5 CONCLUSÃO
No Brasil, o controle de constitucionalidade difuso foi inserido no ordenamento jurídico com a Constituição da República de 1891, inspirada no modelo norte-americano. Desde então, esse tipo de controle foi previsto nas constituições brasileiras, mesmo nos governos mais autoritários.
No ano de 1963, sob a égide da Constituição de 1946, foi editada pelo Supremo Tribunal Federal a Súmula 347, dispondo: “O Tribunal de Contas, no exercício de suas atribuições, pode apreciar a constitucionalidade das leis e dos atos do Poder Público”.
O referido verbete nunca foi cancelado. Todavia, após o advento da Constituição da República, promulgada em 5 de outubro de 1988, “vozes já se levantam na Suprema Corte para impugnar a legitimidade em si dessa competência reconhecida ao TCU na Súmula n. 347” (BRASIL, 2012).
Nesse cenário, no qual não ocorreu o cancelamento da súmula nem foi proferida decisão com repercussão geral ratificando o seu enunciado, os Tribunais de Contas têm adotado decisões afastando do ordenamento jurídico leis e atos normativos que violem a Constituição Federal. Contudo, a legitimidade dos Tribunais de Contas para fazê-lo tem sido colocada em dúvida.
De um lado, existe uma corrente sustentando que, após a promulgação da Carta de 1988, não remanesce a competência das Cortes de Contas para apreciar a constitucionalidade de norma, visto que a questão foi sumulada em contexto histórico divergente do atual. Noutra linha de pensamento, há uma corrente, diametralmente oposta, que defende a possibilidade de os órgãos de controle repelirem normas inconstitucionais, estendendo-a a todos os demais intérpretes da Constituição.
Do contexto apresentado, extrai-se que, aproximadamente trinta anos após a promulgação da Constituição, o Supremo Tribunal Federal ainda não pacificou o seu entendimento quanto à possibilidade de apreciação de normas inconstitucionais pelos Tribunais de Contas.
Na prática, os Tribunais de Contas continuam a exercer, com parcimônia, a competência atribuída pela Súmula 347 do STF. Contudo, visto se tratar de órgãos com natureza preponderantemente fiscalizadora, as decisões proferidas pelas Cortes, constantemente, desagradam os interessados na manutenção da lei inconstitucional, o que os leva a procurar guarida no Poder Judiciário, sob o argumento de que as Cortes de Contas não possuem competência constitucional para exercer o controle de constitucionalidade incidental.
O Brasil adotou o sistema misto de controle de constitucionalidade. Assim, apenas o Supremo Tribunal Federal é detentor de competência para apreciar a compatibilidade de norma com a Constituição Federal no controle abstrato, cabendo aos juízes e Tribunais de todo o país a incumbência de realizar controle de constitucionalidade repressivo e incidental.
Como explanado, o Tribunal de Contas não é órgão jurisdicional. Nesse sentido, em tese, ele não poderia realizar a apreciação da constitucionalidade de normas.
Então, o que legitima esse órgão a exercer o controle de constitucionalidade incidental?
Essa possibilidade tem origem na Súmula 347 do Supremo Tribunal Federal. Ademais, com a promulgação da Constituição de 1988, o constituinte atribuiu ao Tribunal de Contas um extenso rol de competências, a saber: fiscalizar as contas daqueles que se relacionam com o Poder Público; apreciar a legalidade de controle de determinados atos; julgar as contas dos administradores que derem causa a prejuízo no erário; sustar, se não atendido, a execução de ato impugnado, entre outras.
As Cortes de Contas são órgãos que têm como competência preponderante a fiscalização contábil, financeira, orçamentária, operacional e patrimonial dos entes da Federação, averiguando se os administradores da coisa pública agem com correção e pautados, em especial, no princípio da legalidade. Assim, não se mostra razoável, tampouco lógico, o alto custo com a manutenção de Tribunais dessa natureza em todos os entes da Federação, para coibir fraudes no âmbito da Administração Pública, sem que dê às Cortes todos os meios necessários para fazer valer as suas decisões.
Ora, se o Tribunal de Contas da União afasta a aplicação de determinada lei no caso concreto, por entender que ela é inconstitucional, mostra-se contrária ao interesse público a supressão dessa forma de atuação, uma vez que o objetivo do controle é exatamente impedir ilegalidades no âmbito da Administração Pública.
O que se procura demonstrar é que, apesar de o enunciado ter sido editado antes da promulgação da Constituição de 1988 e a ênfase recair, atualmente, sobre o modelo de controle de constitucionalidade concentrado, a possibilidade de apreciação incidental da constitucionalidade de norma pelos Tribunais de Contas apenas contribui para a higidez da Administração Pública.
Necessário lembrar que as Cortes de Contas, conquanto não possuam natureza jurisdicional, desempenham relevante papel na consecução do interesse público. Retirar de uma instituição tão importante, que preza pelos interesses sociais, pela ética e pelo aperfeiçoamento da Administração Pública, essa competência, com o argumento equivocado de que a súmula não é compatível com a Constituição de 1988, revela desconhecimento das competências atribuídas pelo próprio texto constitucional aos Tribunais de Contas, que as exercem com destreza e expertise exatamente porque dispõem dos meios para tanto.
Portanto, defende-se a subsistência, no quadro normativo atual, da Súmula 347 do Supremo Tribunal Federal, cujo cancelamento, se levado a efeito, significará inegável retrocesso, com o apequenamento e o enfraquecimento das Cortes de Contas. Ademais, será extremamente prejudicial à Administração Pública, tendo em vista que subtrairá aos órgãos de controle meios indispensáveis para se resguardar o interesse público.
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