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Direito Penal, Estado e sociedade: o (des)encontro da razão

Agenda 26/08/2018 às 17:48

Vivemos uma dissociação da razão crítica, a atualidade já não tem mais a capacidade de pensar o direito. Não conseguimos cumprir a Constituição e na contramão caminhamos para o Estado Penal.

INTRODUÇÃO

Partindo da realidade atual, em que é constatado um forte índice de violência e criminalidade em vários aspectos e que isso é, por assim dizer, um produto da sociedade, temos a ideia de que Estado e sociedade ainda que distintos e por vezes divergentes, têm algo em comum e se misturam no mundo da vida.

A sociedade, vista enquanto um aglomerado humano e plural, ao longo da história, passou por diversas mudanças em sua estrutura, teve momentos de avanços e de retrocessos. Todavia, é praticamente impossível falar em uma linearidade ou em uma linha reta que aponta para o progresso. Bem na verdade, a sociedade apresenta picos que são avaliados de acordo com a ótica do seu observador. Os consensos, neste sentido, são quase que inalcançáveis se temos em conta que o observador pode ter uma visão conservadora ou progressista. Difícil é classificar o que representa então uma (r)evolução da sociedade.

A linearidade é constatada tão somente com relação ao tempo, e a sociedade ora pende para a direita e ora para a esquerda. Partimos aqui, da premissa de que a sociedade antecede ao Estado, que, por sua vez é produto de criação social. Porém, o filho da sociedade, o Estado, assume um papel de, sob um modo geral, organizar, disciplinar e conduzir a sociedade, pelo que se torna uma espécie de guardião protetor dela.

Eis o paradoxo, o Estado tem por finalidade permitir a sobrevivência da sociedade e a sociedade é responsável por manter o Estado, e por isso afirmamos que são inseparáveis e conflitantes à medida que um se insere na esfera do outro sem consenso, que só pode ser obtido mediante a política.


METODOLOGIA

Utilizaremos o método de análise de cada um dos dois institutos – Estado Penal e Sociedade de Controle - que abordaremos, de forma separada primeiramente, para depois então vislumbrá-los conjuntamente. A partir das metodologias exploratória e explicativa, buscaremos apresentar a proposta.


SOCIEDADE E ESTADO

A sociedade através das práticas, costumes e hábitos vai construindo mecanismos para o controle social, doravante denomina-se sociedade disciplinar. O Estado, com regras administrativas, ocupa-se de uma seara menos incidente no direito privado e mais afeiçoada à burocracia e ao estabelecimento de regras gerais e abstratas. Percebe-se que se complementam e o estudo do poder, sob o aspecto do domínio de um sobre o outro, torna-se mais uma questão política do que de ordem jurídica.

Do ponto de vista político nascem os conflitos quando a sociedade e o Estado tentam impor-se um sobre o outro, numa disputa pela programação de daquela sobre este e deste sobre aquela. Desta disputa é engendrada a situação-problema de ilegitimidade e de ingovernabilidade, que só pode ter solução mediante um consenso que, por óbvio, não pode ser imposto, mas precisa desabrochar como um elemento intrínseco e unificador de intenções. Este consenso não surge de decisões judiciais ou da criação de uma lei – que pode ser dispensada pelos atores conflitantes – mas nasce do processo político.

A sociedade de controle aparece após a Segunda Grande Guerra, num contexto mais atual de conivência, onde os indivíduos vivem numa “prisão ao ar livre” na expressão de Adorno. A liberdade é tolhida sem constrangimento, sem grades e sem cárcere. Deliberadamente, os indivíduos cedem ao controle dos meios de comunicação, do consumo e do Estado, quase que num movimento irracional. A sociedade de controle pode ser tão sutil, que vai desde ao CPF na nota aos ditames da São Paulo Fashion Week. Para explicar melhor a questão da sociedade de controle, podemos estabelecer um paralelo com a sociedade disciplinar, onde o elemento central é vigiar as pessoas de modo que estas disciplinem-se por saber da existência da vigilância mas não ter certeza dela. Ou seja, por medo daquele que detém o poder de vigiar e punir, a sociedade adota o comportamento desejado, como Foucault (1987, p. 186-214) explica o Panóptico de Bentham.

Na sociedade de controle, ao contrário, não há vigia evidente, mas as pessoas são instigadas ou movidas para a direção cujo detentor do poder determina. Assim, são criadas situações que constrangem as pessoas a agir no interesse do controlador de modo que todos voltam seus olhares para o ponto fixado com referência, passando a uma condição também de autovigiação, onde os indivíduos movidos pelo controlador fazem o papel de vigias uns dos outros (DELEUZE, 1992, p. 1-4).

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O Estado, como já dissemos, decorre da sociedade e comporta inúmeros conceitos, basta olhar para clássicos como Leviatã, O Príncipe e Contrato Social, que percebemos como o Estado pode tomar várias formas e ao mesmo tempo permanecer disforme. Ao mesmo tempo que tem hegemonia, dissolve-se nas mãos dos indivíduos, ao mesmo tempo que ostenta poder, é dependente das pessoas para sua existência. Pelas palavras de Zulmar Fachin e Rene Sampar (FACHIN, 2017, p. 1), o Estado “pode representar a salvaguarda dos valores mais caros, mas, ao reverso, pode-se constituir no carrasco que suprime ideias, sonhos e promove genocídios”. Como o tema não se volta ao uma teoria de Estado ou a se aprofundar em sua complexa gnose, mas a uma visão a respeito da expressão Estado Penal, feita esta breve excursão, passamos às formatações de Estado que reputamos mais importantes a esta pesquisa.

Rapidamente, o Estado Absolutista, é aquele em que o Poder Executivo é exacerbado e teve destaque nos períodos medieval e do feudalismo, é marcado por características de governo arbitrário e por violações aos direitos das pessoas, porquanto não haver limites para o governo.

O Estado liberal pode ser dito como uma resposta ao absolutismo, no qual as pessoas passam a minar a legitimidade do poder absoluto – muitas vezes justificado por preceitos religiosos – a partir da ideia de que o Estado é fruto de um pacto. Aqui o papel do Estado restringe-se a organizar e policiar as negociações. O traço que mais marca o Estado liberal é o resguardo de direitos fundamentais de primeira dimensão – vida, liberdade, propriedade. Também é marcado de uma alta proliferação de violações de direitos sociais – e indiretamente daqueles de primeira dimensão – pelas classes economicamente mais abastadas, como a burguesia, a classe média e outros membros ou descendentes de famílias nobres. A estigma do Estado liberal é proliferação desenfreada do capitalismo e a exploração dos mais pobres, que não conseguem ascender no sistema a que são submetidos.

Passando ao Estado de direito, pode ser dito como uma situação erigida tanto de práticas sociais, como os costumes, a negociação e as interações dos indivíduos com o mundo, bem como do substrato normativo encampado pelo Estado, no sentido de organizar e limitar o poder. Neste sentido, ao mesmo tempo que o Estado de direito surge como baliza, serve como garantia de inviolabilidade de direitos fundamentais. Essa disposição do Estado de direito é o que confere às pessoas, em casos extremos, a própria sobrevivência, ou, ao menos, é para o que deveria servir os seus postulados, já que detém a capacidade de deter a atuação do Estado – entendido enquanto governo – e da sociedade – entendida enquanto impositiva de dogmas morais e interesses essencialmente capitalistas.

Cabe dizer que o Estado de direito tem por escopo preservação dos indivíduos, relativizando outros interesses que orbitam a pessoa humana. Tragicamente, embora tivesse uma gama representável de direitos fundamentais positivados, a Constituição de Weimar não conseguiu manter-se, sob o aspecto de um Estado de direito, face à atuação política que implantou o nazismo na Alemanha.

O Estado de bem-estar representa uma condição na qual o Estado liberal é relativizado, ou seja, ganha espaço de discussão e de garantia, as condições e acesso ao trabalho, o desenvolvimento regular da economia com ênfase na melhoria das condições de vida das pessoas, a diminuição das desigualdades entre as classes e o acesso público e universal à saúde e educação, com vistas à solidariedade. Embora estes últimos variem de país para país, a solidariedade e o respeito à dignidade da pessoa humana, bem como a ampliação do catálogo de direitos fundamentais são parte da agenda do Estado e já se fala em uma força conjunta da sociedade. Há quem critique o Estado de bem-estar em razão de seu elevado custo para implementação e manutenção, obviamente a crítica nasce das ideologias neoliberais e do capitalismo avançado.

Feitos estes apontamentos, passamos ao Estado Penal. De acordo com Wacquant (1998, p. 7-26), o Estado Penal constitui-se numa guinada das políticas penais e na dizimação das políticas sociais. Ou seja, há uma diminuição abissal daquilo que é tido como direito fundamental sob o vértice das liberdades individuais, das conquistas sociais e das práticas solidárias e um abrupto incremento das políticas penais sob o ângulo da punição. Os problemas do Estado Penal só se agravam, principalmente porque juntamente a política punitivista hipertrofiada o alvo é a população pobre e que vive em situações já extremas pela falta de recursos, infraestrutura e agora com a omissão de políticas sociais inclusivas e redistributivas.


CONCLUSÃO

Antes de mais nada, é necessário termos em consideração que o Brasil não chegou a alcançar o ideal de Estado de bem-estar. Muito embora tenham sido implantadas diversas políticas com foco na diminuição das distâncias entre as classes e diversas conquistas sociais tiveram êxito no aspecto de inclusão e redistribuição de renda, ficamos aquém do ideal instituído pelo constituinte quanto à construção de uma sociedade livre, justa e solidária, da erradicação da pobreza e da marginalização e da redução das desigualdades sociais e regionais.

Ao todo que expomos, à guisa de conclusão podemos com firmeza chegar ao ponto de que o encontro do Estado Penal e da Sociedade de Controle pode gerar consequências catastróficas. Isso porque, ao voltar os olhos dos indivíduos para um problema criminal – e focalizar esse problema nos pobres – perde-se o aspecto da solidariedade e da própria humanidade. Quando imbricados, a solução dos problemas sociais passam a ser a eliminação do pobre, que passa de ser humano a fardo para a sociedade e a questão penitenciária passa por um processo de desumanização pelo mesmo motivo. Os investimentos passam a ser no sentido da elitização e do aparelhamento das forças de segurança, porém de forma deturpada, em prejuízo dos mais necessitados. Políticas de empregabilidade dão lugar ao fomento da produção de capital e as relações de trabalho se tornam mais tirânicas e verticalizadas. O acesso aos direitos é hierarquizado e se sobrar a camada de baixo consegue alguma coisa.

No Brasil, parece que o Estado Penal tem ganho um certo prestígio nos últimos dias, temos com frequência o enaltecimento do combate ao crime com contornos de uma cegueira deliberada a respeito dos direitos humanos e a diminuição dos direitos sociais sob a capa de ajuste econômico. Contextualizando, vemos a retirada de direitos dos pobres e a ampliação dos direitos das elites, dos achegados do governo e dos donos das maiores parcelas do capital.

De outro lado, a Sociedade de Controle parece que foi descoberta pelos detentores do poder e temas como o combate à corrupção de forma seletiva ganham o prestígio das pessoas para a implantação de um regime rígido e antidemocrático por uma direita conservadora, que alimenta e fomenta o Estado Penal como a solução dos problemas contemporâneos da ordem social.

Tornamos ao ponto de que partimos, a questão precisa ser resolvida no campo político, e com urgência, precisamos preservar a democracia enquanto garante dos direitos fundamentais e ao mesmo tempo evitar que a guinada conservadora se aconchegue no poder.


REFERÊNCIAS

DELEUZE, Gilles. Post-scriptum sobre as sociedades de controle. Tradução de Peter Pál Pelbart. Rio de Janeiro: Conversações, Ed. 34, 1992, p. 219-226.

FACHIN, Zulmar; SAMPAR, Rene. Teoria do Estado. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2017.

FOUCAULT, Michel.Vigiar e punir: nascimento da prisão; tradução de Raquel Ramalhete. Petrópolis, Vozes, 1987.

WACQUANT, Loïc. De l’État social à l’État pénal. Actes de la recherche en sciences sociales. Vol. 124, septembre 1998. Disponível em: <https://www.persee.fr/issue/arss_0335-5322_1998_num_124_1> Acesso em: 26 set. 2017.

Sobre o autor
Vinícius Scherch

Graduado em Direito pela Faculdade Cristo Rei, Cornélio Procópio - Paraná (2010). Pós-Graduado em Direito e Processo do Trabalho pela UNOPAR, Campus Bandeirantes - Paraná (2014). Graduado em Gestão Pública pela UNOPAR, Campus Bandeirantes-Paraná (2015). Mestre em Ciência Jurídica pela UENP -Jacarezinho. Advogado na Prefeitura Municipal de Bandeirantes - Paraná.

Informações sobre o texto

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