Introdução
Inicialmente, é necessário que façamos uma delimitação sobre o relativismo moral como um campo da metaética, ou seja, como uma preocupação sobre determinado setor de análise da moralidade.
A metaética pode ser mais bem compreendida quando diferenciada da ética aplicada e da ética normativa. A ética aplicada lida com o âmbito de decisões morais em casos concretos, como a decisão sobre se é certo ou errado clonar humanos, se é correto doar para a caridade e assim por diante. A ética normativa, por seu turno, lida com os princípios regentes da moralidade, sobre a análise de quais padrões normativos prevalecem nos juízos morais em geral. Uma questão concernente à ética normativa, por exemplo, seria se as consequências importam mais na decisão moral, como é o caso do utilitarismo.
A metaética situa-se em um âmbito de investigação mais externo, e se preocupa em analisar o que as pessoas em geral querem dizer quando emitem um juízo moral, ou se é possível algum tipo de conhecimento moral e, se possível, em quais condições ele pode ser adquirido. A metaética lida também com o estado psíquico de quem emite um juízo moral, ou seja, com aspectos relativos à importância ou não da motivação quando da emissão de um juízo moral. E por último, a metaética lida com a possibilidade mesma da existência de propriedades morais independentes do sujeito que emite juízos morais. Os âmbitos supramencionados podem ser objetivados como linguagem moral, psicologia moral e ontologia moral.
O relativismo moral que trataremos aqui faz parte deste panorama. Destaque-se que, para a pretensão do presente trabalho, não será possível um aprofundamento a respeito do relativismo moral. Serão apresentadas descrições conceituais que possibilitem a obtenção de uma perspectiva comparativa em relação à Hermenêutica filosófica de Gadamer. Quanto a esta, é necessário considerar, inicialmente, que se trata de uma teoria da compreensão humana.
A preocupação de Gadamer se refere às condições subjacentes à compreensão, o que pode nos proporcionar um horizonte de análise relacional com o relativismo moral. Portanto, delimitaremos no presente estudo alguns dos conceitos desenvolvidos por Gadamer em sua teoria da compreensão para que possamos verificar uma possível convergência de tais condicionantes da compreensão com algum aspecto do relativismo moral.
Sobre o relativismo moral: o relativismo do agente e o relativismo do falante
Para descrever o relativismo moral, devemos ter em conta que se trata de uma perspectiva metaética que abrange um espectro amplo de posições. Contudo, como assinala Andrew, duas formas de relativismo podem cobrir grande parte dessas posições, que são o relativismo do agente e o relativismo do falante.
O relativismo do agente consiste no argumento de que a ação ou decisão moral de alguém só pode ser reputada como certa ou errada a depender da conjuntura na qual este alguém está inserido. Em uma conjuntura específica, está contido um conjunto de prescrições morais que determinam o que é moralmente aceitável ou não naquela conjuntura. Alguém que esteja situado em uma conjuntura secular, liberal, não pode, por exemplo, julgar como moralmente condenáveis as penas degradantes sofridas por mulheres mulçumanas em decorrência de prescrições religiosas.
Assim, não é possível conceber padrões universais do que é moralmente aceitável, não é possível que alguém esteja situado em um nível superior, em uma perspectiva privilegiada de julgamento, para aferir, a partir desta perspectiva, que uma determinada conjuntura apresenta padrões morais superiores aos de outra.
Enquanto o relativismo do agente está focado no desempenho de ações ou decisões em conjunturas diversas, o relativismo do falante foca em questões a respeito do significado de pretensões morais relativos a conjunturas estranhas entre si. O relativismo do falante afirma então que não é possível reputar uma pretensão moral como absolutamente verdadeira, porque a condição de verdade de uma pretensão moral depende fundamentalmente da conjuntura na qual aquele que emite um juízo moral está inserido.
Um argumento do relativismo do falante consiste em recorrer à constatação de que é possível que ocorram desacordos morais sem que nenhuma das partes conflitantes esteja equivocada em seu juízo, ou seja, é possível que as duas partes estejam corretas.
De acordo com o relativismo metaético, podem existir julgamentos morais conflitantes acerca de um caso particular em que ambos os julgamentos estejam totalmente corretos. A ideia é que duas pessoas com diferentes moralidades podem chegar a julgamentos morais conflituosos referentes a um caso particular - por exemplo: uma parte afirmando que o agente estava correto moralmente e a outra afirmando que o agente estava errado, onde as duas opiniões estejam corretas. (HARMAN, 1978, p. 146, tradução nossa[1])
Alguém que seja católico pode muito bem discordar de alguém que não seja católico quando o assunto é a reprovabilidade ou não do aborto, sem que isto signifique que um dos dois esteja equivocado ou desprovido de qualidades cognitivas.
Este é um desafio que a posição realista deve responder, pois se existirem de fato propriedades morais independentes de conjunturas, então, em tese, desacordos deste tipo não poderiam existir, porque uma das partes deveria necessariamente estar correta enquanto a outra equivocada, ou as duas estariam simplesmente incorretas em relação a um juízo necessariamente correto e independente das duas conjunturas em conflito. Além disso, o relativismo do falante admite que possa existir um acordo posterior, resultante de reflexão e discussão sem que isso implique a inexistência de pretensões morais conflitantes entre si e igualmente legítimas e corretas de acordo com suas respectivas conjunturas. Neste propósito, William Tolhurst desenvolve uma versão mais sofisticada do argumento do desacordo moral:
A versão do argumento do desacordo que considerarei não pretende mostrar que não existem verdades morais objetivas, mas somente que estas verdades, se existir qualquer delas, são epistemicamente inacessíveis. Tampouco é necessário que o fato ou extensão do desacordo seja decisivo. Ao invés disso, considero a afirmação de que um certo tipo de desacordo moral se apresenta como razão para negar que as crenças morais objetivas são sempre justificadas. ([2])
Contudo, para sustentar o argumento da possibilidade de desacordos morais genuínos sem que as partes conflitantes estejam equivocadas em seus respectivos juízos morais, o relativismo do falante deve demonstrar que há uma separação entre o significado e as condições de verdade de pretensões morais.
O relativismo do falante deve demonstrar, por exemplo, que há um significado compartilhado entre um católico e um não-católico quando eles têm um desacordo sobre a reprovabilidade do aborto, porque se não houvesse este locus significativo comum, simplesmente não haveria desacordo.Quando um católico diz “abortar é errado” e um não católico diz “abortar não é errado”, deve haver um significado compartilhado no qual os dois agentes discordantes possam compreender os termos envolvidos, para que com isso restem somente as respectivas conjunturas morais que cada parte conflitante esteja inserida como fator determinante para a disparidade entre as respectivas pretensões morais. Assim o relativismo do falante tem duas opções:
Então o relativismo do falante tem que responder este desafio seja negando a ligação entre significado e condição de verdade ou desistindo de um dos maiores atrativos do relativismo do falante: a habilidade de explicar como podemos ter desacordos morais sem que as partes estejam equivocadas. (FISHER, 2011, p. 125, tradução nossa[3])
Contudo, o relativismo do falante tem uma dificuldade neste ponto, pois é característica sensível da linguagem corriqueira o fato de que discordâncias de significado alteram sobremaneira as condições de verdade dos juízos, sejam eles corriqueiros ou morais.
Considerações iniciais sobre a hermenêutica filosófica de Gadamer
A hermenêutica filosófica de Gadamer é uma empreitada de crítica ao ingresso dos padrões da metodologia das ciências naturais como um modo de compreender os fenômenos históricos, ou as “ciências do espírito”. Tal empreitada senta raízes no projeto ontológico Heideggeriano, que tem como uma das características a crítica ao subjetivismo moderno, de matriz kantiana e cartesiana.
A noção de uma subjetividade isolada como fundamento e condição do conhecimento cede lugar ao acontecimento compreensivo como fenômeno necessariamente histórico e contextual. O sentido de um texto, de uma obra de arte, de uma lei, do certo e do errado moralmente, assim como o sentido de qualquer “objeto” de conhecimento se dá de acordo com determinadas condicionantes prévias, verdadeiros modos de ser da compreensão. Dentre tais condicionantes está a imersão de qualquer tipo de compreensão em uma tradição, ou seja, a constatação de que qualquer tipo de juízo é impregnado de historicidade, de um horizonte subjacente de sentidos no qual este juízo acontece.
podemos agora definir mais exatamente o sentido do fenômeno de “pertencimento”, ou seja, o fator tradição no comportamento histórico-hermenêutico. A hermenêutica deve partir do fato de que compreender é estar em relação, a um só tempo, com a coisa mesma que se manifesta através da tradição e com uma tradição de onde a “coisa” possa me falar. (GADAMER, 2003, p. 67)
O acontecimento compreensivo é, portanto, resultado de uma fusão de horizontes, é uma aplicação e mediação do que nos precede ao que ocorre no presente. Nesse sentido, a tradição exerce um tipo de autoridade no processo de compreensão, mas não uma autoridade de tipo coercitivo, e sim um modo um tanto sorrateiro de se impor mesmo quando pensamos poder evitá-la. O acontecimento da compreensão tem uma dinâmica necessariamente dialógica e ininterrupta, pois há sempre um movimento projetivo e revisor do que é previamente concebido, ou seja, de uma pré-compreensão, com o que diz o texto e as possibilidades de sentido subjacentes a uma tradição. Gadamer, na segunda parte de , recorre à ética aristotélica como uma descrição adequada ao problema hermenêutico da aplicação.
Se o próprio núcleo do problema hermenêutico é que a tradição como tal deve se compreendida cada vez de modo diferente, então – a partir do ponto de vista lógico – o que está em questão é a relação entre o geral e o particular. Compreender passa a ser um caso especial de algo geral a uma situação concreta e particular. (
O ponto sensível aqui é que o modelo aristotélico é fundamentalmente voltado para o agir virtuoso, ou seja para decisões e ações morais, de como é possível um saber ético, de como ele é ponderado e aplicado a casos concretos a partir de uma virtude peculiar, a phronesis, e como esta dinâmica sediferencia do saber da techne. Uma descrição do saber moral é tomada, portanto, como um modelo para uma teoria da compreensão. A reflexão aqui desempenhada tenta fazer o movimento oposto, ou seja, extrair os pressupostos de uma teoria da compreensão para possibilitar uma comparação com o relativismo moral.
A hermenêutica filosófica e o relativismo moral
Como demonstrado quando da exposição sobre o relativismo moral, mormente na explicação sobre o relativismo do falante, pode-se perceber que esta posição é tanto mais relevante quanto possa dissociar o significado de um juízo moral das condições de verdade deste juízo. Se o relativismo do falante falha ao negar esta conexão, então ele pode recair em uma teoria do erro, ou então ele deve abandonar a constatação de que existem discordâncias morais genuínas, sem a existência de equívoco das duas partes, que é um de seus argumentos mais robustos.
Na hermenêutica de Gadamer, uma das constatações pertinentes ao debate em questão, é a de que não há separação entre a compreensão de significados com as condições de verdade que lhes subjazem, pois estas condições têm um papel crucial no acontecimento compreensivo e na própria obtenção da verdade como acontecimento hermenêutico.
Além desta primeira diferença, há também questões cruciais a respeito do liame entre juízo moral/conjuntura, como no caso do relativismo do falante, e juízo moral/condições da compreensão, que são bem mais amplas do que uma simples conjuntura, religiosa ou territorial.
A tradição, por exemplo, é um âmbito muito mais contagioso do que uma conjuntura específica, e convida todas as conjunturas e contextos setoriais à participação na construção dos sentidos, que ocorre por um verdadeiro fio condutor histórico e linguístico. Em termos rasos, a relação do intérprete com a tradição é absoluta, no sentido em que ela sempre acontece, pois que lhe é constitutiva.
Gadamer, ao reconhecer que toda compreensão exige situar-se em uma tradição, do mesmo modo que compreender significa entender-se na coisa, acentua que este acontecimento reflexivo que se efetiva no momento da compreensão se deve ao fato e que o intérprete é sempre parte e devedor de uma tradição. ([4])
Por isso mesmo a proposta gadameriana é um contraposto ao subjetivismo moderno, que admite um isolamento entre sujeito-objeto. Assim, podemos afirmar que em Gadamer, o diálogo é o que constitui o sentido, que não é definitivo, mas sempre dependente de uma nova interpretação. Não há, portanto, um “sentido em si”, um mundo em si, ou uma coisa em si, pois os sentidos e a própria realidade acontecem de acordo com condições históricas e linguísticas que lhes são constitutivos, por isto mesmo “o ser que pode ser compreendido é linguagem.” (GADAMER, 2012, p. 612)
Até aqui pudemos obter um horizonte de contraposição entre a Hermenêutica filosófica e o relativismo do falante. Pois de acordo com a primeira perspectiva, não há uma separação entre significado e condições de verdade ou condições de compreensão, que é um ponto central na argumentação do relativismo do falante.
Além desta primeira implicação, podemos também obter uma conclusão oriunda da hermenêutica de Gadamer que abrange, em uma primeira aproximação, tanto o relativismo do agente quanto o relativismo do falante.
Na segunda parte da obra Gadamer se dedica a reabilitar os preconceitos como condicionantes da compreensão. Esse movimento é diametralmente oposto ao iluminismo (Aufklarung), que propugna pela necessidade de extirpar os preconceitos na busca pelo conhecimento, pois estes poderiam viciar o resultado de qualquer investigação. Este movimento de negação de condicionantes históricas também tem cunho político, pois a emancipação revolucionária consiste justamente em negar a validade do antigo regime.
Pois bem, Gadamer pretende então reabilitar os preconceitos, não somente para constatar que eles sempre ocorrem em qualquer compreensão, mas para evidenciar que os preconceitos são condição de inteligibilidade, ou seja, também são condicionantes da compreensão.Contudo, Gadamer não estabelece uma arbitrariedade de preconceitos, ou de pré-compreensões, como se não houvesse uma diferença de legitimidade e correção entre os diversos tipos de preconceitos. No processo compreensivo há um movimento de correção de preconceitos inicialmente equivocados, que são postos à prova em face do texto ou caso concreto compreendido.
Em outros termos, existem relações dialéticas entre o “meu” inautêntico e o “meu” autêntico, quer dizer, o preconceito implícito que está prestes a se denunciar como preconceito; ou ainda entre o “meu” que está prestes a se tornar autêntico, graças à nova informação hermenêutica que o provocou, e a própria informação hermenêutica, quer dizer, a informação que está prestes a ingressar em meu sistema de opiniões e convicções, prestes a se tornar “minha”; (GADAMER, 2003, p. 70)
A obtenção de um horizonte de interpretação correto é o resultado de uma interpretação/compreensão que respeita as condicionantes da compreensão[5], ou seja, em Gadamer há de fato uma diferença de grau e de legitimidade em relação aos preconceitos, e neste ponto podemos tomar conclusões diretamente relacionadas com o relativismo moral metaético, pois há aqui de fato uma posição privilegiada na qual é possível aferir que uma conjuntura é moralmente correta enquanto outra é equivocada. Esta posição privilegiada é alcançada hermeneuticamente. De acordo com isso, e em relação ao relativismo do falante, podemos perceber que, mesmo que o agente pratique uma conduta respeitando sua conjuntura, esta conjuntura e esta decisão podem ser reputadas como equivocadas moralmente a partir de um ponto de vista hermenêutico. E em relação ao relativismo do falante, é possível perceber, que por este mesmo ponto de vista que há a possibilidade de desacordos morais, e que neste desacordo uma das partes esteja correta e a outra equivocada.
De acordo com a hermenêutica filosófica, os horizontes de conjunturas diversas são abertos, justamente permitindo que haja o diálogo para que possa ser obtido um horizonte de sentidos privilegiado, que respeita todas as condicionantes da compreensão. Como assinala Rui Sampaio da Silva a este respeito:
O modelo de fusão de horizontes conduz-nos, assim, para além do objectivismo e do relativismo. Conduz-nos para além do objectivismo, porque chama a atenção para o facto de a inteligibilidade dos textos, obras de arte ou acções depender de um determinado contexto ou horizonte de compreensão. Por outro lado, o referido modelo evita o relativismo ao defender a possibilidade de comunicação e da discussão racional entre os diferentes horizontes. (DA SILVA, 2008, p. 295)
Portanto, na Hermenêutica filosófica há, de fato, uma importância crucial do contexto no processo de compreensão, mas há sempre algo de comum a despeito da diversidade de horizontes de sentido, que é a razão humana. A diversidade de contextos ou conjunturas não significa que todas têm a mesma legitimidade. Quem está inserido em uma conjuntura não deve necessariamente aceita-la de forma acrítica. É a partir da compreensão/interpretação que é verificado ou obtido um horizonte de sentido ou juízo moral qualitativamente superior a outros. Por todos esses motivos podemos concluir, ao menos de maneira provisória, que há uma incompatibilidade dos pressupostos da hermenêutica filosófica com as espécies e argumentos do relativismo moral demonstradas no presente trabalho.