INTRODUÇÃO
A Constituição Federal vigente, em seus artigos 150 a 152, consagra limites ao poder de tributação do Fisco, chamados de princípios constitucionais tributários, de forma a resguardar o contribuinte de possíveis arbitrariedades e abusos por parte do Estado. No presente artigo, destaca-se o princípio da anterioridade tributária.
Tal princípio, em suas duas vertentes, como adiante será exposto, busca conferir segurança jurídica ao contribuinte por meio da garantia individual da não surpresa. Isso significa que, um vez instituído ou majorado um tributo, ele somente poderá ser cobrado do contribuinte no exercício financeiro seguinte ao que a lei instituidora ou majoradora foi publicada (anterioridade anual). Contudo, de forma a evitar que um tributo criado nos últimos dias do ano já possa ser cobrado nos primeiros dias do exercício financeiro seguinte, atentando contra o princípio da não surpresa, a Constituição, por meio da EC 42/2003, passou a vedar a cobrança de tributos antes de decorridos noventa dias depois da publicação da lei instituidora ou majoradora, sendo, por esse motivo, denominada de anterioridade nonagesimal.
A problemática surge quando da revogação de isenções concedidas por parte do Estado que, embora não configure uma majoração propriamente dita, afetam indiretamente o contribuinte que era agraciado pelo benefício fiscal, ampliando a carga tributária. Diante disso, faz-se necessária a análise acerca da aplicabilidade ou não do princípio da anterioridade tributária à revogação de isenção fiscal, com base na doutrina, legislação pertinente e jurisprudência dos tribunais superiores, abordando as especificidades envolvidas.
1. DO PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA ANTERIORIDADE
O princípio da anterioridade tributária encontra-se inserido no art. 150, III, “b” e “c” da Constituição Federal, o qual dispõe, in verbis:
Art. 150. Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:
III - cobrar tributos:
b) no mesmo exercício financeiro em que haja sido publicada a lei que os instituiu ou aumentou;
c) antes de decorridos noventa dias da data em que haja sido publicada a lei que os instituiu ou aumentou, observado o disposto na alínea b;
Tal instituto dispõe sobre um intervalo mínimo de tempo que deve ser observado entre a data de publicação da lei instituidora ou majoradora e a data de cobrança do tributo. Conforme dispõe Ricardo Alexandre, tal princípio influencia diretamente na eficácia da lei.
Importante ressaltar que a Constituição refere-se expressamente à instituição e majoração de tributos, de modo que não há que se falar em obediência ao princípio da anterioridade quando a lei extinguir tributos, reduzir alíquotas, ampliar o prazo de pagamento ou conceder isenções, tendo em vista que, por não resultarem em oneração ao contribuinte, devem surtir efeitos imediatamente. Isso porque os princípios constitucionais tributários não obstam a eficácia imediata de leis mais favoráveis ao sujeito passivo, pois o objetivo é protegê-lo de eventuais abusos do Fisco.
1.1. O PRINCÍPIO DA ANTERIORIDADE ANUAL (ART. 150, III, b, CF)
Consoante tal princípio, a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios são proibidos de exigir tributos no mesmo exercício financeiro em que foi publicada a lei que agrava o ônus ao sujeito passivo, determinando, portanto, a postergação da eficácia da lei tributária para o primeiro dia do exercício financeiro seguinte ao daquele que tenha ocorrido a publicação que institui ou majora a exação tributária. Portanto, o legislador não veda a criação ou majoração do tributo a qualquer tempo, mas determina que a eficácia da lei seja suspensa até o início do exercício financeiro seguinte.
Porém, nem todos os tributos se sujeitam a tal regra. São exceções à anterioridade anual, previstas no art.150, parágrafo 1º, CF, podendo ser cobrados no mesmo exercício financeiro em que publicadas as leis que instituam ou majorem os seguintes tributos: impostos de importação e exportação, o imposto sobre operações fiscais e o extraordinário de guerra, além do empréstimo compulsório para atender a despesas extraordinárias, decorrentes de calamidade pública, de guerra externa ou sua iminência, o imposto de produtos industrializados, a CIDE combustíveis e a base de cálculo do ICMS sobre combustíveis.
1.2. O PRINCÍPIO DA ANTERIORIDADE NONAGESIMAL (ART. 150, III, c, CF)
Inobstante a exigência da obediência à anterioridade anual, surgiu a necessidade de evitar a surpresa do contribuinte quando, dias antes do fim do exercício financeiro, o sujeito passivo era surpreendido com nova lei instituindo ou majorando um tributo. Desse modo, a Emenda Constitucional n. 42/2003 acrescentou mais uma garantia ao contribuinte, no tocante ao princípio da anterioridade. Passou-se a vedar a cobrança de tributos antes de decorridos o prazo mínimo de 90 (noventa) dias da data que tenha sido publicada a lei que agrava o ônus ao contribuinte.
Tal princípio exige uma aplicação cumulativa com a anterioridade anual, garantindo uma maior segurança ao contribuinte contra a tributação abusiva.
Entretanto, alguns tributos não se submetem a tal regra, podendo ser cobrados antes de decorridos 90 dias da publicação da lei instituidora ou majoradora, sendo o caso dos impostos de importação e exportação, o imposto sobre operações fiscais e o extraordinário de guerra, além do empréstimo compulsório para atender a despesas extraordinárias, decorrentes de calamidade pública, de guerra externa ou sua iminência, a base de cálculo do imposto de renda e as fixações da base de cálculo do IPTU e do IPVA.
2. ISENÇÃO
A isenção constitui a dispensa legal de pagamento de tributo devido. Nessa hipótese, os fatores geradores continuam a ocorrer, gerando as respectivas obrigações tributárias, entretanto, o legislador, através de lei, exclui a etapa do lançamento e, por consequência, a constituição do crédito, dispensando o contribuinte do pagamento do tributo.
A Constituição Federal impõe que a concessão de isenção seja feita mediante lei específica, não sendo permitida a previsão por ato infralegal.
Oportuno, ainda, destacar que, embora a isenção configure tratamento diferenciado entre pessoas, coisas e situações, não é lícito que o benefício implique discriminatória diversidade de incidência tributária nos diferentes pontos do território nacional, caso seja concedida pela União, ressalvada a possibilidade de incentivos fiscais com o fim de promover o equilíbrio do desenvolvimento socioeconômico nas diferentes regiões do país. Desse modo, é normal que a norma exonerativa estipule tratamentos diferenciados, sem que isso configure vício de inconstitucionalidade, tendo em vista o interesse público visado.
Assim como os demais benefícios fiscais, a isenção pode ser concedida em caráter geral ou específico. A primeira decorre do fato que o benefício atinge a generalidade dos contribuintes, independente de características pessoais especiais. A segunda, por sua vez, decorre de restrição de benefício às pessoas quando observam e obedecem determinados requisitos, de modo que a sua fruição estará condicionada ao requerimento à Administração Tributária, necessitando, ainda, da comprovação de cumprimento dos pressupostos legais, conforme dispõe o artigo 179 do Código Tributário Nacional.
Por último, consoante dispõe Ricardo Alexandre, é interessante pontuar que a concessão da isenção em caráter individual não gera direito adquirido e será anulada de ofício, sempre que se apure que o beneficiário não satisfazia ou deixou de satisfazer as condições necessárias, aplicando-se, no que couber, o disposto no art. 155 do CTN.
Ademais, a regra é a possibilidade de revogação da isenção não onerosa, a qualquer tempo. Contudo, quanto às isenções onerosas, concedidas em função do atendimento de determinadas condições e por prazo certo, o Supremo Tribunal Federal, em sua súmula 544, estabeleceu que não poderiam ser livremente suprimidas.
3. REVOGAÇÃO DE ISENÇÕES E A APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA ANTERIORIDADE
Conforme o exposto, a anterioridade busca proteger o contribuinte contra as surpresas que agravem a carga tributária a que está submetido.
Segundo a doutrina majoritária, quando da concessão de uma isenção, há, indubitavelmente, a redução da carga tributária do sujeito passivo, não devendo obedecer, portanto, a quaisquer anterioridades. Por outro lado, quando tal isenção é revogada, sem dúvida, tal medida gera o aumento da carga tributária a que o contribuinte deve arcar.
Portanto, a redução ou extinção da isenção deveria produzir seus efeitos somente no exercício financeiro seguinte, ou seja, devendo obediência ao princípio da anterioridade anual.
No mesmo sentido, Hugo de Brito Machado (2010, p. 251):
“A revogação de uma lei que concede isenção equivale à criação de tributo. Por isso deve ser observado o princípio da anterioridade da lei, assegurado pelo art. 150, inciso III, letra “b”, da Constituição Federal (...) a irrevogabilidade da isenção passou a depender dos dois requisitos, isto é, de ser por prazo certo e em função de determinada condições.
O art. 104, III do Código Tributário Nacional dispõe que entram em vigor no primeiro dia do exercício seguinte àquele em que ocorra a sua publicação os dispositivos de lei, referentes a impostos sobre o patrimônio ou a renda que extinguem ou reduzem isenções. Embora haja divergência quanto à interpretação dada a esse dispositivo, entende-se que, ao menos aparentemente, ele está de acordo com o entendimento aqui explicitado.
Contudo, o STF, no RE 204.062, possuía entendimento no sentido de que a revogação da isenção não correspondia à criação nem à majoração de tributo, consistindo apenas em dispensa de pagamento de exação já existente, de modo que o tributo volta a ser imediatamente exigível, não carecendo da aplicação do princípio da anterioridade.
Nessa mesma linha, assim decidiu o Tribunal Regional Federal, 5ª região:
“TRIBUTÁRIO. PROCESSUAL CIVIL. EXECUÇÃO FISCAL. CONSELHO PROFISSIONAL. EXTINÇÃO DO PROCESSO EM RAZÃO DE NÃO RECOLHIMENTO DE CUSTAS PROCESSUAIS. IRRETROATIVIDADE DA LEI. APELAÇÃO PROVIDA.A sentença recorrida extinguiu o processo sem julgamento de mérito em razão do não recolhimento das custas (fls. 59/61). 2. O art. 9o., da Lei 6.032/74 isentava do pagamento de custas, entre outros, a União, os Estados, Municípios e respectivas autarquias; a Lei 9.289/96, revogadora daquele diploma normativo, afastou expressamente, em seu art. 4o, Parágrafo Único, as entidades fiscalizadoras do exercício profissional da referida isenção. 3. O STF já decidiu que, revogada a isenção, o tributo se torna imediatamente exigível, não havendo que se observar o princípio da anterioridade, por se tratar de tributação já existente (RE 204.062-2-ES, Rel. Min. CARLOS VELLOSO, DJ 19.12.96). 4. No caso dos autos, observa-se que a Execução Fiscal foi protocolada em 25.06.96 e a Lei 9.289, revogadora da isenção, é de 04.07.96 (DOU 05.07.96), impossibilitando que seus efeitos incidam sobre atos processuais que lhes são anteriores, neste sentido: TRF5, AC 416.903-CE, Rel. Des. Federal FREDERICO PINTO AZEVEDO, DJ 19.11.07, p. 436. 5. Apelação provida para reformar a sentença recorrida, determinando-se o prosseguimento da Execução Fiscal”. (grifo nosso)
Inobstante tal entendimento, em 2014, no RE 564.225 Ag/RS, o Supremo deu indícios de uma possível mudança. Em seu voto, o relator, ministro Marco Aurélio, explicou que ato normativo que reduz ou extingue benefício fiscal aumenta, indiretamente, o imposto dentro do mesmo exercício. Sendo aplicável, portanto, o princípio da anterioridade. Ademais, afirmou que o princípio da anterioridade visa a proteger o contribuinte e, se, de uma hora para outra, modifica-se o valor do tributo, muito embora essa modificação decorra de cassação de benefício tributário, há surpresa.
Pela importância, destaca-se o julgado no informativo 757 do STF, in verbis:
ICMS: revogação de benefício fiscal e princípio da anterioridade tributária.
Configura aumento indireto de tributo e, portanto, está sujeita ao princípio da anterioridade tributária, a norma que implica revogação de benefício fiscal anteriormente concedido. Com base nessa orientação, a 1ª Turma, por maioria, manteve decisão do Ministro Marco Aurélio (relator), que negara seguimento a recurso extraordinário, por entender que o acórdão impugnado estaria em consonância com o precedente firmado na ADI 2.325 MC/DF (DJU de 6.10.2006). Na espécie, o tribunal “a quo” afastara a aplicação — para o ano em que publicados — de decretos estaduais que teriam reduzido benefício de diminuição de base de cálculo do ICMS, sob o fundamento de ofensa ao princípio da anterioridade tributária. A Turma afirmou que os mencionados atos normativos teriam reduzido benefício fiscal vigente e, em consequência, aumentado indiretamente o aludido imposto, o que atrairia a aplicação do princípio da anterioridade. Frisou que a concepção mais adequada de anterioridade seria aquela que afetasse o conteúdo teleológico da garantia. Ponderou que o mencionado princípio visaria garantir que o contribuinte não fosse surpreendido com aumentos súbitos do encargo fiscal, o que propiciaria um direito implícito e inafastável ao planejamento. Asseverou que o prévio conhecimento da carga tributária teria como base a segurança jurídica e, como conteúdo, a garantia da certeza do direito. Ressaltou, por fim, que toda alteração do critério quantitativo do consequente da regra matriz de incidência deveria ser entendida como majoração do tributo. Assim, tanto o aumento de alíquota, quanto a redução de benefício, apontariam para o mesmo resultado, qual seja, o agravamento do encargo. Vencidos os Ministros Dias Toffoli e Rosa Weber, que proviam o agravo regimental. Após aduzirem que benefícios fiscais de redução de base de cálculo se caracterizariam como isenção parcial, pontuavam que, de acordo com a jurisprudência do STF, não haveria que se confundir instituição ou aumento de tributos com revogação de isenções fiscais, uma vez que, neste caso, a exação já existiria e persistiria, embora com a dispensa legal de pagamento.
RE 564225 AgR/RS, rel. Min. Marco Aurélio, 2.9.2014. (RE-564225)
Nesse contexto, entendeu-se que “toda alteração do critério quantitativo do consequente da regra matriz de incidência deveria ser entendida como majoração do tributo” e, portanto, sujeita à aplicabilidade do princípio da anterioridade (ALEXANDRE, Ricardo, 2016).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Consoante o exposto, verifica-se que, embora haja posicionamento em sentido oposto, parece mais adequado aos valores consagrados na Carta Magna e à finalidade do princípio constitucional da anterioridade filiar-se ao entendimento de que a revogação de isenção ou de qualquer outro benefício fiscal representa, mesmo que indiretamente, uma majoração da carga tributária do contribuinte. Portanto, deve sujeitar-se à anterioridade tributária, conforme doutrina majoritária e entendimento recente da Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ALEXANDRE, Ricardo. Direito Tributário Esquematizado. 10˚ ed. São Paulo: Editora Método, 2016.
SABBAG, Eduardo. Manual de Direito Tributário. 6º ed. São Paulo: Editora Saraiva, 2014.
MACHADO, Hugo de Brito. Curso de direito tributário. 31º ed. São Paulo: Malheiros, 2010.
Sites:
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil: promulgada em 05 de outubro de 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constitui%C3%A7ao.htm>. Acesso em: 04 out 2016.
______. Lei nº 5.172, de 25 de outubro de 1966. Código Tributário Nacional. Legislação Federal. Brasília, 27 out. 1966. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br>. Acesso em: 04 out 2016.