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Intervenção federal e os mandados de busca e apreensão coletivos

O artigo busca demonstrar como a intervenção federal vem se utilizando dos mandados de busca e apreensão, fazendo uma balanço entre a legalidade da medida e os direitos fundamentais do cidadão.

Em apenas 4 (quatro) dias de análise, a Câmara dos Deputados aprovou, na madrugada do dia 20 de fevereiro de 2018, o decreto nº 9.288/18, expedido pelo presidente Michel Temer, em 16 de fevereiro do mesmo ano, que determina a intervenção federal do Estado do Rio de Janeiro até o dia 31 de dezembro de 2018.[1]

De acordo com a Constituição Federal do Brasil, a intervenção federal é uma faculdade constitucional de competência da União e pode ser decretada em algumas hipóteses enumeradas pelo próprio texto constitucional.

Dentre as hipóteses para a intervenção federal estão: a) o objetivo de manter a integridade nacional; b) repelir invasão estrangeira ou de uma unidade da federação; c) pôr termo a grave comprometimento da ordem pública; d) garantir o livre exercício de qualquer dos poderes nas unidades da federação; e) reorganizar as finanças da unidade da Federação; e) prover a execução de lei federal, ordem ou decisão judicial, ou ainda; f) assegurar a observâncias de determinados preceitos constitucionais.[2]

Nesse momento, a intervenção foi decretada em razão da situação caótica em que vive a criminalidade no Estado fluminense, enquadrando-se à hipótese do “objetivo de pôr termo ao grave comprometimento da ordem pública”[3], ou seja, o decreto presidencial se limita a remediar a segurança pública do Estado do Rio de Janeiro[4] (art. 1º, §2º, do decreto em epígrafe).

Assim, como consequência do decreto de intervenção federal, o Estado do Rio de Janeiro passa a ter dois chefes de governo, quais sejam, o interventor Cel. Braga Netto, que tem por responsabilidade todos os assuntos relacionados à segurança pública e o Governador Carioca, Luiz Fernando Pezão, com atribuição dos demais assuntos do Estado, tais como educação, saúde, transporte, enfim, todos os outros que não estejam relacionados com a segurança pública.

Como se vê, sob o aspecto jurídico, a intervenção federal nada mais é do que o pedido de auxílio do Estado do Rio de Janeiro para que a União intervenha e coloque “termo ao grave comprometimento da ordem pública”.

Contudo, o que assombra a todos, em razão das amargas lembranças decorrentes dos 20 (vinte) anos do período militar, é a possibilidade da utilização do exército para executar o objetivo da intervenção federal.

Apesar do receio popular, cumpre dizer que a intervenção federal é um instituto jurídico e devidamente positivado na Lex Legum, que deve ser utilizado como efetivação dos preceitos constitucionais já traçados no mesmo diploma legal, sempre com observância aos fundamentos do Estado Democrático de Direito e seus fundamentos, dentre os quais podemos destacar, a dignidade humana (art. 1, III, da Constituição Federal).

Acontece que, em meio à situação caótica vivenciada no Rio de Janeiro, existem vozes que clamam pela mitigação de direitos e garantias fundamentais atualmente previstas na própria carta constitucional.

Dentro deste contexto, a matéria veiculada no dia 19/02/2018, no jornal “O Estado de São Paulo”, com o título “Exército pede uso de mandado coletivo; especialistas temem abusos”[5], assim colocando em xeque o instituto da “busca e apreensão”. Pois bem, a partir da leitura daquele texto, fica claro que, inicialmente, a ideia é criar uma “nova” modalidade coletiva do “mandado de busca e apreensão”, que, nos dizeres do ministro Raul Jungmann, no “lugar de você dizer, por exemplo, rua tal, número tal, você vai dizer, digamos uma rua inteira, uma área, um bairro. Aquele lugar ali é possível de ter um mandado de busca e apreensão dentro de todos os procedimentos legais”.

Todavia, é bom que se diga, desde logo e para se colocar as coisas nos seus devidos lugares, que o decreto de intervenção federal em momento algum permite a flexibilização dos direitos e garantias fundamentais, constituindo-se, apenas, no pedido de auxílio do Estado para que a União, que detém mais recursos e estrutura, possa ajudar no combate da criminalidade.

Dessa forma, como não houve qualquer alteração nos artigos 240 e seguintes do Código de Processo Penal, que tratam dos mandados de “busca e apreensão”, a utilização de mandados coletivos seria um verdadeiro equívoco, para dizer o menos.

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No ordenamento jurídico brasileiro, a expedição de um mandado de busca e necessária está condicionada à observância dos requisitos dispostos no art. 243, do CPP, ou seja, de uma indicação minimamente precisa do que se pretende buscar, mencionando os motivos e fins da diligência, sendo certo e imprescindível a subscrição do escrivão competente e da assinatura da autoridade que o expedir. Basicamente, a estrita obediência àqueles preceitos legais é o que confere legitimidade à ação estatal.

Contudo, é evidente não existir precisão alguma em se autorizar a diligência em um quarteirão inteiro, conjuntos residenciais ou mesmo nas “favelas” de tal ou qual vila (nota-se, por relevante, que os tais mandados de busca e apreensão genéricos só estão sendo proferidos na periferia).

 Bem por isso, ainda em 2005, um artigo publicado no Boletim do Instituto de Ciências Criminais já dizia que é um verdadeiro absurdo a expedição de “mandado incerto, vago ou genérico. A determinação do varejamento, ou da revista, há de apontar, de forma clara, o local, o motivo da procura e a finalidade, bem como qual a autoridade judiciária que a expediu”[6].

A busca e apreensão como primeiro ato de investigação entra em choque com diversos direitos fundamentais, pois “não se busca para investigar, senão que se investiga primeiro e, só quando necessário, postula-se a busca e apreensão. Logo, inexiste justificativa para que a uma busca seja genérica”[7].

E nem se diga que a intervenção federal seria uma justificativa para o malfadado “mandado de busca e apreensão coletivo”, pois, a mitigação de direitos e garantias fundamentais reclama a observância da dignidade humana, dentre outros inúmeros princípios constitucionais, tais como a intimidade e a privacidade, sendo certo que a violação do domicílio dos cidadãos seria uma grave violação não só à Constituição Federal, mas ao próprio Estado Democrático de Direito.

Para combater a criminalidade, deve-se buscar estruturar o Estado Brasileiro com equipamentos e pessoas capacitadas, sem nunca atentar contra os direitos e garantias fundamentais dos próprios cidadãos.

Assim, cabe uma interessante reflexão: amanhã, pode ser que criem, ao arrepio da lei, um outro indevido mandado coletivo e, desta vez, a sua residência pode estar localizada no bairro determinado para a execução do ato.

Não podemos ignorar a lei, que, de uns tempos para cá, sofre com medidas populistas e opressoras, sobretudo porque essas tendências genéricas, policialescas e políticas não se coadunam com a realidade jurídica prevista na Constituição Federal, nem no Código de Processo Penal, seja neste momento, seja noutras oportunidades já vivenciadas no Rio de Janeiro[8].

Enfim, não se pode admitir a flexibilização de garantias constitucionais, sob o pretexto de satisfazer questões de políticas de “segurança pública” que não estão abarcadas pelo nosso Estado Democrático de Direito.  

Noutros termos, o Estado deve ser capaz de funcionar e satisfazer as pretensões da sociedade civil, sem ferir ou violar as normas constitucionais.


Notas

[1] Art. 1º, Dec. 9288/2018.

[2] Vide. art. 21, inc. V e arts. 34 a 36 da Constituição Federal.

[3] Observe o preambulo do decreto.

[4] Vale dizer que a segurança pública, neste caso, é compreendida pela transferência do controle dos seguintes órgãos do Estado do Rio de Janeiro: a) da secretaria de segurança; b) polícia civil e militar; c) corpo de bombeiros; d) e o sistema carcerário transferidos para o controle do Governo Federal.

[5] Em igual sentido, o Jornal G1. Disponível em: <https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/ministro-da-defesa-diz-que-operacoes-no-rio-vao-precisar-de-mandados-de-busca-e-apreensao-coletivos.ghtml>, acesso 20 fev. 2018.

[6] BASTOS PITOMBO, Cleunice. A desfuncionalização da busca e da apreensão. Boletim do IBCRIM, n.151, junho 2005, p. 2; também, para associados ao IBCCRIM, disponível em: <https://www.ibccrim.org.br/boletim_artigo/2991-A-desfuncionalizacao-da-busca-e-da-apreensao>,  acesso 23 fev. 2018.

[7] LOPES JR. Aury. Direito Processual Penal. 10. ed. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 717.

[8] Por exemplo, vide: STJ - HABEAS CORPUS Nº 416.483 - RJ (2017/0236856-5).

Sobre os autores
Matheus Barbosa Melo

Advogado criminal. Mestre em direito penal pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Pós-graduado em direito empresarial pela Fundação Getúlio Vargas de São Paulo. Pós-graduado em direito penal e processo penal pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Pós-graduado em direito penal econômico pela faculdade de Coimbra em parceria com o Instituto Brasileiro de Ciências Criminais.

Gabriel Huberman Tyles

Sócio do Escritório Euro Filho & Tyles. Mestre em Direito Processual Penal pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Especialista em Direito Penal e Processual Penal pela Pontifícia Universidade Católica.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MELO, Matheus Barbosa; TYLES, Gabriel Huberman. Intervenção federal e os mandados de busca e apreensão coletivos. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 23, n. 5522, 14 ago. 2018. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/68108. Acesso em: 21 nov. 2024.

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