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É preciso mudar a cultura do boletim de ocorrência

Agenda 12/10/2018 às 14:10

Examina-se a necessidade de valorização dos instrumentos de investigação da polícia judiciária, em detrimento do preenchimento de formulários e outros meios de recepção da notícia crime.

É sabido que um dos grandes problemas que afligem as polícias judiciárias brasileiras são as atuais configurações dos plantões policiais, onde, em prejuízo ao serviço de investigação – atribuição constitucional da polícia civil –, são alocados, para registrar boletins e prisões, recursos humanos fundamentais para o esclarecimento da autoria e da materialidade das infrações penais.

A cultura do boletim de ocorrência, pela qual o cidadão, imbuído em erro, acredita que toda e qualquer demanda é resolvida com a lavratura desse singelo registro, é responsável pela manutenção diuturna de centenas de policiais civis nos balcões das Delegacias e Distritos, sendo que a recepção dessas notícias, diante das modernidades hoje existentes, poderia ser otimizada e simplificada, priorizando-se o recurso informático ao invés do humano, este sim necessário para atividades operacionais de campo, e não de mero atendimento[1].

Vê-se, não raro, que a grata parte do efetivo policial acaba por não realizar a sua atividade-fim (investigar), eis que, ocupada com tarefas secundárias, vê instituições outras se apropriarem das suas atribuições primárias – obviamente as que trazem projeção –, passando ao povo a falsa ideia de inércia.

Urge então que as polícias judiciárias, motu proprio, enfrentem a questão de modo a alterar esse cenário, elencando prioridades e privilegiando suas funções originais para otimizar recursos, sem prejuízo de garantir os direitos constitucionais das pessoas presas.

O mote seria alterar esse sistema, valendo-se da tecnologia em favor do Estado, facilitando e acelerando o acesso do público aos serviços da Polícia e alocando o policial para a atividade de investigação.

Um dos grandes passos nesse sentido foi o da criação das “Centrais de Garantias” em alguns Estados, alterando totalmente o método de recepção de pessoas presas, concentrando recursos e agilizando procedimentos.

Em nosso meio, essa mesma Central de Garantias teria a finalidade de substituir os atuais plantões policiais permanentes, diminuindo-os e distribuindo-os por regiões maiores, a fim de centralizar recursos e atividades e liberar o contingente geral para o trabalho de campo, para com isso otimizarmos resultados. Assim, onde hoje temos dez plantões para o registro de prisões, no futuro teríamos apenas um, ficando as demais unidades encarregadas tão somente de investigar as infrações penais.

Tomemos como exemplo uma região metropolitana ou até mesmo intermunicipal, com oito Distritos Policiais (poderiam ser mais ou menos unidades, conforme o movimento/mês) que, de maneira coletiva, trabalham de forma diuturna, todos com equipes exclusivas de plantão para o atendimento da demanda da polícia ostensiva. Seriam, assim, oito equipes de plantão por turno, todas com Delegados, Escrivães, Investigadores e demais agentes. E se considerarmos os turnos subsequentes, esse número, por Distrito, quadruplica. Em regra, o registro de boletins de ocorrência, nesse modelo, costuma ser priorizado em detrimento da investigação.

E como isso poderia ser alterado? No âmbito dessa região hipotética, criar-se-ia uma única Central de Garantias – de “garantias constitucionais” – para atender as circunscrições dos oito Distritos Policiais de uma só vez. Ela passaria a registrar, vinte e quatro horas por dia, todas as ocorrências envolvendo pessoas presas (autos de prisão, termos circunstanciados e capturas e recapturas), desonerando, assim, o efetivo dos demais Distritos para a atividade de investigação e registros de ocorrências de somenos, priorizando-se a Delegacia Eletrônica, os totens de autoatendimento e, num segundo momento, criando-se aplicativos para o registro e acompanhamento telemático de ocorrências, seja pelo computador, seja pelo telefone celular ou pelo tablet.

Assim, ao invés de termos oito Distritos Policiais atendendo toda a demanda da polícia ostensiva (i.e., sendo o “cartório” dela), teríamos apenas um, reforçado, auferindo a polícia judiciária, de imediato, outras sete, apenas para investigar. Isso poderia ocorrer no âmbito de uma cidade ou em polos de cidades circunvizinhas, mormente as menores e mais carentes. No caso de municípios pequenos, ao invés de termos um plantão permanente em cada cidade, teríamos uma Central de Garantias para abranger as três, nos moldes do Poder Judiciário.

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E a recepção ao público não seria prejudicada? Pelo contrário. Para o atendimento ao cidadão, cujas ocorrências não demandam dificuldade para registro, seriam mantidos efetivos menores nos Distritos, não necessariamente formados por Escrivães, os quais passariam apenas a secretariar os inquéritos policiais. E isso seria possível graças ao fato do boletim de ocorrência não ser um documento privativo do Escrivão, pois qualquer servidor sob supervisão mediata da autoridade policial pode elaborá-lo, ao passo que os autos de prisão e os termos circunstanciados – os quais tomam um tempo imenso no plantão e freiam o atendimento ao público –, por não mais serem registrados nesses mesmos Distritos, poupariam esses profissionais de escrivania apenas para a lida com o inquérito policial, valorizando-os sobremaneira.

Nessa toada, a grata parte dos Escrivães outrora destacados para os demais plantões (parte inicialmente serviria de reforço para compor o efetivo da Central) seriam automaticamente reaproveitados em funções cartorárias em suas próprias unidades, facilitando o trâmite dos inquéritos e auxiliando a autoridade policial na consecução do mister da polícia judiciária, que é o de investigar e esclarecer delitos.

A Central de Garantias também tem um papel institucional, pois além da maior agilidade no registro das prisões (o que agradaria a polícia ostensiva), ela otimizaria o acesso à defesa, indo de encontro com a nova tendência que assegura esse garantismo na fase policial, onde o preso, a partir do indiciamento, torna-se, nos autos, um sujeito dotado de direitos e deveres.

No futuro, as Centrais de Garantias poderiam contar inclusive com espaço apropriado para outros Poderes, a fim de que as audiências de custódia fossem nelas realizadas, evitando-se assim a movimentação de presos entre Delegacias, Distritos e Fóruns. Isso diminuiria o transito dos autuados e traria mais segurança as regiões circunvizinhas aos demais Distritos Policiais. Ademais, postos de polícia técnica e médico-legal poderiam ter lugar nesse novo serviço, facilitando o acesso não apenas dos presos, mas dos demais partícipes que necessitam dessas atividades, mormente para a execução de perícias toxicológicas e exames de corpo de delito.

Com isso o boletim de ocorrência voltaria a ter a sua função primitiva – formalizar a recepção da notícia crime – e a polícia judiciária, agora mais focada na investigação, teria melhores de condições de investigar não apenas os delitos comuns, mas os de cunho organizado, hoje enfrentados com mais ênfase pelas Delegacias Especializadas, as quais não contam com atendimento ao público tal qual os plantões.

O efetivo das Centrais de Garantias seria priorizado com policiais civis mais jovens e em aspirantado (egressos da Academia de Polícia), servindo ela como escola para a atividade persecutória a ser futuramente por eles desenvolvidas nos Distritos Policiais e nas Especializadas. As Centrais de Garantias, por assim dizer, seriam a porta de entrada dos novos policiais civis, garantindo a evolução funcional e a oxigenação necessárias para o fortalecimento da instituição.

A título de exemplo, as atribuições das novas Centrais de Garantias, basicamente, seriam as de atender, vinte e quatro horas por dia:

a) Toda ocorrência envolvendo pessoa sob a qual recaia a suspeita de prisão;

b) Ocorrências envolvendo infrações penais me menor potencial ofensivo em que todas as partes estejam presentes;

c) Os flagrantes de atos infracionais;

d) As capturas de procurados e as recapturas de fugitivos.

Isso contribuiria para o transito de pessoas presas fosse centralizado, poupando a população comum que vai a um Distrito desse incomodo contato com criminosos de toda sorte, isso sem falar no ganho de tempo para o registro de ocorrências, que seria praticamente imediato em razão da desoneração imposta.

Em poucas linhas, a estrutura seria ser dotada de:

a) Sala de audiências para o registro das prisões (seguindo-se a sistemática processual penal);

b) Assentos reservados a defesa dos acusados, quando presentes;

c) Salas de triagem para a custódia provisória dos conduzidos sob as quais recaia suspeita de prisão/apreensão;

d) Celas pós-flagrante distintas para aguardo de remessa do preso/apreendido ao sistema carcerário/vara da infância e juventude;

e) Salas de reconhecimento apropriadas;

f) Dependências de parlamento para advogados;

g) Corpo auxiliar (equipe de aferição) para a realização de diligências de campo e atendimento de local de crime;

h) Corpo técnico para a realização de perícias;

i) Atendentes terceirizados e/ou estagiários para a recepção, profissionalizando o serviço.

Os Distritos Policiais liberados desse tipo de atendimento passariam a registrar apenas ocorrências convencionais, assim entendidas como aquelas trazidas pela própria parte ou pela polícia ostensiva (veículo localizado, comunicação de óbito, morte natural etc), desde que não envolva pessoa conduzida. Em isso ocorrendo, todo aquele pessoal agora focaria esforços nos pedidos de prisão provisória; de busca e apreensão domiciliar; de escuta telefônica etc, aumentando o índice de esclarecimentos sem comprometer o atendimento ao público.

Em suma, o plano visaria dar nova roupagem a uma sistemática de atendimento já superada, pois um novo nome e uma nova forma trazem expectativas de um sistema diferente e readequado, e dá a ideia de fortalecimento da Instituição com uma Central que não apenas executaria ações de polícia judiciária, mas analisaria garantias individuais das pessoas presas, fortalecendo o papel da Polícia Civil e do Delegado de Polícia diante das tendências normativas de preservação da dignidade humana.

Quanto ao foco, ele substituiria o atual sistema onde os Distritos dividem funções similares, as quais podem ser exercidas por uma Central unificada e otimizada e, além disso, liberaria os demais Distritos para focar na atividade de investigação, criando-se novas metas e fiscalizando resultados de produtividade no campo da polícia judiciária, estimulando os policiais para a execução exclusiva da sua atividade-fim.

Ademais, e em conclusão:

a) Criar-se-ia um centro exclusivo de recepção de prisões vinte e quatro horas e sete dias por semana;

b) Seria facilitado o acesso das Delegacias Especializadas aos custodiados/presos em flagrante em caso de necessidade de complementação/continuidade de investigações que demandem apoio e assessoramento (crimes de carga, apreensões de grandes quantidades de droga, prisão de quadrilhas etc);

c) O atendimento das prisões-captura efetuadas polícia ostensiva seria centralizado num único local estruturado para receber ocorrências desse porte, preservando-se acima de tudo o cidadão;

d) O trânsito de custodiados e presos seria direcionado para um único ponto da cidade e, com isso, seria evitado que o cidadão que procura uma Delegacia para registrar um fato, tenha contato (físico ou visual) com pessoas suspeitas da prática de crimes enquanto aguarda o atendimento;

e) O registro de termos circunstanciados, recapturas de fugitivos e prisões em flagrante seria agilizado, além proporcionar um retorno célere das guarnições ao patrulhamento e a segurança no deslocamento de presos para as audiências de custódia seria centralizado e teria saídas apenas de um local, evitando-se com isso a circulação desmedida de presos vindos de várias unidades da cidade, mas doravante, apenas de uma.

Quanto aos objetivos:

a) Teríamos um efetivo especializado para atendimento exclusivo de flagrantes (autoridade policial, escrivães, atendentes e carcereiros), adotando-se paulatinamente o uso de vestimentas padronizadas e tendentes a passar a imagem de organização e hierarquia e;

b) Formalização de um “Corpo Auxiliar de Polícia Judiciária”, composto por equipes diuturnas de dois homens para assistir exclusivamente a autoridade policial da CGPJ em ocorrências que demandem diligências emergenciais externas e complementares, dentre aquelas que lhes forem apresentadas e a formação de efetivo próprio apto a realizar exames de constatação provisória de substâncias entorpecentes através de cursos, agilizando e facilitando o registro de ocorrências desse jaez.

O resultado esperado é:

a) Otimização e o controle de qualidade do atendimento a polícia ostensiva;

b) A viabilidade do cidadão em fazer uso de Unidades de atendimento imediato, sem a possibilidade de interrupção em razão de prisões em flagrante ou ocorrências complexas e;

c) A melhora de qualidade nos trabalhos de polícia judiciária dos demais Distritos Policiais, doravante liberados apenas para os trabalhos de investigação e o acesso irrestrito, diuturno e imediato da população ao sistema RDO, operado por policial de plantão exclusivamente para tanto.

O que a Central de garantias visa, além de assegurar o respeito às leis e aos direitos fundamentais, é, enfim, erguer a bandeira do inquérito policial em detrimento da do boletim de ocorrência, restituindo-o a condição de formulário não privativo da carreira da Escrivão de Polícia, e não em salvo-conduto contingencial à parte.


Notas

[1] Sobre o assunto, vide o nosso artigo “Comunicação Simplificada de Fato: Uma Alternativa ao Registro Não Criminal de Preservação de Direitos”, in https://jus.com.br/artigos/63747/comunicacao-simplificada-de-fato-uma-alternativa-ao-registro-nao-criminal-de-preservacao-de-direitos.

Sobre o autor
Marcelo de Lima Lessa

Formado em Direito pela Faculdade Católica de Direito de Santos (1994). Delegado de Polícia no Estado de São Paulo (1996), professor concursado de “Gerenciamento de Crises” da Academia de Polícia “Dr. Coriolano Nogueira Cobra”. Ex-Escrivão de Polícia. Articulista nas áreas jurídica e de segurança pública. Graduado em "Criminal Intelligence" pelo corpo de instrução do Miami Dade Police Department, em "High Risk Police Patrol", pela Tactical Explosive Entry School, em "Controle e Resolução de Conflitos e Situações de Crise com Reféns" pelo Ministério da Justiça, em "Gerenciamento de Crises e Negociação de Reféns" pelo grupo de respostas a incidentes críticos do FBI - Federal Bureau of Investigation e em "Gerenciamento de Crises", "Uso Diferenciado da Força", "Técnicas e Tecnologias Não Letais de Atuação Policial" e "Aspectos Jurídicos da Abordagem Policial", pela Secretaria Nacional de Segurança Pública. Atuou no Grupo de Operações Especiais - GOE, no Grupo Especial de Resgate - GER e no Grupo Armado de Repressão a Roubos - GARRA, todos da Polícia Civil do Estado de São Paulo.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LESSA, Marcelo Lima. É preciso mudar a cultura do boletim de ocorrência. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 23, n. 5581, 12 out. 2018. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/68134. Acesso em: 18 dez. 2024.

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