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A inadequação da presunção absoluta de fraude à execução fiscal estabelecida pelo Superior Tribunal de Justiça

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INCONSTITUCIONALIDADE DA INTERPRETAÇÃO QUE ADOTA A PRESUNÇÃO ABSOLUTA DO TERCEIRO NA FRAUDE À EXECUÇÃO

É tema livre de controvérsias a aquisição de força normativa pelos princípios no Ordenamento Jurídico Brasileiro e indiscutível que, sendo eles de órbita constitucional, são hierarquicamente superiores à legislação infraconstitucional nos casos de conflitos de normas. Partindo dessa premissa, não deve ser controvertido o ponto de que, sendo demonstrado que uma interpretação do art. 185 do CTN é nociva ao ordenamento jurídico a ponto de esvaziar o conteúdo de diversos princípios e direitos fundamentais, não há como admiti-la. Não obstante, é justamente o que acontece quando se propõe uma presunção absoluta de má-fé!

4.1 VIOLAÇÃO AO PRINCÍPIO DA BOA-FÉ

A presunção absoluta de má-fé é inaceitável, antes de tudo, porque viola direta o princípio da boa-fé objetiva que, embora não esteja previsto expressamente na Constituição Federal, é princípio intrinsecamente ligado à dignidade da pessoa humana, à democracia, ao devido processo legal, entre outras normas, dado que, consoante propõe o STJ, seria indiferente se a atuação do terceiro foi intencional ou não, se teve relação ou não com aqueles que praticaram a fraude à execução, inviabilizando sua defesa.

No Brasil, a adoção dos preceitos da boa-fé objetiva, de origem alemã, passou a prevalecer a partir do Código Civil de 2002, sendo responsável por afastar considerações subjetivas concernentes ao responsável pela obrigação, exigindo-se uma conduta sempre pautada na confiança e lealdade, teoria que passou a ser aplicada como cláusula geral para além das convenções particulares e se alastrando para todas as relações jurídicas[6].

No mesmo sentido, entende o STJ, reconhecendo que a proteção à confiança ultrapassa os limites do Código Civil e influencia na interpretação do Direito Público:

“PRINCÍPIO DA CONFIANÇA, PRETENSÃO À PROTEÇÃO E MORALIDADE ADMINISTRATIVA. Prestigia-se o primado da confiança, assente no § 242, Código Civil alemão, e constante do ordenamento jurídico brasileiro como cláusula geral que ultrapassa os limites do Código Civil (arts.113, 187 c/c art.422) e que influencia na interpretação do Direito Público, a ele chegando como subprincípio derivado da moralidade administrativa. Ao caso aplica-se o que a doutrina alemã consagrou como "pretensão à proteção" (Schutzanspruch) que serve de fundamento à mantença do acórdão recorrido”. (grifo nosso). (REsp Nº 944.325/RS).

Nesse contexto, a doutrina pátria aponta a existência de uma Tríplice Função da Boa-fé Objetiva, complementares entre si, quais sejam: a função interpretativa, presente no art. 113 do CC, “os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua celebração”; a função de fonte de criação de deveres anexos à prestação principal, materializado em deveres como os de informação, de sigilo ou colaboração; “impedir o exercício de direitos em contrariedade à lealdade e confiança”, vedando-se comportamentos que, apesar de admitidos por lei ou contrato, colidem com o conteúdo geral de boa-fé[7].

Como explicado, com base em entendimento do próprio STJ, a atuação pautada na confiança e boa-fé transborda o Direito Privado, permeando o Direito Público através do princípio da moralidade administrativa, devendo-se ser também aplicáveis às funções interpretativas, supletivas e limitativas quando se aufere o significado normativo do art. 185 do CTN.

Sendo assim, de acordo com o referido dispositivo, quando se afirmar que se presume “fraudulenta a alienação ou oneração de bens ou rendas”, para apurar a natureza dessa presunção, frente a interpretações diversas, “o intérprete deve privilegiar aquelas mais condizentes com a verdadeira intenção das partes e que esteja de acordo com a atuação segundo a boa-fé”[8], ou seja, espera-se que a norma seja suplementada, tendo como base a expectativa de uma conduta leal e confiável, de acordo com os parâmetros de conduta para as relações jurídicas. Parâmetros estes, que configuram fatores limitativos impostos com base na cláusula geral de boa-fé além dos preceitos constitucionais.

A par da necessidade de observância das esferas do princípio da boa-fé, com base em entendimento consolidado pelo próprio STJ, parte-se para um visão mais geral, apontando os danos decorrentes de uma interpretação que presume de forma absoluta a fraude à execução fiscal, que fere diversas normas constitucionais.

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4.2 DESRESPEITO A OUTROS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS

Desde logo, denuncia-se o desrespeito ao devido processo legal, em virtude dos obstáculos desproporcionais à defesa de terceiros que realizaram negócios jurídicos de boa-fé, consoante se infere da previsto no art. 5º, LIV, da CF: “ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal”. Isso porque é evidente que não pode ser considerado processo devido aquele em que não se admite o livre exercício dos subprincípios do contraditório e da ampla defesa.

Ainda mais, porque, conforme elucida Daniel Assumpção, “além do aspecto processual, também se aplica atualmente o devido processo legal como fator limitador do poder de legislar da Administração Pública”[9], combatendo-se entendimentos que concederiam privilégios inconstitucionais à Fazenda Pública.

Seguindo essa linha de raciocínio, não havendo direito ao devido processo legal e se ignorando o comportamento pautado na boa-fé, ter-se-ia como consectário o descumprimento do direito fundamental do Acesso à Ordem Jurídica justa, extraído do art. 5º, XXXV, da CF, posto que não basta que o Poder Judiciário analise a lesão, mas é fundamental que o faça de maneira justa, sob pena de os tribunais servirem apenas para legitimar a execução de atos arbitrários.

Somado a isso, rememora-se que a presunção absoluta de fraude à execução do terceiro adquirente foi alicerçada no interesse público, mas que o fez, com a devida vênia, por um viés restrito, servindo exclusivamente como justificativa para os anseios arrecadatórios do Estado. É dessa forma, pois olvidou-se da faceta do princípio cuja função é a limitação da supremacia do interesse público sobre o particular, em garantia da concretização das diretrizes constitucionais.

Assim, com base nesses princípios, que servem de Pedras de Toque para o Direito Administrativo, entende-se que o Estado, para que atinja a seus fins, dentre os quais a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, deve atuar com fundamento na dignidade da pessoa humana e em observância aos direitos e às garantias dos administrados. É sob essa ótica que deve ser protegido o interesse público, visto que, de outro modo, serviria tão somente como fundamento para extirpar direitos do administrado.

Não se pode aceitar interpretação em sentido contrário, pois, estar-se-ia concedendo poder incondicionado à Administração Pública para adentrar na esfera patrimonial dos particulares independentemente dos direitos que lhe conferem à Lei Maior citados acima, além de outros, como o da legalidade e o da propriedade (art. 5º, XXII, da CF).

Estar-se-ia, na realidade, operando-se um retrocesso a um sistema análogo ao dos governos absolutistas em que o Rei não se submetia à lei e era protegido pela irresponsabilidade em relação a seus atos, em desrespeito aos princípios federativos e em desprezo ao Princípio da Proibição ao Retrocesso, já reconhecido pelo Supremo Tribunal Federal.


 INTERPRETAÇÃO DO ART. 185 DO CTN À LUZ DO DIREITO TRIBUTÁRIO PENAL – RESPONSABILIDADE POR INFRAÇÕES

Os artigos 136 e 137 do Código Tributário Nacional, disciplinam a denominada responsabilidade tributária por infrações. Nos termos do art. 136 do CTN, a regra, para que ocorra a responsabilização do agente que age em desacordo com a legislação tributária, é de que “independe da intenção do agente ou do responsável e da efetividade, natureza e extensão dos efeitos do ato”, motivo pelo qual a doutrina vem entendendo se tratar de responsabilidade objetiva[10]. Isso significa dizer que, havendo nexo causal entra a conduta danosa do infrator e o resultado, haverá responsabilização, desconsiderando-se a existência de dolo ou culpa[11].

A regra de responsabilização objetiva, todavia, não é preceito absoluto e vem sendo afastada pelo Superior Tribunal de Justiça em casos em que o acusado agiu com boa-fé[12], posicionamento este que foi sedimentado inclusive na Súmula nº 509: “É lícito ao comerciante de boa-fé aproveitar os créditos de ICMS decorrentes de nota fiscal posteriormente declarada inidônea, quando demonstrada a veracidade da compra e venda”.

Em julgado que tratou da situação sumulada, o STJ chegou à conclusão de que a verificação da idoneidade das notas fiscais é atribuição do Fisco, entendendo que “a responsabilidade objetiva prevista no art. 136 do CTN aplica-se ao alienante e não ao adquirente[13]”. Ou seja, chegou-se à conclusão de que não deveriam ser desconsiderados os elementos subjetivos da responsabilização nos casos em que o terceiro agiu com boa-fé, situação agravada ainda pelo fato de que persistia a obrigação da Administração Pública em verificar a validade das notas fiscais. 

Analisando a ratio do julgado, não há razão para não aplicá-la aos casos das fraudes às execuções fiscais, caso comprovado que o terceiro não tinha condições identificar a atividade maliciosa do alienante, mormente em razão de omissão da Fazenda Pública em penhorar bens ou emitir certidões, ainda mais quando se trata de registro de gravame no Cartório de Registro Imobiliário.

Isso porque, para que se realize a transferência de bens sujeitos a registro, como os imóveis, é imprescindível que o oficial de registro exija certidões que atestem a inexistência de registros de crédito tributário vencidos e não quitados referentes ao bem objeto da transferência[14]. Isso significa que, para que o bem seja transferido, é necessário comprovar que o alienante esteja em situação de regularidade fiscal e, nesse caso, a ausência de inscrição de gravame sobre o imóvel, que denunciaria o contrário, apenas poderia ser imputada a erro do Tabelião ou à inércia da Fazenda Pública. Sendo assim, excluída a responsabilização do adquirente de boa-fé, caso persista algum débito, a Administração deverá cobrá-lo do anterior proprietário.

Em outro sentido, mesmo que se admitisse a existência de dúvida quanto à natureza da presunção de fraude à execução estampada no texto do art. 185 do CTN, que não define de forma expressa se tratar de presunção absoluta ou de presunção relativa, a despeito de todos os argumentos levantados para rechaçar a primeira, ainda assim, não se poderia alcançar a conclusão de que ela seria inafastável, pois se feriria o princípio de direito tributário penal de interpretação benigna em matéria de infrações, em caso de dúvida, aplicado às leis que definem infrações ou cominam penalidades e positivado no art. 112 do CTN[15].

 Art. 112. A lei tributária que define infrações, ou lhe comina penalidades, interpreta-se da maneira mais favorável ao acusado, em caso de dúvida quanto:

I - à capitulação legal do fato;

II - à natureza ou às circunstâncias materiais do fato, ou à natureza ou extensão dos seus efeitos;

III - à autoria, imputabilidade, ou punibilidade;

IV - à natureza da penalidade aplicável, ou à sua graduação.

De acordo com o dispositivo, existindo incertezas quanto à correta aplicação das normas, estas devem ser interpretadas maneira favorável ao acusado. Portanto, havendo dúvida decorrente da omissão legislativa, dentre as quais as que atingem a imputabilidade e a punibilidade, como é o caso daquela relativa à natureza da presunção, não é escorreito selecionar a interpretação mais gravosa ao acusado, exclusivamente por conveniência do Estado, mas aplicar aquela mais favorável ao acusado, qual seja, a de que a presunção de fraude à execução seja relativa.

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