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O papel da sabedoria prática na perspectiva ética e hermenêutica de Paul Ricoeur

The role of phronesis in the ethical and hermeneutical perspective of Paul Ricoeur

Agenda 07/08/2018 às 11:55

O presente artigo tem como objetivo desenvolver alguns traços centrais da visada ética e hermenêutica de Paul Ricoeur tendo em perspectiva o papel da sabedoria prática em seu projeto de construção de uma ética pautada na identidade narrativa.

Introdução

Dentro de todo o percurso do nono estudo de sua obra magna[1], é constante a preocupação de Ricoeur em desenvolver um novo papel a ser desempenhado pela phronesis (sabedoria prática) aristotélica, tendo em perspectiva os conceitos de Hegel e de Kant e em coerência com seu projeto ético como um todo. Portanto, optamos por destacar estes três filósofos: Hegel, Kant e Aristóteles, como os eminentes campos de estudo de Ricoeur em seu tratado sobre a sabedoria prática.

Serão demonstrados alguns desses aspectos do desenvolvimento que Ricoeur faz da sabedoria prática, sendo necessária uma explicação inicial das características gerais da perspectiva ética de Ricoeur, somente assim sendo possível discorrer acerca do papel a ser desempenhado pela sabedoria trágica para o consequente desenvolvimento da sabedoria prática.


A perspectiva ética de Paul Ricoeur

Ricoeur tem como objetivo constante em sua visada ética os dois alicerces da ética normativa ocidental: a teleologia aristotélica e a deontologia Kantiana. A primeira é tradicionalmente concebida como o reino dos fins, da busca do bem como finalidade da ação humana; e a segunda se refere ao reino do normativo, do obrigatório, do dever moral como correspondência à lei universal, abstraída racionalmente.

O bem como finalidade, que se expressa em decisões, se direciona a realização plena de uma vida boa, de um equilíbrio interior que encontra harmonia com o próprio cosmos, ou seja, o que se busca é uma eudaimonia. Para Ricoeur esta perspectiva de vida boa, que se expressa no ideal eudaimônico da ética aristotélica, corresponde à estima de si. Necessário destacar que a estima de si, como componente do primeiro passo da pequena ética de Ricoeur, não é a mesma coisa que estima a “mim”. Esta operação linguística que Ricoeur realiza com a supressão do sujeito em 1ª pessoa tem como alvo uma perspectiva solipsista do sujeito da imputação moral, oriunda da tradição Kantiana e cartesiana. Por isso que Ricoeur fala do “si” ao invés do “eu”. O si se põe como consciente de si mesmo como agente da imputação moral. Não é, portanto, uma identidade solitária e egoística que está em questão no projeto de Ricoeur, mas uma identidade narrativa.

Sujeito é um quem responsável pelos seus atos e que, necessariamente, deve se autoconhecer. Mas ele não se dá imediatamente, mas medido pela reflexão. É, pois, a reflexão que se sobrepõe à imediatidade do sujeito expresso pela 1ª pessoa. Para este sujeito não basta dizer eu. É importante que se auto-examine para se conhecer um eu específico, individualizado, sem repetição. Quer conhecer o que reconhece como eu, visto que para além da condição de sujeito cognoscente há um ser em si. Instaura-se a contradição dialética entre o eu que é e o eu que se coloca como estranho, diferente. O eu se põe como leitor de si para, na síntese, se tornar consciente de si (

A estima de si corresponde, portanto, a esse agir refletido de si mesmo, e, portanto, intencionalmente realizado de um sujeito capaz da imputação moral. A estima de si compõe a ipseidade, que é um campo da identidade não egoística, mas que é refletida e autoconsciente.

O segundo passo da perspectiva ética de Ricoeur se dá com a solicitude, que é o terreno da alteridade, da estima do outro. O momento da solicitude é o da dialética entre um si refletido em seu agir e, um outro, sem o qual o próprio caráter reflexivo do si quedaria por incompleto. Reconhecer um “tu”, ou um outro, seria o momento essencial para a mediação da própria identidade ipse como tal. Assim, somente reconhecendo o caráter de insubstituível do outro, ou seja, estimando o outro como um “outro eu”, poder-se-ia realizar o sentido próprio da estima de si. Neste momento de sua ética Ricoeur se socorre novamente da ética aristotélica, mormente por uma leitura da noção de amizade exposta em Ética a Nicômaco.

E ao relacionar a estima de si à estima do outro, chega à noção de “similitude”, a qual define como “o fruto da troca entre estima de si e solicitude para os outros”. Essa troca autoriza dizer que não posso me estimar eu mesmo sem estimar outrem como eu mesmo (PINTO, 2012, p.55).

O terceiro componente da visada ética de Ricoeur se refere ao campo das instituições justas, como o espaço de mediação indispensável à constituição do viver-junto. Nesse ponto Ricoeur estabelece a insuficiência de uma identidade reflexiva em comunhão com os outros, ou seja, reconhece que somente o espectro da alteridade não é suficiente para que se assegure o sentido pleno de justiça, que requer a mediação de um terceiro neutro, apto a mediar os conflitos. Este terceiro se localiza acima do si e dos outros tendo a função de adicionar racionalidade aos conteúdos e conflitos inerentes à dinâmica social.

E essas instituições levam em conta uma “pluralidade” que as relações interpessoais não levam, isto é, estão envolvidas aqui pessoas que não se apresentam em seus rostos e que não podem fazer suas vozes serem escutadas, uma vez que o que está em jogo é o “cada um”, de modo que seja então necessário um terceiro, que possa mediar essa distribuição, seja a distribuição de tarefas, de punições ou de direitos

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Essa estrutura tríplice aqui apresentada reflete a visada ética de Ricoeur, que é definida por ele como o desejo de vida boa com e para os outros em instituições justas. Nesse sentido, a teleologia aristotélica necessita passar pelo crivo formal da deontologia Kantiana. É um juízo de atestação que se expressa na construção da identidade narrativa, que no campo da ética tem o condão de responder à pergunta: quem é o sujeito da imputação moral?


O papel da phronesis na perspectiva ética de Paul Ricoeur

Para a construção da identidade narrativa da vida e a consequente unidade desta identidade, com o objetivo de responder à pergunta pelo “quem” da imputação moral, também deve ser levado em conta o papel do imprevisível na construção desta identidade. Nesse sentido, mesmo uma vida planejada e guiada para os fins benéficos; mesmo orientada por um senso de alteridade e de justiça em instituições justas, ainda há, mesmo assim, o risco do trágico. Portanto Ricoeur se socorre das tragédias gregas, sobretudo Antígona de Sófocles, para demonstrar esse aspecto da tragicidade da ação e da vida como um todo.

É a tragicidade da ação, eternamente ilustrada por Antígona de Sófocles, que reintegra o formalismo moral no centro nevrálgico da ética. O conflito é sempre o aguilhão desse recurso, nas três regiões trilhadas já duas vezes: o si universal, a pluralidade de pessoas e o ambiente institucional.

A sabedoria trágica não teria um sentido propriamente filosófico, no sentido de proporcionar fundamentos racionais para a ação, mas teria uma função de convite para que a ação possa ser reorientada em uma dialética entre ética e moral.

Tal dialética teria o objetivo de reorientar tanto os fins quanto os deveres, reciprocamente, diante de situações-limite. Conflitos aparentemente insolúveis que a realidade social apresenta. O exemplo do trágico serve de exemplo destes percalços que ocorrem em qualquer narrativa.

Ricoeur chama atenção para a tragicidade da ação quando demonstra os limites da Sittlichkeit hegeliana, percebendo no conceito de hegel uma carência de uma consideração sobre a prática política, mormente de um juízo político em situação. Ricoeur percebe na phronesis, um aspecto indispensável para pensar esses conflitos em situação que inevitavelmente ocorrem em qualquer ambiente democrático, no qual há sempre uma pluralidade de bens em disputa, e mais que isso, uma variabilidade quanto ao valor conferível a tais bens, que pode ser relativa ao espaço e ao tempo histórico de determinada comunidade. Assim, “a deliberação e a tomada de posição relativa a esses conflitos ordinários constituem a primeira oportunidade que nos é oferecida de fazer a Sittlichkeit hegeliana infletir em direção à phronesis aristotélica.

A phronesis em Ricoeur deve ser exercida pelos detentores de poder de decisão, que podem ser um só, mas podem ser uma célula de conselho, ou seja, uma pluralidade de pessoas detentoras de um melhor juízo em situação, sempre conclamado a atuar em sociedades democráticas.

Isto ocorre porque a democracia é o regime que institucionaliza o conflito, e embora regida por leis gerais e abstratas, sempre requer decisões que corrigem o sentido da previsão legal à infinidade de situações concretas conflitivas não previstas. É justamente a decisão para corrigir a lei com equidade a oportunidade de aparecimento da phronesis, que Ricoeur atualiza para o ambiente democrático moderno, perpassado por conflitos que se dão no âmbito institucional.

Nesse sentido, a phronesis deve passar pelo crivo do impositivo, do ambiente formal da institucionalidade. Ao mesmo tempo, as máximas kantianas, embora orientadas para uma moral universal, devem ser repensadas para reconhecer os conflitos em situações singulares, ouvindo assim a phronesis.

Essa nova indagação só é formulada no segundo trajeto, aquele que Kant não considerou, o trajeto da aplicação a situações singulares, em que outrem se ergue em sua singularidade insubstituível. É nesse segundo trajeto que pode ganhar corpo a sugestão, feita no estudo anterior, de que a consideração das pessoas como fins em si mesmas introduz um fator novo, potencialmente discordante, em relação à ideia de humanidade, que se limita a prolongar a universalidade na pluralidade em detrimento da alteridade (RICOEUR, 2014, p.306).

O exemplo prático apresentado por Ricoeur para evidenciar um choque entre princípios morais, mormente um choque entre teleologia e deontologia, é o dos pacientes terminais e o correspondente dever médico de prestar ou não informações a respeito do diagnóstico de uma doença terminal. É um dilema porque, por um lado, se o paciente for informado de sua situação, o seu estado de saúde pode se agravar. E por outro lado, o paciente tem o direito de saber acerca de sua própria situação. Ricoeur entende que há casos, embora menos numerosos, nos quais a informação dada pode ser uma oportunidade para o paciente aceitar a morte iminente, sem que isso signifique uma situação de agravamento de sua situação clínica. Ou seja, é a situação trágica, representada por tais hard cases, a oportunidade de ressignificação por meio de uma sabedoria prática, tanto dos valores queridos e perseguidos quanto o dever moral imposto.

No caso em tela, da ressignificação do bem estar em face da morte eminente por um lado e da ressignificação do dever moral de falar a verdade ou não por outro.  A phronesis é, portanto, um juízo de ressignificação recíproca entre os fins e o dever.

A sabedoria prática consiste, no caso, em inventar os comportamentos justos apropriados à singularidade dos casos. Mas nem por isso ela está à mercê da arbitrariedade. O que a sabedoria prática mais precisa nesses casos ambíguos é de uma mediação sobre a relação entre felicidade e sofrimento (

Em Ricoeur, a mediação da sabedoria prática é necessária em casos difíceis. Esse saber, contudo, não é garantia da decisão acertada, é mais uma atitude de aconselhar de forma sensata. Dar conselhos é uma atitude típica do amigo, e Ricoeur relê a amizade aristotélica como solicitude. Portanto, a sabedoria prática em Ricoeur é um juízo moral em situação que tem o papel de inventar condutas que visem satisfatoriamente fins justos, e que não traiam por completo o dever formal.

Importante ressaltar que esta sabedoria prática, que se originou do risco e da interpelação do trágico, não é garantia de fundamento último. Há sempre um risco posterior, há sempre um caráter provisório da decisão, mesmo bem deliberada. Está assentado assim o reconhecimento da falibilidade do phronimos.

Limito-me a dizer que é precisamente a renúncia à ideia de fundamentação última (que o hermeneuta confirmará com sua insistência na finitude da compreensão) que convida a seguir o trajeto inverso ao da justificação (RICOEUR, 2014, p.330).

Com isso, podemos saber que a phronesis em Ricoeur se constitui como um convite à reflexão em conjunto, à construção compartilhada de um juízo moral em situação para situações complexas de choques entre valores que não cessam de ocorrer.Nesse sentido é uma perspectiva humilde, porque admite a falibilidade, mesmo na boa deliberação, mas continua a convidar todos a uma nova reforma, em um processo incessante de reconstrução dos fins e dos deveres humanos no reino das instituições.


Considerações finais

A phronesis em Ricoeur não é uma simples adaptação de um conceito tradicional na filosofia moral ocidental, mas uma proposta de desenvolver o conceito em consonância com aspectos inerentes aos conflitos morais que não cessam de ocorrer em sociedades plurais. Nesse sentido, a sabedoria prática em Ricoeur tem um aspecto crítico e reflexivo, e ao mesmo tempo possibilita a constatação de que mesmo uma decisão crítica e reflexiva pode falhar. Mesmo assim, uma consciência moral consciente de sua falibilidade também sabe que é necessária. Essa necessidade advém do risco sempre presente de decisões arbitrárias, totalitárias, despóticas, e, portanto, injustas.

Ricoeur faz bem em salientar que o phronimos não é necessariamente um individuo só. A formulação de um juízo que readapte finalidades diante de deveres é um desafio à razão prática humana, ao juízo moral situado, e é muito mais do que o simples refúgio ao cálculo utilitarista. Portanto, o phronimos, que pode ser mais de um, é um agente crucial para qualquer formulação de sistema ético que leve a possibilidade do conflito e do trágico a sério.


REFERÊNCIAS 994705009

LEONHARDT, Ruth Rieth. Pessoalidade e alteridade em Paul Ricoeur. , v. 5, n. 2, p. 43-57, 2004.

ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Trad. Cássio M. Fonseca. São Paulo: Atena Editora, 1957.

PINTO, Larissa Nóbrega de Araújo. A tríplice constituição da perspectiva ética de Paul Ricoeur 2012.

RICOEUR, Paul. O si-mesmo como outro. Tradução: Ivone C. Benedetti. São Paulo. Martins Fontes, 2014.


Nota

  1. RICOEUR, Paul. O si-mesmo como outro. Tradução: Ivone C. Benedetti. São Paulo. Martins Fontes, 2014.

Sobre o autor
Tomás Jobin Coutinho Lopes

Mestrando em Filosofia pela Universidade Federal do Piauí - UFPI; Graduado em Direito pela Universidade Estadual do Piauí - UESPI.

Informações sobre o texto

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