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Perfil constitucional da função social da propriedade

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Agenda 01/10/1999 às 00:00

1. Introdução

A propriedade sempre constituiu um foco constante de tensões sociais e econômicas, instabilizando relações jurídicas, causando acirrados conflitos entre as pessoas e, estas e o Estado, enfim, tem fortes repercussões em todas as esferas sociais.

O Direito sempre procurou criar instrumentos e meios que pudessem defendê-la e pacificá-la, no sentido de superar as violentas controvérsias que explodem ao seu redor. Hodiernamente, identificamos um objetivo que as pressões sócio-econômicas produziram para o operador jurídico: efetivar e concretizar a função social da propriedade. Não apresentaremos aqui um conceito acabado e claro do que seja a função social da propriedade e nem temos tal pretensão neste trabalho. O que procuramos é oferecer um ponto de partida do qual pode ser edificada uma nova concepção dogmática para o direito de propriedade e de sua função social.

A sociedade, após um longo e doloroso processo de lutas e convulsões, assumiu o compromisso de redistribuir a riqueza por ela produzida, ou seja, integrar aquelas camadas marginalizadas pela concentração abusiva de renda, transformar a massa em cidadãos. Entretanto, as camadas que detêm os meios e bens de produção, a elite composta pelos grandes latifundiários e conglomerados empresariais, impõem resistências a esse escopo e aferram-se às suas posses de modo intransigente e, muitas vezes, violento, num esforço cego e inconseqüente. E esse fenômeno se reproduz com bastante freqüência nas classes sociais baixas, não sendo portanto privativo da elite dirigente. Da bicicleta ao automóvel, da pequena gleba rural ao latifúndio, da pequena empresa à grande corporação industrial, ninguém se dispõe a renunciar ao direito de propriedade em prol desse interesse coletivo (cf. França, 1995: 7).

Existe no direito positivo brasileiro todo um sistema integrado por institutos de direito material e processual para a propriedade e todas as suas manifestações. Tem a propriedade um regime jurídico constitucional e infraconstitucional onde se faz sempre presente um rígido e cauteloso cuidado para com o direito de propriedade. Nunca o operador jurídico se ressentiu da ausência de meios legais para garantir a posse e a propriedade individual, haja vista o conjunto dos poderosos interesses que surgem em sua defesa. O que se reivindica hoje do Direito, são soluções pacíficas e legais para a posse e propriedade sociais (cf. França: 1995: 7/8; e 1997b: 480/482).

O objetivo do presente trabalho consiste em propor uma revisão dos conceitos da propriedade privada e do papel que sua função social tem no mundo jurídico. Procuraremos inicialmente fixar o conceitos que empregaremos neste trabalho, de direitos e garantias constitucionais e de norma constitucional; logo após, o modo como foi inserida e juridicamente regulamentada pela Constituição brasileira vigente a instituição da propriedade. Tentaremos esclarecer qual a natureza constitucional da propriedade, demonstrando sua submissão incondicional ao princípio da função social da propriedade.


2. Natureza Constitucional da Propriedade

A inserção da instituição da propriedade no art. 5º da Lei Maior deve ser estudada com cuidado. A Constituição reflete as várias faces desse instituto, que estão em constante tensão.

Ao estabelecer o constituinte (art. 5º, caput, in fine) que a propriedade constitui uma garantia inviolável do indivíduo, elevou-se a instituição da propriedade à condição de garantia fundamental. Contudo, a posição da garantia fundamental da propriedade no texto constitucional não deve ser interpretada necessariamente como uma matéria restrita à esfera privada.

No inciso XXII, no mesmo dispositivo, declara que "é garantido do direito de propriedade", e, logo mais, "a propriedade atenderá a sua função social". A propriedade não pode ser mais vista como um direito estritamente individual nem como uma instituição de direito privado.

No capítulo que se refere aos "princípios gerais da atividade econômica", a Constituição assim estatui:

"Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios:

I - omissis

II - propriedade privada;

III - função social da propriedade;

(...)"

Inicialmente o direito de propriedade foi concebido como direito absoluto, natural e imprescritível (Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789), seja como uma relação entre uma pessoa e uma coisa, seja como entre um indivíduo e um sujeito passivo universal, dentro da visão civilista. Predomina atualmente o entendimento de que a propriedade compreende um complexo de normas jurídicas de direito privado e de direito público, cujo conteúdo é determinado pelo direito positivo (cf. Silva, 1991: 240).

O regime jurídico da propriedade não se restringe às normas de direito civil, compreendendo sim todo um complexo de normas administrativas, ambientais, urbanísticas, empresariais, e, evidentemente, civis, fundamentado nas normas constitucionais. Cabe ao direito civil disciplinar as relações jurídicas civis decorrentes do direito de propriedade. A Constituição confere à propriedade uma concepção mais ampla, determinando juridicamente a sua limitação positiva (até onde vai o conteúdo) e, a sua limitação negativa (até onde vêm ou podem vir as incursões dos outros), procurando orientá-la como um instrumento de bem-estar social (França, 1995: 8/9).

O direito de propriedade não é superior ao direito à vida, este, efetivamente, direito constitucional fundamental (cf. França, 1995: 9). É a lei que "hierarquiza os valores socialmente protegidos, e ao interesse de um antepõe o direito de outro. Em nosso ordenamento jurídico positivo, encimado pela Constituição, tem supremacia o direito à vida, mesmo porque é esse direito - em grau mais próximo ou remoto - que explica a existência dos demais" (Cunha, 1994: 53; grifo nosso).

Para se identificar o caráter jurídico da propriedade, é preciso antes distinguir claramente os direitos fundamentais e das garantias fundamentais, segundo a nossa Constituição.

Os direitos fundamentais são direitos constitucionais (individuais, sociais, econômicos, políticos e ambientais), baseados na norma constitucional (princípios e regras constitucionais), que têm existência jurídica incondicionada e inviolável, gozando de supremacia jurídica sobre dos demais direitos constitucionais e infraconstitucionais. Sua concreção não pode estar condicionada por normas remissivas ou programáticas, sob pena de paralisia constitucional (Saraiva, 1993: 30; cf. CRFB, art. 5º, § 1º).

As garantias fundamentais compreendem as garantias constitucionais e as garantias institucionais, destinadas à viabilizar à concretização dos direitos fundamentais.

As garantias constitucionais consistem em instrumentos jurídicos postos à disposição do cidadão para a concretização dos direitos consagrados no texto constitucional (Saraiva, 1993: 45).

As garantias institucionais compreendem, por sua vez, no reconhecimento constitucional de determinadas instituições jurídicas como fundamentais para o desenvolvimento pacífico das relações jurídicas de uma dada sociedade, submetida a uma determinada Constituição. Podem tanto se referir a instituições político-jurídicas (como o município, os sindicatos, os partidos políticos), como a instituições jurídicas originariamente concebidas como da seara do direito privado (contrato, família, propriedade) (ver França, 1997b: 470/471).

Carl Schmitt é apontado como o criador da distinção entre "direitos fundamentais" e "garantias institucionais". Aqueles caracterizariam como direitos incondicionados, típicos do indivíduo e invioláveis pelo Estado; já estas, nas palavras de Nicolau Pérez Serrano (1984: 674), "son derechos que se reconocen a determinadas instituciones, como ya el proprio nome indica, y no afectan a los Individuos, o a lo sumo repercuten oblicua e indirectamente en ellos; no pueden valer contra el Estado, sino para su adecuado funcionamento; no se conciben antes ni por encima del Estado, sino dentro de él, y no implican órbita previa de competencia ilimitada, sino radio de acción, más o menos amplio, marcado por la Constituición; se trata, en suma, de protección especial dispensada por el poder constituyente a instituciones que no conviene dejar entregadas a veleidades de la Ley ordinaria".

Pontes de Miranda (1987: 396/397; ver tb. Canotilho & Moreira, 1991: 110 e 163) ensina-nos que a liberdade pessoal não é instituição estatal que exija garantias. É direito fundamental, supra-estatal, que os Estados não podem desrespeitar. Quanto à propriedade privada, "é instituição, a que as Constituições dão o broquel da garantia institucional". Inexiste um conceito fixo da propriedade e "nem seria possível enumerar todos os direitos particulares em que se pode decompor, ou de que transcendentemente se compõe, porque da instituição apenas fica, quando reduzida, a simples e pura patrimonialidade". Está vedado apenas ao legislador extinguir o instituto jurídico, com o direito de propriedade. Lembra o jurista alagoano que o direito de propriedade é garantido quanto ao sujeito, que o tem, já que assegura, em caso de desapropriação por necessidade ou utilidade pública, ou interesse social, a pretensão à indenização prévia; sendo o seu conteúdo e os seus limites suscetíveis de mudança em virtude de legislação, assim como o seu exercício.

A idéia de um direito supra-estatal deve ser encarada com cautela. Embora se possa afirmar que os direitos podem se consolidar historicamente como "fundamentais", somente com o seu reconhecimento pela Constituição, é possível considerá-lo formalmente positivado. Se uma Constituição é feita com "os faróis voltados para trás", como costuma dizer José Gláucio Veiga(1), ela é condenada pela história e pela sociologia, não pelo direito. Isso não significa dizer que o jurista deva ignorar a história ou a sociologia, pois do contrário, tudo o que estuda torna-se passível de inutilidade. Levada a sério, a Constituição pode ajudar concretamente a evolução da sociedade. Embora não se deva esquecer que um interesse jurídico supra-estatal do primeiro mundo tende a ser mais "supra-estatal" que um interesse jurídico supra-estatal latino-americano...

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A propriedade consiste no anteparo constitucional entre o domínio privado e o público, havendo a sua tutela constitucional em razão da limitação imposta ao Estado no campo econômico, pois a apropriação particular dos bens econômicos não pode ser sacrificada. Tanto que a mutação subjetiva que a desloque do particular para o Estado somente pode ocorrer mediante desapropriação nos termos da lei, conforme a necessidade de utilidade pública ou interesse social, após prévia indenização (cf. art. 5º, XXIV). "O Texto Constitucional, ao dar independência à proteção da propriedade, tornando-a objeto de um inciso próprio e exclusivo, deixa claro que a propriedade é assegurada por si mesma, erigindo-se em uma das opções fundamentais do Texto Constitucional, que assim repele modalidades outras de resolução da questão dominial como, por exemplo, a coletivização estatal" (Bastos, 1989: 193).

As garantia institucional da propriedade pode ensejar a criação de direitos e deveres para o indivíduo e para a sociedade (cf. Serrano, 1984: 675). Inexiste propriamente compartimentos estanques e incomunicáveis entre os direitos e garantias fundamentais. O direito é dinâmico e não se prende apenas ao que foi expressamente exposto no Texto Constitucional, como ele mesmo reconhece no seu art. 5º, § 2º, ao determinar que os "direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte".


3. Princípio da Função Social da Propriedade

3.1. Função Social da Propriedade como Base Constitucional da Propriedade Privada

A norma constitucional não consegue abranger todas as formas nas quais a instituição da propriedade se manifesta, até pela própria dinâmica do sistema capitalista. Mas a instituição da propriedade é uma só, incidindo sobre tudo o que for economicamente apreciável e apropriável pelo indivíduo (em sentido contrário, ver Grau, 1990: 248).

A propriedade tem duas faces. Tem-se as propriedades estáticas e as propriedades dinâmicas.

As propriedades estáticas referem-se às propriedades imobiliárias, os créditos e as relações jurídicas delas derivadas para os seus titulares, que são regidas eminentemente pelo Código Civil (Vaz, 1993: 145). Já as propriedades dinâmicas estão relacionadas com as atividades econômicas, industriais e comerciais, que se destinam "a produzir e promover a circulação, a distribuição e consumo de bens", estando sua regulamentação parcialmente assentada em outros diplomas legais (Vaz, 1993: 145). Estas tratam diretamente dos bens de produção, e, enquanto que aquelas, dos bens de consumo.

E lembra Isabel Vaz (1993: 151):

"Retirar o capital, os bens de produção do estado de ócio (aspecto estático), consiste, pois, em utilizá-los em qualquer empresa proveitosa a si mesma e à comunidade. É dinamizá-los para produzirem novas riquezas, gerando empregos e sustento aos cooperadores da empresa e à comunidade. É substituir o dever individual, religioso, de dar esmola pelo dever jurídico inspirado no compromisso com a comunidade, de proporcionar-lhe trabalho útil e adequadamente remunerado".

Há um núcleo mínimo de propriedade privada, essencial à preservação da dignidade humana e do acesso material aos bens da educação, cultura, segurança, moradia etc. (Vaz, 1993: 48). Nesse caso, configura-se um direito fundamental à propriedade, consagrado no art. 5º, caput, da nossa Constituição. A Constituição preserva assim, o acesso do indivíduo à propriedade, como instrumento de manutenção de sua sobrevivência mínima. E, ao mesmo tempo, reconhece a garantia institucional da propriedade.

Já o direito de propriedade, configurado no art. 5º, inciso XXII, estabelece um direito individual, que confere soberania (bastante relativa) ao indivíduo ao dispor, usufruir e gozar das comodidades dos bens que legitimamente possuir. In casu, inexiste uma inviolabilidade e um caráter sacro no direito de propriedade, podendo ou não estar limitado pela legislação infraconstitucional. O seu exercício é extremamente condicionado pelas leis do Estado, que esvaziaram em muito a plenitude do art.524 e seguintes do Código Civil.

No art. 5º, inciso XXIII, declara expressamente a existência do princípio constitucional fundamental da função social da propriedade, que se encontra também exposto no art. 170, III, elencado entre os princípios da ordem econômica. Como já dissemos, em outra oportunidade (cf. França, 1997a: 486), os princípios constitucionais expostos no art. 5º são princípios constitucionais fundamentais, plenamente eficazes e vinculantes da conduta do indivíduo e do Estado.

Segundo Eros Roberto Grau (1990: 247), enquanto a propriedade é encarada como instrumento, como uma garantia da subsistência individual e familiar, tem uma função individual, isenta da função social, limitada tão somente pelo poder de polícia estatal, que estaria relacionada com o art. 5º, inciso XXII, da Carta Magna. Estando a propriedade relacionada com os bens de produção, teríamos não um direito de propriedade, mas uma propriedade-função, perdendo sua condição de direito e passando a de dever, estando assentada no texto constitucional no art. 170, inciso III, da Constituição. Lembra ainda o jurista (Grau, 1990: 247):

"(...) quanto à inclusão do princípio da garantia da propriedade privada dos bens de produção entre os princípios da ordem econômica, tem o condão de não apenas afetá-los pela função social - conúbio entre os incisos II e III do art. 170 - mas, além disso, de subordinar o exercício dessa propriedade aos ditames da justiça social e de transformar esse mesmo exercício em instrumento para a realização do fim de assegurar a todos existência digna".

Não há, segundo Eros Roberto Grau (1990: 244), possibilidade em se considerar o princípio da função social da propriedade como elemento isolado da propriedade privada, pois afinal, a "alusão à função social da propriedade estatal qualitativamente nada inova, visto ser ela dinamizada no exercício de uma função pública".

Isabel Vaz (1993: 154) não aceita o critério proposto por Grau para se identificar juridicamente a incidência do princípio da função social da propriedade. E assim se manifesta:

"O direito subjetivo do proprietário dos bens de produção, da "propriedade dinâmica, ao contrário do que afirma Eros Grau, não pode ser considerado abolido simplesmente porque a empresa privada tem uma função social a cumprir. Esta função impõe compromissos e deveres ao acionista controlador, conforme o artigo 170, caput, e inciso III da Carta vigente e ainda nos termos do parágrafo único do artigo 116 da Lei 6.404/76, mas não lhe retira a qualidade de titular de direitos subjetivos sobre os lucros ou os dividendos resultantes da atividade empresarial. Caso contrário, não se justificariam a inserção da ‘livre iniciativa’ no caput do citado artigo 170 nem do princípio da ‘propriedade privada’ no inciso II do mesmo dispositivo".

Assim nos posicionamos quanto à questão.

O tratamento constitucional das propriedades estáticas e dinâmicas não seguem, evidentemente, o mesmo ritmo. Mas destacar a função social da propriedade das propriedades estáticas não nos parece acertado. Alerta Isabel Vaz (1993: 153):

"A interpretação mais adequada, a nosso ver, seria considerar tanto a propriedade estática quanto a dinâmica submetidas ao preceito da função social, que não acarreta, em nenhuma das hipóteses, a supressão do princípio constitucional garantidor do direito à propriedade privada. Existem, evidentemente, limitações ‘de direito privado’ e limitações de ‘direito público’, conceituadas como gênero, das quais as espécies ‘restrições’ limitam o seu caráter absoluto; as ‘servidões’ limitam o caráter exclusivo e as ‘desapropriações’, o caráter perpétuo do direito de propriedade".

A função social é intrínseca à propriedade privada. As concepções individualistas sucumbiram ante à força das pressões sociais em prol de sua democratização. Pode-se dizer que não basta apenas o título aquisitivo para conferir-lhe legitimidade: é preciso que o seu titular, ao utilizar o feixe dos poderes - absolutos, amplos ou restringidos - integrantes do direito de propriedade, esteja sensibilizado com o dever social imposto pela Constituição Federal (França, 1995: 10).

Sem o atendimento da função social que lhe foi imposta pela Constituição, a propriedade perde sua legitimidade jurídica e o seu titular, no nosso entender, não pode mais argüir em seu favor o direito individual de propriedade, devendo se submeter as sanções do ordenamento jurídico para ressocializar a propriedade.

A inclusão do direito individual de propriedade entre os direitos fundamentais, no texto constitucional foi um grave equívoco do constituinte. Somente o direito à propriedade tem natureza compatível com os direitos fundamentais, por ser inviolável e incondicionado. O disposto no art. 5º, XXII, deve ser interpretada como uma especificação complementar e acessória de um dos aspectos da garantia institucional da propriedade, estabelecida no caput do dispositivo constitucional supra citado.

O princípio fundamental da função social da propriedade constitui, no nosso entender, o alicerce constitucional do regime jurídico-constitucional da propriedade, estando todos os demais princípios e regras constitucionais a ele submetidos, inclusive o princípio da propriedade privada estabelecido no art. 170, II, da Lei Maior. Se o constituinte desejasse colocar o princípio da apropriação privada dos bens econômicos como superior ao da função social, deveria tê-lo posto como princípio constitucional fundamental, o que se seria histórica e sociologicamente irreal. Como nos ensina J.J. Gomes Canotilho e Vital Moreira (1991: 49), os "princípios são núcleos de condensação nos quais confluem os bens e valores constitucionais, i. é, são expressão do ordenamento constitucional e não fórmulas apriorísticas contrapostas às normas".

Não vemos no art. 5º da Carta Magna uma inserção do princípio da propriedade privada, mas sim da instituição da propriedade, submetida ao princípio da função social da propriedade. Somente se insistirmos numa concepção individualista da propriedade, fulminada pela Constituição e pelos fatos, é possível se admitir que a função social constitui um elemento acessório da propriedade privada. Nem se fale que ao inserir a instituição da propriedade, o constituinte pôs no núcleo fundamental da Constituição o princípio da propriedade privada. A propriedade privada e a função social da propriedade, quando encaradas como princípios, se postos no mesmo patamar hierárquico, produzem uma contradição sem solução. Um ou outro assume um caráter acessório, no nosso entender. Optamos em colocar a função social da propriedade como princípio superior ao da propriedade privada, já que é justamente aquela o núcleo de sustentação e estabilidade da instituição da propriedade nos dias atuais. "A grande contradição dialética das Constituições na área das propriedades está em resolver, por adjetivos o que pede solução através de substantivos. (...) Na abóbada constitucional a chave que sustenta esta cúpula é a propriedade privada que dia a dia torna-se menos individual e mais social, menos privada e mais associativa" (José Gláucio Veiga, em parecer gentilmente prestado em razão de consulta por nós formulada sobre o tema que estamos a discorrer).

Mas a relativização e alteração do núcleo normativo tradicional empreendido pelo texto constitucional não implica numa abolição da propriedade, ou numa tendência em prol de sua coletivização.

O princípio da função social tem como objetivo conceder legitimidade jurídica à propriedade privada, tornando-a associativa e construtiva (cf. França, 1997b: 485), e, por conseguinte, resguardar os fundamentos e diretrizes fundamentais expostos nos arts. 1º e 3º da Carta Magna, bem como os demais fundamentos e diretrizes constitucionais relacionados com a matéria (cf. França, 1997a: 475 e 478).

Cabe ao princípio da função social, enfim, dar a estabilidade necessária à propriedade privada, tutelando sua integridade jurídica e procurando tornar sua existência sensível ao impacto social do exercício dos poderes concedidos ao titular do domínio. A função social da propriedade informa, direciona, instrui e determina o modo de concreção jurídica de todo e qualquer princípio e regra jurídica, constitucional ou infraconstitucional, relacionada à instituição jurídica da propriedade.

Imputar uma função social à propriedade não significa estabelecer um direito ou um dever ao bem. "O capital não é sujeito de direitos e deveres, que apenas mediatamente lhes podem ser impostos como funções ao cumprir, através do reconhecimento e da imposição de direitos e deveres ao seu titular" (Vaz, 1993: 149).

Segundo Celso Ribeiro Bastos (1989: 194), a função social da propriedade "nada mais é do que o conjunto de normas da Constituição que visa, por vezes até com medidas de grande gravidade jurídica, a recolocar a propriedade na sua trilha normal". Para o jurista, há o predomínio do critério econômico no conteúdo da função social da propriedade, abrangendo a mesma as sanções determinadas e aceitas na Constituição ao uso deturpado e degenerado, no que vai de encontro à Ordem Jurídica. Tais sanções referem-se às decorrentes do atentado das normas do poder de polícia, ou então à perda da propriedade na forma da Constituição Federal. A função social da propriedade careceria de um regime único haja vista a diversidade de domínios nos quais se manifesta a propriedade, dependendo sua eficácia de uma rígida e expressa regulamentação constitucional e infraconstitucional.

Por esses critérios teríamos a função social da propriedade como um elemento acessório, expresso e corretor. Uma retificação dos desvios tomados por sua utilização excessivamente individualista e não conciliada com o interesse social. Um fator que determina claramente o que se considerará danoso à coletividade no exercício do feixe de poderes decorrentes do direito de propriedade. Enfim, mais um instrumento de harmonização da propriedade privada, como "direito fundamental", com a sua destinação social, não servindo, na sua ausência, como uma justificativa que lhe retire sua legitimidade. Nesse sentido, somente o direito agrário teria conseguido regulamentar a função social da propriedade no direito positivo (França, 1995: 11).

Todavia, entendemos (cf. França, 1995: 11) que a função social da propriedade não pode ser confundida com os sistemas de limitação de propriedade, ou seja, a afetação de seus caracteres tradicionais (direito absoluto, exclusivo e perpétuo). Dizem sim respeito ao exercício do direito, ao proprietário, e, não à estrutura interna do direito à propriedade, estando sim subordinados à função social da propriedade, como bem leciona José Afonso da Silva (1991: 294):

"(...) a função social da propriedade se modifica com as mudanças na relação de produção. E toda vez que isso ocorrera, houvera transformação na estrutura interna do conceito de propriedade, surgindo nova concepção sobre ela, de tal sorte que, ao estabelecer expressamente que a propriedade atenderá a sua função, mas especialmente quando o reputou princípio da ordem econômica, ou seja: como um princípio informador da constituição econômica brasileira com o fim de assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social (art. 170, II e III), a Constituição não estava simplesmente preordenando fundamentos às limitações, obrigações e ônus relativamente à propriedade privada, princípio também da ordem econômica, e, portanto, sujeita, só por si, ao cumprimento daquele fim. Pois, limitações, obrigações e ônus são externos ao direito de propriedade, vinculando simplesmente a atividade do proprietário, interferindo tão-só com o exercício do direito, os quais se explicam pela simples atuação do poder de polícia".

A norma constitucional que dispõe sobre a função social da propriedade possui aplicabilidade imediata, pois "tem plena eficácia, porque interfere com a estrutura e o conceito da propriedade, valendo como regra que fundamenta um novo regime jurídico desta, transformando numa instituição de direito público, especialmente, ainda que nem a doutrina nem a jurisprudência tenham percebido o seu alcance, nem lhe dado aplicação adequada, como nada tivesse mudado" (1991: 250). Entretanto, os princípios esculpidos na Lei Maior precisam materializar-se de modo mais consistente no direito positivo.

Apesar a Constituição Federal ter vinculado a propriedade à sua função social, é preciso que o operador jurídico se disponha a construir meios para a consecução do escopo fundamental da República que é o bem-estar social. Nada vale existência do formal sem o material (cf. Souto, 1992: 17).

3.2. Princípio da Função Social da Propriedade e as Regras Constitucionais Programáticas.

O Princípio da Função Social da Propriedade tem sido posto por importante parcela da doutrina como uma norma constitucional programática (como por exemplo, Barroso, 1993: 173). Fruto talvez da grande controvérsia que naturalmente gira em torno da regulamentação jurídica da propriedade privada.

Cabe mais uma vez relembrar o enunciado do art. 5º, § 1º, da Constituição Federal, ao determinar inequivocamente que as normas constitucionais definidoras de direitos e garantias fundamentais tem aplicação imediata. Cláusula que não deve ficar restrita ao art. 5º, devendo ser interpretada como vinculante para os demais direitos e garantias expostos no texto constitucional, no Título II, sob o enunciado de "Dos Direitos e Garantias Fundamentais".

Os princípios constitucionais e as chamadas "normas constitucionais programáticas" não podem ser colocados indiscriminadamente na mesma categoria. As diretrizes constitucionais propostas no texto constitucional podem vir ligadas tanto a princípios como a regras constitucionais (ver França, 1997a: 477/478). Mas nunca um princípio pode estar restrito a indicar singelamente uma diretriz.

A diretriz constitucional apenas se limita propor um objetivo que será imposto pela norma constitucional. Se um dispositivo constitucional se limita a estabelecer uma diretriz, sem indicar expressamente os meios jurídicos necessários para sua realização, a Constituição, ao nosso ver, está remetendo ao ordenamento jurídico como um todo a tarefa de concretizá-lo. Como bem ensina Eros Roberto Grau (1990: 181), "jamais se aplica uma norma jurídica, mas sim o Direito, não se interpretam normas constitucionais, isoladamente, mas sim a Constituição, no seu todo". Neste caso, temos uma regra constitucional programática, cuja eficácia está vinculada à concreção de todo ordenamento jurídico-constitucional.

A rigor, nenhuma norma constitucional tem eficácia enquanto não houver a concretização normativa do texto constitucional (Neves, 1994: passim; ver tb. França, 1997c: 13/14).

O princípio constitucional pode ou não abranger um conteúdo programático. Contudo, sua eficácia e aplicabilidade não podem estar condicionadas à regulamentação ulterior. Se o princípio consagra uma diretriz, a diretriz se torna plenamente exigível e juridicamente imperativa, independentemente de regulamentação infraconstitucional.

Os princípios constitucionais são normas constitucionais hierarquicamente privilegiadas, onde o fundamento e/ou diretriz constitucionais encontram-se imperativamente determinadas, objetivando o seu conteúdo e tornando-o concretizável juridicamente (França, 1997a: 480). "A norma que dita um princípio constitucional não se põe à contemplação, como ocorreu em períodos superados do constitucionalismo; põe-se à observância do próprio Poder Público do Estado e de todos os que à sua ordem se submetem e da qual participam" (Rocha, 1994: 26).

Os princípios fundamentais da Constituição, dentre eles o da função social da propriedade, não podem ter sua aplicabilidade comprometida por uma regra remissiva ou programática. Se os elementos principiológicos essenciais do ordenamento jurídico-constitucional são apenas programáticos, dependendo de regulamentação infraconstitucional, é deixar à arbitrária discrição do legislador, do administrador e do juiz, a decisão de aplicar ou não princípio constitucional.

Os princípios constitucionais não necessitam de regulamentação infraconstitucional para se fazer valer no ordenamento jurídico-constitucional. Constituem os pontos de direção, sistematização e controle do processo de concretização do texto constitucional, que tornam viáveis a determinação objetiva dos conceitos, fundamentos e diretrizes diante do caso concreto posto à apreciação do operador jurídico.

Também não constituem em "programas" para o operador jurídico, já que o princípio constitucional representa justamente a objetivação das diretrizes e fundamentos constitucionais.

A técnica constitucional de estabelecer fins sem indicar os meios, sob a forma de regras programáticas e remissivas é fenômeno bastante presente na época contemporânea. "Se o econômico, cada dia, juridiciza-se intensamente, ou seja, exige uma multiplicidade de leis, regulamentos, instruções, portarias, etc., implicando uma proeminência do Poder Executivo, por outro lado, o D. Econômico ‘desjuridiciza’ no sentido de estabelecer uma relação de oposição com a chamada ‘segurança do Direito’, a ‘certeza del diritto’ dos italianos" (Veiga, s/d: 3). O que tem provocado a expansão da atividade legislativa para Poder Executivo, e, por conseguinte, do poder discricionário posto à sua disposição (França, 1997c: 40).

A tarefa do princípio é ordenar a utilização e concretização dos meios e fins jurídicos postos à disposição do operador jurídico. Colocar os mandamentos nucleares do sistema jurídico como meros "programas" e sujeitas à "remissões" a legislação hierarquicamente inferior, é tornar precários e inconsistentes os alicerces do própria ordem jurídica. Os princípios não foram feitos para serem apenas contemplados, mas sim aplicados e concretizados na realidade social, determinando objetivamente as diretrizes e os fundamentos que devem ser efetivamente obedecidos no processo de concretização do ordenamento jurídico posto.

Se a função social da propriedade serve apenas para a contemplação da sociedade, não vinculando e nem podendo vincular objetivamente a concretização do regime jurídico-constitucional da propriedade, então ela é inútil juridicamente, representando um discurso retórico e mítico.

Se a concretização dos direitos e garantias fundamentais encontra-se emperrada por uma regra remissiva ou programática, estas padece do vício de inconstitucionalidade (Saraiva, 1993: 31). Portanto, um princípio não deve estar condicionado por estas também.

Isso não significa dizer que a aplicação do princípio fundamental da função social da propriedade possa se dar na ausência de parâmetros jurídicos. Estes existem e são construídos e sistematizados em todo o ordenamento jurídico, segundo as prescrições normativas da Constituição.

Diante da resistência do Estado ou do particular em obedecer o determinado pelo princípio fundamental da função social da propriedade para o caso concreto, ao tolerar ou empreender a utilização antisocial o direito individual de propriedade, comprometendo a estabilidade da garantia institucional da propriedade ou negando o direito fundamental à propriedade, cabe ao prejudicado ou ao Estado ingressar pedir a tutela jurisdicional (art. 5º, XXXV, da CRFB), ou mesmo, implementar os instrumentos jurídicos postos no ordenamento jurídico (servidões, limitações, desapropriação) para a delimitação da propriedade; havendo falta de dispositivo regulamentador para o caso concreto, o prejudicado pode impetrar o Mandado de Injunção (art. 5º, LXXI, da CRFB).

Inexiste desculpa legal para a omissão do Judiciário em concretizar a função social da propriedade. O art. 5º, da Lei de Introdução ao Código Civil, estabelece expressamente que na aplicação da lei, "o juiz atenderá os fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum", devendo ainda, na omissão da lei, decidir o caso conforme a analogia, os princípios gerais do direito e os costumes (art. 4º, do mesmo diploma legal).

O art. 126, do Código de Processo Civil, estabelece que o juiz não pode se eximir em sentenciar ou despachar alegando lacuna e obscuridade da lei. Não deseja o dispositivo que deva haver a substituição do legislador pelo juiz(2), mas sim, a justa adequação da lei com todo o ordenamento jurídico posto. Como bem lembra O Ministro Sálvio de Figueiredo Texeira (apud Negrão, 1995: 161):

"A interpretação das leis não deve ser formal, mas sim, antes de tudo, real, humana, socialmente útil. (...) Se o juiz não pode tomar liberdades inadmissíveis com a lei, julgando contra legem, pode e deve, por outro lado, optar pela interpretação que mais atenda às aspirações da Justiça e do bem comum".

Não é tarefa do presente trabalho fazer uma análise do Mandado de Injunção e de suas potencialidades. Apenas identificamos nessa garantia constitucional, uma grande contribuição do constituinte para à concretização da função social da propriedade, ainda não explorada pelos nossos tribunais.

Outra ressalva a ser feita é a de que os princípios constitucionais não constituem elementos subsidiários à interpretação da norma constitucional. Todo o processo de concretização da norma constitucional deve partir justamente do princípio, para que se possa dar à norma individual a ser produzida no caso concreto a necessária coerência e adequação com o ordenamento jurídico posto.

Se há demanda por uma regra in concreto para a aplicação setorizada do princípio constitucional, e por conseguinte, dos direitos constitucionais por ele informado, o próprio ordenamento concede o Mandado de Injunção, para que o prejudicado possa vir até o Poder Judiciário, que tem a última palavra na resolução dos conflitos sociais de relevância jurídica, pedir a tutela jurisdicional sob a forma do suprimento da ausência de norma regulamentadora que viabilize o exercício dos direitos e liberdades constitucionais e das prerrogativas inerentes à nacionalidade, à soberania e à cidadania. Medida que seria interessante para a concretização do direito fundamental à propriedade.

Embora o Mandado de Injunção não tenha sido bem aceito pelo Supremo Tribunal Federal (Saraiva, 1993: 48/50), resta-nos aguardar por uma nova apreciação da jurisprudência quanto a essa garantia constitucional, onde, certamente, descobrirá a força que recusou a aplicar.

Há uma importante ressalva a ser feita. Se há norma constitucional definindo in concreto o conteúdo que a função social da propriedade deve assumir, não há espaço para uma interpretação que lhe seja diretamente divergente. Se o constituinte definiu que a propriedade rural onde estejam presentes os requisitos do art. 186 da Constituição (aproveitamento racional e adequado do solo; utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente; observância das disposições que regulam as relações de trabalho; e, a exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores), e a propriedade urbana, ao atender as exigências do plano diretor do Município (art. 182, § 2º, da Constituição), estão cumprindo sua função social, não há razão útil para propor um conteúdo diferente para o caso concreto. A não ser, numa reformulação desses conceitos, através de emenda à constituição, pois afinal, estes não estão afastados do Poder de Reforma (art. 60, § 4º, da CRFB).

O que é isento de qualquer reforma constitucional, é o princípio constitucional fundamental da função social da propriedade, preceito basilar, essencial e estabilizador da instituição da propriedade.

Sobre o autor
Vladimir da Rocha França

advogado em Natal (RN), professor da UFRN e da Universidade Potiguar, mestre em Direito Público pela Faculdade de Direito do Recife (UFPE), doutor em Direito do Estado pela PUC/SP

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FRANÇA, Vladimir Rocha. Perfil constitucional da função social da propriedade. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 4, n. 35, 1 out. 1999. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/676. Acesso em: 19 dez. 2024.

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