INTRODUÇÃO
A Lei 4.357, de 16 de julho de 1964, dispõe sobre a emissão de Obrigações do Tesouro Nacional, altera a legislação sobre o imposto de renda e dá outras providências. Acrescenta, ainda, ao artigo 168 do Código Penal, como fato delituoso, o não-recolhimento, dentro do prazo de 90 dias, de importâncias referentes ao imposto de renda na fonte, bem como de outros tributos descritos no artigo 11. Também prevê a hipótese de extinção desse delito.
Trata este diploma legal de matéria tributária, penal tributária e financeira. O artigo 32, não obstante, sorrateiramente, imiscui-se em universo estranho, que lhe não é próprio, cuidando de assunto societário e ingerindo-se em sua vida interna.
A Lei 11.051, de 29 de dezembro de 2004, dispõe sobre assunto de natureza tributária e, de contrabando, o artigo 17 modifica o citado artigo 32 da Lei 4.357. Portanto, também, esse diploma legal interfere em seara imprópria e proibida, pois este não é seu objeto.
Violação do Direito
No Brasil, perdura o péssimo hábito de violar-se não só a Constituição, mas também a legislação infraconstitucional, num crescendo cada vez mais assustador. Não é preciso fazer-se demorada pesquisa para comprovação desta premissa.
Basta atentar-se para a enxurrada de medidas provisórias, desde seu nascedouro, nos idos de 1988, as quais não obedecem aos pressupostos constitucionais para sua edição, como também para as emendas constitucionais, que, previstas para modificações pontuais e circunstanciais (José Afonso da Silva e farta doutrina), atingem-lhe as entranhas, substituindo-se o legislador ao constituinte originário e até remexendo, inconstitucionalmente, em normas que nem este poderia sequer burlar, porque estão gravadas na consciência do povo e fazem parte do direito natural, inseridas entre os direitos e garantias fundamentais.
É lamentável a banalização de institutos de suma importância, jogados no lixo, tornando-os inúteis quando, na verdade, se bem utilizados, seriam instrumentos notáveis, necessários e de grande valia.
Atente-se para o § 4º do artigo 60 e para o artigo 62 e ter-se-á delineado o quadro das proibições para o uso das emendas à Constituição e das medidas provisórias.
Pois bem, uma vez mais, o legislador ordinário passa ao largo da prerrogativa maior e inafastável de excluir, ab initio, do mundo jurídico, atos que colidem com a Carta maior.
A MP 219, o PLCONV 63, as Leis 4.357 e 11.051
A medida provisória 219/2004, editada e convertida no projeto de lei de conversão 63/2004, dispôs sobre matéria tributária e, de repente, surge a lei em que se transformou o referido projeto de lei de conversão, contendo matéria bastarda, diversa e não pertinente (01).
Ora, a Resolução 1/2002, do Congresso Nacional, que regulamenta a apreciação das medidas provisórias, seguindo as diretrizes da Lei Complementar 95/98 (02), proíbe a apresentação de emendas que versem sobre matéria estranha e não pertinente. E foi o que, desafortunadamente, aconteceu.
A Lei 11.051 cit. (artigo 17) "enriqueceu-se ilicitamente" de matéria societária que lhe não diz respeito, para alterar o artigo 32 da Lei 4.357, o qual versa sobre a proibição de distribuição ou pagamento de bonificações ou remunerações a diretores e demais membros da alta administração superior de pessoas jurídicas em débito para com a União.
A restrição imposta (proibição de distribuição ou pagamento...), pela lei derrogada e pela atual, é acidente – não é matéria tributária – e não transmuda a essência da lei que rege as sociedades e as pessoas jurídicas e, portanto, não poderia participar da lei tributária.
Também, in casu, não há a caracterização da urgência. Poderia, quando muito, ser relevante e não o é. Entretanto, mesmo que, ad argumentandum, houvesse relevância, não seria o bastante, pois se faz necessário que ambos os requisitos estejam presentes, para a edição da medida provisória, (03) ao contrário do que ocorria com o decreto-lei. Neste caso, era suficiente a existência de um dos pressupostos.
Mais, a citada Lei 11.051 dispõe sobre o desconto de crédito na apuração da Contribuição Social sobre o Lucro Líquido – CLS e da Contribuição para o PIS/Pasep e Cofins não cumuláveis – e tem como fonte a Medida Provisória 219, de 2004, convertida no Projeto de Lei de Conversão 63, de 2004 (04). É matéria essencialmente tributária (direito substantivo e adjetivo) (05).
Entretanto, a lei em causa inseriu em seu bojo questão estranha ao seu objeto específico (como o fizera o projeto de lei de conversão, em face de emenda apresentada), violando flagrantemente a Lei Complementar 95, de 26 de fevereiro de 1998, alterada pela Lei Complementar 107, de 26 de abril de 2001.
Realmente, o artigo 7º desse diploma legal comanda que o primeiro artigo do texto legal indicará o objeto da lei e o âmbito de aplicação, com observância de princípios que não podem ser olvidados, a saber:
1 - cada lei tratará de um único objeto, com exceção das codificações.
2 - a lei não conterá matéria estranha ao seu objeto ou a este não vinculada por afinidade, pertinência ou conexão.
3 - o âmbito de aplicação da lei será estabelecido de forma tão específica quanto o possibilite o conhecimento técnico ou científico da área respectiva.
O citado diploma – Lei 11.051 – legal trata de matéria tributária. Basta examinarem-se todos seus dispositivos, exceto o artigo 17. Esta disposição é, na verdade, um "estranho no ninho" e perde-se no cipoal de normas de que trata a lei. Nada tem a ver com o objeto, nem tem parentesco, afinidade, pertinência ou conexão. É um dispositivo que já nasceu sem vida – natimorto.
Dir-se-á que lei modificada – Lei 4.357 também dispôs, sobre matéria que lhe não era pertinente. Na época, porém, não vigia a citada lei complementar. De qualquer forma, um erro não justifica outro.
Incompatibilidade de lei anterior com a Constituição posterior – Restrições de atividades da sociedade
Não bastasse isso, o artigo 32 da Lei 4.357, por restringir as atividades da sociedade e intervir, interna corporis, não se compatibiliza com a Constituição de 1988 e, portanto, o artigo 17 da Lei 11.051, recém-editada, não poderia, absolutamente, alterar dispositivo que não mais existe (artigo 32 da mencionada lei), porque este não foi recepcionado pela Carta vigente. O citado artigo 32 desapareceu, por completo, já que a Constituição nova apaga integralmente norma que lhe é contrária. É como se não existisse. O nada não pode extinguir ou modificar o nada. Atenta contra a razão e peca, pelo absurdo, norma natimorta desenterrar norma falecida.
A lição de Jorge Miranda adapta-se como uma luva à hipótese, sob comento. Leciona o autor: a nova Constituição produz imediatamente a novação do Direito ordinário anterior, assim que "os princípios gerais de todos os ramos do Direito passam a ser os que constem da Constituição ou os que dela se infiram direta ou indiretamente...; as normas legais e regulamentares vigentes à data da entrada em vigor da nova Constituição têm de ser reinterpretadas e apenas subsistem, se conformes com as suas normas e os seus princípios; as normas anteriores contrárias à Constituição mesmo que, contrárias a normas programáticas não podem subsistir – seja qual for o modo de interpretar o fenômeno da contradição" (06).
É irrelevante o nome que se dê a este instituto: revogação, caducidade ou ineficácia.
E por que o artigo 32 não comunga com o Texto Maior?
A Constituição de 1988 traça os princípios fundamentais, em que se funda a República brasileira, distinguindo-se os valores sociais do trabalho e a livre iniciativa (artigo 1º), consubstanciados no artigo 170, caput, que se traduz em norma de significativa importância, ao descrever que a ordem econômica se alicerça na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, asseguradas a propriedade privada e a livre concorrência.
Por outro lado, o artigo 174 desenha uma regra de ouro, ao estabelecer que o Estado é apenas o agente normativo e regulador da atividade econômica exercendo as funções de fiscalização, incentivo e planejamento. Entretanto, para o setor privado, o planejamento é meramente indicativo e não obrigatório.
O Estado está terminantemente proibido de ingerir-se, na atividade privada, que Ele protege e incentiva. Qualquer deslize traz como conseqüência imediata a invalidade desse ato, seja qual for. Esta é também a opinião abalizada de Celso Bastos (07) e de José Afonso da Silva. (08)
Ora, tanto o artigo 32 da Lei 4.357 quanto o artigo 17 da Lei 11.051, ao limitar a atividade da sociedade e das pessoas e imiscuir-se no seu corpo, colidem com os parâmetros da Carta Magna, e, por via de conseqüência, com os ditames da Lei 6.404, de 15 de dezembro de 1976 – Lei das Sociedades por Ações, e do Código Civil vigente, no que se refere às sociedades.
O artigo 32 supra-referido e também o artigo 17 não têm o condão de restringir os atos de qualquer sociedade, seja aquela por ações, seja a limitada, nos termos do Estatuto Civil. Não pode, por isso mesmo, impedir a sociedade de distribuir, mesmo que em parte, quaisquer bonificações a seus acionistas ou de dar ou atribuir a participação de lucros a seus sócios ou quotistas, assim como a seus diretores e demais membros de órgãos dirigentes, fiscais ou consultivos, ainda que ela esteja em débito não garantido.
Isto porque a estes pertencem as bonificações, os dividendos, a participação de lucros e não mais às sociedades. Pior ainda quando a referida lei proíbe ou restringe o pagamento da remuneração, mesmo que parte dela.
Neste caso, há de se mencionar outra inconstitucionalidade, talvez mais gritante que as demais, se for, apenas ad argumentandum, possível graduar-se a inconstitucionalidade. Ninguém pode ficar privado da remuneração, seja a que título for, inclusive porque atenta contra os direitos humanos. Neste caso, há até o menosprezo de tratados internacionais de que o Brasil participa.
Voltando às sociedades anônimas, estas têm o capital dividido em ações. Fábio Konder Comparato ensina que o acionista é responsável por débito próprio e não da sociedade (09). Salvo as exceções legais, que nada têm a ver com a hipótese em estudo, não há como tolher os acionistas, diretores e demais membros da administração dos conselhos do que, legal e constitucionalmente, lhes cabe, sem restrições.
A constrição da Lei 4.357 simplesmente anularia os fundamentos da Constituição, se, apenas ad argumentandum, pudesse fazê-lo, o que é absurdo, porque fulmina mortalmente a espinha dorsal do sistema brasileiro, que adota o capitalismo social-democrático. Pelo menos, não lhe cabe impor esse constrangimento, enquanto vigente a Constituição, nos moldes em que foi concebida, sem embargo das contínuas modificações que a vêm desfigurando, costurando e remendando, tal qual "Frankenstein", aquele monstrengo criado pela ficção de Mary Shelley, feito de pedaços dos corpos de pessoas mortas.
Compete, outrossim, à assembléia-geral ordinária, deliberar sobre a destinação do lucro líquido do exercício, a distribuição dos dividendos e não ao Estado todo-poderoso.
Mais inconseqüente ainda é o inciso II do §1º do artigo 32, ao impor multa aos diretores e demais membros da administração superior que receberem as importâncias "indevidas", em montante igual ou superior a 50% desses valores.
Pergunta-se: "indevidas" por quê? Por acaso a lei societária ou a assembléia assim classificou? Pode a lei tributária fazê-lo? A resposta incisiva é não, não e não! Os motivos foram expostos, ex abundantia. É o mesmo que punir a criança abandonada, errante na rua, e não o pai que a abandonou!
É hilariante a situação armada, não fosse trágica. Não se contentou o legislador em punir a empresa, com a restrição acima comentada. Teve que também castigar o beneficiário legítimo. É um festival de sandice.
A garantia e o Código Tributário Nacional
Por derradeiro, fixe-se que a pretensa garantia concedida à União e às suas autarquias de Previdência Social, ao impedir que as pessoas jurídicas, enquanto em débito, não garantido, para com estas (falta de recolhimento de imposto, taxa ou contribuição, no prazo legal), distribuam bonificações, propiciem participação de lucros, atenta, não só contra a Constituição, mas também contra o Código Tributário – Lei Complementar. Com efeito, a Lei 4.357 é extremamente evasiva e arbitrária, e viola, notadamente, os artigos 142 e 151. Este último suspende, exaustivamente, a exigibilidade, nos casos que menciona.
Afinal, qual o significado de débito não garantido? Será o decorrente de procedimento ainda em andamento? Será aquele que ainda não foi formalizado? Com certeza, não se trata, ainda, de crédito tributário e, portanto, impossível de convolar núpcias com o artigo 142 do Código Tributário, pois, para este, o crédito tributário somente se perfaz se estiver de acordo com os pressupostos ali previstos. Portanto, por analogia, trata-se de matrimônio impossível, por ausência do noivo ou da noiva.
Artigo 52 da Lei 8.212
O artigo 52 da Lei 8.112, de 24 de julho de 1991 – Lei Orgânica da Seguridade Social – também contém um dispositivo espúrio, que se contrapõe à Lei Magna, ao impedir, à empresa em débito para com a seguridade social, de distribuir bonificação ou dividendo ao acionista, dar ou atribuir cota ou participação nos lucros a sócio-cotista, diretor ou outro membro de órgão dirigente, fiscal ou consultivo, ainda que a título de adiantamento. A realidade é a mesma: limitação à sociedade, nos moldes antes estudados.
Trata-se aqui de disposição visceralmente inconstitucional, porque posterior à Constituição de 88. Entretanto, esta norma sequer pode usufruir da vida que lhe foi emprestada pela lei, pois, como prelecionam os advogados Eduardo Bim e Sara Marques Novis, "é pouco aplicada", isto é, "não vinha sendo aplicada pelas autoridades administrativas..." Infere-se que as razões são óbvias.
É de Carlos Maximiliano o ensinamento de que o Estatuto Máximo é a lei superlativa do país e, contra seu espírito ou sua letra, nenhum ato prevalece. Qualquer resolução, decreto, constituições, sentenças federais sucumbem ante sua força suprema. (10)
Conclusão
O artigo 32 da Lei 4.357, de 1964, não existe no mundo jurídico, visto que não foi recepcionado pela Constituição em vigor.
A Medida Provisória 219, de 2004, convertida no Projeto de Lei de Conversão 63, de 2004 (transformado na Lei 11.051), por tratar de matéria essencialmente tributária (direito substantivo e adjetivo), não poderia jamais receber emenda sobre matéria distinta do seu objeto, nem se pode dizer haver sido premiada com os pressupostos da relevância e da urgência. Sua inconstitucionalidade é patente, incontestável!
O artigo 17 da Lei 11.051, de 2004, "nasceu" morto, por ferir frontalmente a Lei Complementar 95, de 26 de fevereiro de 1998, alterada pela Lei Complementar 107, de 26 de abril de 2001, e, conseqüentemente, não poderia jamais derrogar norma também inexistente. Regra morta não tem fôlego, ademais, para derrogar norma inexistente.
O artigo 52 da Lei 8.212, de 1991, é inconstitucional, por violentar flagrantemente a Constituição, pelas razões expostas.
A União e suas autarquias previdenciárias já dispõem de garantias suficientes que lhes fornecem a Constituição e a legislação tributária. Em conseqüência, aquela pseudogarantia prevista na Lei 4.357 e reforçada pela 11.051 não tem razão de ser e é atentatória contra o Direito.
Notas
1
Lei 11.051/2004 e PLCONV. 63, de 2004.2
Esta lei aplica-se às medidas provisória, consoante determina o parágrafo único do artigo 1º. Cf. nosso Medidas Provisórias – Instrumento de Governabilidade, Editora NDJ, São Paulo, 2003, pp. 77/78.3
Cf. nosso Medidas Provisórias cit., pp. 113 e segs.4
Cf. Mensagem do Presidente da República 973, de 29 de dezembro de 2004. Cf. Consulta no site www.planalto.gov.br em 12 de fevereiro de 2004.5
Cf. EM OO130/2004-MF, de 28 de setembro de 2004. Consulta no site www.planalto.gov.br em 12 de fevereiro de 2004.6
Cf. Manual de Direito Constitucional, Tomo II, 2ª edição revista, Coimbra Editora, Limitada, Portugal, 1988, pp. 238 a 255. Consulte-se também a obra Comentários à Constituição do Brasil, de Celso Bastos e Ives Gandra da Silva Martins, 1º volume, Saraiva, 1988, comentário de Celso Bastos.7
Cf. op. cit., 7º volume, p. 111, in fine.8
Cf. Curso de Direito Constitucional Positivo, 6ª edição, Editora Revista dos Tribunais, 1989, e 19ª edição, Malheiros Editores, 2001.9
Cf. O Poder de Controle na Sociedade Anônima, Editora Revista dos Tribunais, 1976, p. 293.10
Cf. Hermenêutica e Aplicação do Direito, Livraria Freitas Bastos S/A, 6ª edição, 1957, p. 389. Sobre o assunto, consultem-se, entre outros, Ivo Dantas, Instituições de Direito Constitucional Brasileiro, Juruá, 2ª edição, 2001, Ronaldo Poletti, Da Constituição à Constituinte, Forense, 1986, Marcelo Rebelo de Souza, O Valor Jurídico do Acto Inconstitucional, I, Lisboa, 1988.