade, pela ausência de lesão de direito ela é desconsiderada, por não haver tipicidade material (17).

            Evidentemente, não há uma ‘tabela’ de relevância ou irrelevância de lesões a bens jurídicos. Tal situação só poderá ser definida como ocorrente caso a caso. Para tanto, há uma operação a ser desenvolvida: primeiro, deve-se analisar o tipo penal que está em discussão, identificando o bem jurídico que por ele está sendo protegido e identificando qual a finalidade tal proteção; em seguida, deve-se analisar a sanção penal que está prevista para tal tipo penal, verificando, por sua gravosidade para o possível acusado, qual o grau de lesão ao bem jurídico protegido que se pretende reprimir com a previsão legal; enfim, deve-se analisar a situação concreta e verificar se a lesão causada tem, diante do tipo penal em questão, relevância jurídico-social. Ademais, é evidente que nem todos os crimes são passíveis da aplicação do princípio da insignificância - embora não haja, a priori, um grupo de crimes, um ‘título’ do Código Penal que seja absolutamente refratário ao princípio.

            O que se tem, em síntese, é que se a conduta do indivíduo gerar um dano absolutamente irrelevante, insignificante, ao bem jurídico protegido pela norma incriminadora, será possível apurar-se a exclusão da tipicidade material, de maneira que, diante de tal situação, o fato pode se tornar atípico - não havendo crime, portanto. Ou seja, este princípio é uma espécie de princípio negativo. Afastaria da esfera penal uma conduta irrelevante, insignificante, sem importância para o mundo jurídico legal, preservando a idéia de que a esfera penal deve ser resguardada para situações que afetem de maneira grave as relações sociais.

            3.3.10 - Princípio do In Dubio Pro Reu

            Como se viu no capítulo anterior, tal princípio tanto tem caráter penal como processual penal, e por isto é um princípio com características peculiares.

            É de se ressaltar que o Direito Processual Penal está, de maneira muito marcada, no caminho do Estado, do seu direito de punir, e é um instrumento potencial do indivíduo, na busca de garantir o seu direito de liberdade. Neste sentido, o Direito Penal, sem o Direito Processual Penal, é inexecutável, sendo este último um instrumento necessário para execução (punitiva ou não punitiva) das regras do Direito Penal.

            Penalmente, aplica-se este princípio na interpretação das normas penais em geral, incriminadora ou não incriminadora. Já processualmente, utiliza-se-o (além da interpretação das normas processuais) como critério de decisão em situações probatórias dúbias.

            É dentro desse contexto que se insere o princípio do in dubio pro reu: maximiza a idéia contemporânea de que a restrição da liberdade de alguém pelo Estado deve se dar dentro da mais ampla certeza possível sobre os fatos e dentro da mais objetiva transparência possível quanto às normas.

Sobre o autor
Edihermes Marques Coelho

advogado, mestre e doutor em Direito pela UFSC

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

COELHO, Edihermes Marques. As fontes do Direito Penal numa perspectiva axiológica. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 680, 12 mai. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/6719. Acesso em: 19 dez. 2024.

Mais informações

Texto originalmente publicado como artigo na Revista Jurídica da Faculdade de Direito da Alta Paulista (FADAP), Tupã (SP), Editora da Faculdade de Direito da Alta Paulista, 2002, pp. 105-133.

Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!