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A constitucionalidade do art. 2.035 do Código Civil à luz do direito intertemporal e da teoria dos fatos jurídicos

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Agenda 04/06/2005 às 00:00

8 NORMAS DE ORDEM PÚBLICA E SUA APLICAÇÃO INTERTEMPORAL

Maiores problemas podem causar o parágrafo único do art. 2.035. Sua aplicação, à luz do direito intertemporal, suscita alguns cuidados que tentaremos destacar. Notemos que, ao contrário do que temos vistos em alguns comentários, não se trata de norma autônoma. Como regra básica de hermenêutica, o referido parágrafo deve reportar ao caput do artigo, conforme tentaremos demonstrar.

O sentido da palavra "preceitos de ordem pública" está a se referir às normas cogentes, que na definição de Pontes de Miranda, "é o direito que a vontade dos interessados não pode mudar. Uma vez composto o suporte fático, a regra jurídica incide, ainda que o interessado ou todos os interessados não no queiram" [85]. Na doutrina de Carlos Maximiliano:

"A distinção entre prescrições de ordem pública e de ordem privada consiste no seguinte: entre as primeiras o interesse da sociedade coletivamente considerada sobreleva a tudo, a tutela do mesmo constitui o fim principal do preceito obrigatório (...); e quando o preceito é de ordem privada (...) só indiretamente serve o interesse público, à sociedade considerada era seu conjunto; a proteção do direito do indivíduo constitui o objetivo primordial." [86]

Muito se discutem na doutrina e jurisprudência quanto a aplicação das normas de ordem pública em face às situações jurídicas anteriores. Há quem diga que, ante as normas de ordem pública, o direito adquirido deve arrefecer. Outros entendem que é o direito adquirido que deve prevalecer. Por fim, há autores que primam pela aplicação imediata das leis de ordem pública [87]. Este último entendimento nos parece corolário do primeiro, porquanto a aplicação imediata da lei de ordem pública impede a invocação do direito adquirido.

Contudo, esta discussão não é imprescindível para nosso tema, uma vez que há norma expressa relativa à aplicação das leis de ordem pública. O legislador do novo Código retirou do intérprete a possibilidade da discussão, afirmando que a norma de ordem pública aplica-se às convenções anteriores. Conforme demonstramos, a lei, seja ela de ordem pública ou não, pode ser retroativa quando o legislador assim o dispuser, todavia não poderá infringir o direito adquirido, ato jurídico perfeito e a coisa julgada. Portanto, não há que se discutir o limite temporal da norma de ordem pública do novo Código, mas sim a possibilidade de violação da Constituição. O legislador abraçou a teoria de que não há possibilidade de se invocar direito adquirido frente a norma de ordem pública, sendo que, conforme Limongi França,

"o critério para se saber quando uma lei de Ordem Pública não deve atingir o Direito Adquirido, quer retroativa, quer imediatamente é o de que o fundamento da Ordem Pública, para desconhecer o Direito Adquirido, não pode ir a ponto de atingir os casos em que esse desconhecimento geraria o desequilíbrio social e jurídico." [88]

Segundo o mesmo autor, não podem ser mantidos "aqueles direitos que entram em áspera contradição com a consciência pública, tornando-se danosos de modo geral ou considerando-se imorais". Em outras palavras, não deve permanecer "o que perturba ordem, ou ofende os bons costumes, visto que não pode haver direitos adquiridos contra a maior felicidade dos Estados". Assim, os direitos adquiridos dos particulares "devem ceder lugar, submetendo-se aos interesses de ordem geral, aos interesses de ordem pública, com os quais não podem entrar em conflito, porque estes preponderam e têm supremacia" [89].

Arnaldo Rizzardo, no mesmo sentido, afirma:

"Uma lei sobre a igualdade dos direitos de todos entra em vigor de imediato, não importando antigos diplomas que estabeleçam privilégios, pois não há direito adquirido que contrarie os princípios gerais de direito, como o da igualdade de todos perante a lei; não é tolerada a criação de situações de privilégios em favor de alguns; nem se permite que vigore um dispositivo de lei de caráter particular, conflitante com regras do mesmo teor, mas que se dirigem a uma ampla parcela do povo." [90]

A expressão "tais como" denota inegável caráter de não-taxatividade dos princípios ali expostos, quais sejam, função social da propriedade e dos contratos. Estes princípios, na verdade, não são, por si só, os causadores do problema intertemporal que o dispositivo possa causar, mas sim as regras que tentam lhe assegurar. A função social da propriedade, com efeito, remonta antes mesmo do próprio projeto de elaboração do novo código, estando totalmente amparada pela atual Constituição. Assim, não foi a partir de 11 de janeiro de 2003 que a propriedade passou a ter sua função social, sendo correto afirmar que a convenção que viole este princípio não valerá. Pode-se até se mencionar no parágrafo único, mas o que se estará aplicando é a própria força cogente da Carta Magna, não havendo, portanto, que se falar em retroatividade injusta.

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Já a função social dos contratos, malgrado venha a ser "inovação" do novo Código no que toca à expressão utilizada, já vinha sendo majoritariamente amparada pela jurisprudência, não havendo maiores problemas intertemporais em sua aplicação, porquanto sua essência, segundo Miguel Reale, também advém da própria Constituição [91].

Neste ponto, importante observação faz o lusitano José Oliveira Ascensão ao afirmar que

"nenhuma constituição no mundo dá tanto relevo como a brasileira ao princípio da função social. Seria contraditório que, sob a égide duma constituição tão decididamente impulsionadora da função social, se fosse permitir, por invocação da mesma constituição, a subsistência de efeitos pactuados entre as partes que infringissem esse princípio." [92]

A convenção que infringe a função social da propriedade ou dos contratos, não valerá, portanto, por incidência da própria Constituição e não do novo estatuto civil, que constitui mero instrumento daquela.

Desta forma, a aplicação do parágrafo único do art. 2.035 deve ser vista sob outro aspecto, ou seja, como exceção à exceção da parte final do caput. Assim, se determinada forma de execução pactuada pelas partes vier a infringir normas de ordem pública em geral, assim como àquelas que buscam assegurar a função social da propriedade e dos contratos, não irão permanecer. Aplica-se aqui a regra hermenêutica já referida de que os parágrafos referem-se ao caput da norma e não são autonomamente aplicáveis.

A dúvida que suscita refere-se ao seu plano de projeção, ou seja, sua aplicação é retroativa ou de eficácia imediata? Certo é que seja de eficácia imediata ou retroativa, seu plano de projeção não terá como conseqüência a sua inconstitucionalidade. Assim, somente por uma questão metodológica, tentaremos demonstrar o efeito temporal do parágrafo único do art. 2.035, relembrando o já exposto quanto aos efeitos temporais das leis e a estrutura lógica da norma jurídica. Com efeito, temos no parágrafo único a seguinte descrição normativa: Hipótese – convenção contrária à ordem pública; Preceito – não prevalecerá [93]. Pela teoria não-sancionista, aplica-se a seguinte equação: se H, então deve ser P. Temos, então, a conseqüente situação: se houver convenção contrária à ordem pública, deve ser não prevalente. Feita a aplicação, resta-nos indagar se há efeitos imediatos ou retroativos. Pois bem, a existência da convenção remonta à data anterior ao novo codex. Contudo, entendendo como exceção à exceção, ou seja, como afastamento da parte final do caput, o parágrafo único verificará a existência desta convenção contrária à ordem pública a partir do momento de sua entrada em vigor, que não irá prevalecer. Os novos preceitos de ordem pública passaram a ter vigência no momento da entrada em vigor da nova lei. Foi, pois, somente após esta data que eles se tornaram cogentes, ressalvado o já exposto quanto aos princípios constitucionais da função social e contrato. Note-se que o indigitado parágrafo não faz referência à violação da convenção em face da lei antiga, o que, neste caso, poder-se-ia falar em retroatividade ex hipótese. Ademais, o verbo "prevalecerá", está conjugado no futuro do presente do indicativo, demonstrando o momento temporal que a norma lhe atribui. Há, portanto, eficácia imediata [94]. Notemos que irão ser atingidos os efeitos do ato (forma de execução), ao tempo em que se produziram, sempre à luz do direito intertemporal. Assim, não há ofensa constitucional, pois não é o ato jurídico perfeito que será atingido, mas sim os efeitos nele atribuídos pelas partes, que são valorados por si só. A "forma de execução", então, deve se verificar após a entrada em vigor do novo Código, sendo que não se enquadra em outro plano de projeção do ato jurídico senão no da eficácia.

Este é o entendimento também esboçado pelo jurista português supracitado:

"Quanto ao ‘acto jurídico perfeito’, o acto que está na origem da situação não é contrariado, porque continua a ter no passado a sua fonte, à sombra da lei antiga. São apenas efeitos futuros previsíveis fundados em convenção de execução das partes que se não chegam a concretizar, por chocarem contra a lei nova que é de ordem pública. Justamente por considerarmos que acto jurídico perfeito não é qualquer efeito autonomamente posto em vigor pelas partes mas o acto em si, tal como foi posto em vida e vigorou no passado; e que à nova lei cabe regular os efeitos para futuro – que não surpreende que também o que respeita à forma de execução possa cair sob o império da nova lei. A nova lei, presumivelmente mais perfeita, tem vocação para regular os efeitos futuros. Com maior intensidade o poderá fazer se os efeitos previsíveis contrariarem regras de ordem pública." [95]

Humberto Theodoro Junior entende no mesmo sentido:

"Não se trata, é bom ressaltar, de invalidar efeitos consumados antes da lei nova e ainda sob o império da lei anterior, que amparava a convenção; mas de impedir que efeitos novos, reputados imorais, venham se dar já sob o império da ordem jurídica renovada, a qual os repugna categoricamente." [96]

Para melhor compreensão, vejamos um exemplo [97]: no dia 1º de julho de 2002, vendedor (produtor rural) e compradora (empresa) celebraram contrato de Compra e Venda, tendo como objeto "x" toneladas de soja em grãos, referente à safra de 2003, através de um contrato de adesão (feito pela empresa). Ficou estipulado a venda de referida quantidade de soja, por preço fixo (por saca), a ser entregue em determinado local, até o dia 30 de abril de 2003 e o pagamento somente após a data da entrega do produto. Sob a epígrafe "qualidade da mercadoria", ficou estipulado que se o produto não apresentar determinada qualidade, classificada pela compradora, a seu critério poderia recusá-lo ou recebê-lo com descontos.

Temos então um contrato de adesão constituído antes do NCC, sendo que sua efetivação se dá após a vigência deste. Assim, conforme Eulâmpio Rodrigues Filho, "nesse regime de fixação de cláusulas potestativas (...), estipulou-se convenção sobre o asseguramento das qualidades dos frutos, tal como impostas, e pelas quais somente o vendedor ficou obrigado" [98].

Entra em cena, então, o art. 2.035, onde dispõe que a validade do contrato remete-se ao disposto no antigo Código, sendo que os efeitos são subordinados ao novo estatuto, salvo estipulação pelas partes sobre determinada forma de execução do negócio, onde nenhuma convenção pode contrariar preceitos de ordem pública. No caso em tela, houve estipulação de determinada forma de execução que, todavia, violou normas de ordem pública.

Segue o jurista em seu parecer:

"Daí por que, diante dos efeitos do contrato, a advirem todos quando já em vigor a nova Lei, irrecusável se mostra a adoção dos seus preceitos relacionados com a ‘função social do contrato’ (art. 478 do CC/2002). Não padece dúvida de que no caso havia situação jurídica constituída, mas de efeitos futuros, a permitir aplicação da lei nova quanto a estes, pois não pode esquecer-se que o futuro pertence em princípio à lei nova." [99]

Propõe o jurista, para o caso sob exame, a resolução do contrato por onerosidade excessiva. Assim, em que pese houvesse forma de execução do contrato, este realizado antes do NCC, a convenção não terá eficácia em razão de sua violação à ordem pública. O ato jurídico (contrato) não foi diretamente atingido, não se lhe atribuiu nulidade ou anulabilidade, o que a norma valorou foram os efeitos deste ato que, in casu, ocorreram após o império do novo codex, mas já previstos na convenção que, todavia, foi aniquilada pela nova lei em razão da sua ofensa à ordem pública.

Conforme Pablo Stolze Gagliano, que tem nosso apoio,

"determinadas normas, como a que prevê a resolução por onerosidade excessiva ou a correção econômica das prestações pactuadas, em nosso pensamento, por seu indiscutível caráter publicístico e social, não podem, aprioristicamente, ser afastadas pela vontade das partes." (100

Assim, não se pode invocar ato jurídico perfeito ou direito adquirido frente às normas relativas, por exemplo, à resolução por onerosidade excessiva (arts. 478 a 480), à correção econômica das prestações pactuadas (art. 317), ao aumento progressivo de prestações sucessivas (art. 316), ou às "perdas e danos" (arts. 402 a 405), mesmo que o contrato seja anterior ao novo Código. Não há, portanto, que se falar em aplicação retroativa do Código de 2002, seja no sentido dado pela teoria subjetiva, seja pela retroação da própria norma.


CONCLUSÃO

O presente trabalho analisou a aplicabilidade do novo Código Civil aos negócios e aos atos jurídicos anteriores a ele, focando o que dispõe o art. 2.035, que tem a função de regulá-los. Para isto, é preciso ter em mente determinados conhecimentos das teorias de Direito Intertemporal e dos Fatos Jurídicos.

No que toca especificamente ao art. 2.035, concluímos que não se pode restringir sua aplicação aos contratos. O indigitado dispositivo refere-se à "validade dos negócios e demais atos jurídicos". Destarte, incluem-se neste rol os atos jurídicos lato sensu (ato jurídico e negócio jurídico); no que se refere aos efeitos destes atos pendentes, há de se englobar os atos jurídicos lato sensu, os atos ilícitos e o ato-fato jurídico; a parte final do caput do artigo restringe-se aos negócios jurídicos, pois só nestes há o poder de auto-regramento por iniciativa das partes, o que nos leva à conclusão de que o parágrafo único do art. 2.035 restringe-se também a eles. Apesar de se falar em validade, em sua interpretação devem ser englobados os atos anteriores que eram considerados inexistentes.

Na aplicação do indigitado dispositivo, há que se separar o que se refere à valoração do ato em si do estatuto dos efeitos jurídicos produzidos após a nova lei. Constitui ato jurídico perfeito o ato validamente constituído perante a norma revogada. A proteção constitucional refere-se aos planos da existência e da validade, não atingindo o plano da eficácia quando esta se realiza perante a norma revogadora.

Assim, a validade dos negócios e demais atos jurídicos anteriores ao novo Código Civil são regulados pela lei do tempo em que surgiram, pois neste aspecto é considerado ato jurídico perfeito. Os efeitos dos atos anteriormente constituídos, que se produzirem durante o império da novatio legis, são regidos por este, pois não constituem ato jurídico perfeito. Todavia, se as partes afastaram a incidência da lei anterior, determinando a forma de execução, a nova lei retém sua aplicação, salvo se for norma de ordem pública.

A aplicação das normas de ordem pública às convenções anteriores nada mais é do que a prevalência do público sobre o particular. Não há retroatividade se a aplicação for em decorrência da função social da propriedade e dos contratos, pois sua aplicação advém da própria Constituição.

Não há retroatividade no art. 2.035. Há, sim, eficácia imediata, seja no caput, seja no parágrafo único.

Cremos que o art. 2.035 inaugura uma nova etapa do Direito Intertemporal no Brasil, pois traz a aplicação justa da nova lei aos atos que lhe são anteriores, sem, contudo, ofender a Constituição. O novo Código Civil demorou muito tempo para ser aprovado, mais um ano de vacatio legis, o art. 2.035 veio, pois, para aplicá-lo imediatamente, sem muitas demoras.

Sobre o autor
Márcio La-Rocca Silveira

Auditor Público Externo TCE-RS

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SILVEIRA, Márcio La-Rocca. A constitucionalidade do art. 2.035 do Código Civil à luz do direito intertemporal e da teoria dos fatos jurídicos. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 699, 4 jun. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/6843. Acesso em: 22 nov. 2024.

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