INTRODUÇÃO
É de notório conhecimento que a investidura em cargo ou emprego público depende de aprovação prévia em concurso público, de acordo com a sua natureza e complexidade, em cumprimento ao disposto no art. 37, II[1] da Constituição da República Federativa do Brasil (CR/88).
Assim como em grande parte das administrações públicas brasileiras, ocorre que, no âmbito da Secretaria de Estado de Planejamento e Gestão do Estado de Minas Gerais (Seplag), a operacionalização dos certames é frequentemente realizada por instituição especializada em concursos públicos, contratada pela Administração. Assim, importante definir como deve se dar a remuneração destas empresas, diante da demanda dos setores responsáveis para que seja efetuada por meio da própria arrecadação da taxa de inscrição dos candidatos ao concurso público.
Verifica-se a existência de pontos controversos que dificultam a definição do formato de operacionalização dos certames por meio da contratação de empresas terceirizadas, uma vez que não há entendimento pacífico sobre a natureza jurídica dos valores de inscrição. A discussão gira em torno de se consiste em taxa – e, portanto, espécie de tributo[2] – ou preço público – natureza não tributária.
Oportunamente, é importante esclarecer que, a princípio, a designação “taxa de inscrição” não é utilizada em seu sentido técnico e, com isso, não se presta a definir, a priori, a natureza jurídica dos valores recolhidos a título de participação de candidatos em concursos públicos. Afinal, a CR/88 e o Código Tributário Nacional, Lei n.º 5.172, de 25 de outubro de 1966 (CTN) não qualificam essa receita dentro dos conceitos legais de tributo. Sendo assim, consoante preconiza o art. 4º do CTN[3], a designação “taxa de inscrição” não implica na automática atribuição da natureza jurídica de taxa aos valores recolhidos nesta qualidade.
Esta é a temática deste artigo, que, valendo da revisão da literatura sobre taxa e preços públicos, bem como da análise de julgados relacionados, visa a aprofundar a discussão, conforme os contornos trazidos pela doutrina e pela jurisprudência, permitindo melhor delineamento e classificação das taxas de inscrição em concursos públicos.
2. A NATUREZA JURÍDICA DAS TAXAS E DOS PREÇOS PÚBLICOS
O aprofundamento da distinção entre taxas e preços públicos faz-se essencial considerando a eventual necessidade de criação de legislação específica e prévia sobre o tema, instituindo a cobrança do tributo, caso se conclua que a natureza jurídica é de taxa. Afinal, sabe-se que, dentre os vários princípios que informam o direito tributário, estão o da legalidade e o da anterioridade tributária.
Considerando a existência da controvérsia quanto à categorização da taxa de inscrição nos concursos públicos, bem como a importância de buscar solucioná-la a fim de proporcionar segurança jurídica aos atos administrativos que envolvem a contratação de servidores efetivos por intermédio de empresa especializada na gestão de concursos, passa-se a analisar cada um dos institutos, taxas e preços públicos.
De acordo com Baleeiro (1973), as discussões jurídicas na delimitação da fronteira entre taxas e preços sempre foram as mais ásperas, revelando-se imperiosa a sua correta diferenciação.
Não obstante, cabe destacar, conforme determina a Súmula 545 do STF, de 12 de dezembro de 1969, que "preços de serviços públicos e taxas não se confundem, porque estas, diferentemente daqueles, são compulsórias e têm sua cobrança condicionada à prévia autorização orçamentária, em relação à lei que as instituiu".
Baleeiro (1973) lembra que taxa consiste em espécie de tributo, definida em lei, ao passo que o preço público pode ser fixado por ato da autoridade administrativa, se a lei assim permitiu. E continua: "um preço pode ser estabelecido, exigido e majorado em qualquer dia do ano para cobrança imediata. Já a taxa há de ser decretada e autorizada num ano para cobrança no exercício imediato" (p. 252).
Outrossim, Moura (2008) reforça tal entendimento ao elucidar que preço público decorre da utilização de serviços públicos facultativos que a Administração Pública, diretamente ou por meio de delegação a concessionário ou permissionário, coloca à disposição da população. De acordo com o autor, são serviços prestados em decorrência do estabelecimento de relações contratuais, como a contratação de serviços de telefonia, fornecimento de energia elétrica, gás ou água.
Ademais, Moura (2008) destaca que tais relações contratuais, associadas ao preço público em geral, são regidas pelo direito privado, traduzindo uma relação de natureza pró-cidadão e que visa a atender aos usuários no tocante às suas comodidades ou necessidades pessoais.
Lado outro, Sacha Calmon, em seu Curso de Direito Tributário Brasileiro (2002, pp. 194-195), retrata a estrita conexão existente entre Estado de Direito e legalidade na tributação: "onde houver Estado de Direito haverá respeito ao princípio da reserva de lei em matéria tributária". E continua:
"Os princípios jurídicos da legalidade, seja formal, seja material (tipicidade), anterioridade e irretroatividade da lei tributária encontram justificação singela e promanam diretamente da experiência dos povos:
a) o princípio da legalidade significa que a tributação deve ser decidida não pelo chefe do governo, mas pelos representantes do povo, livremente eleitos para fazer leis claras;
b) o princípio da anterioridade expressa a ideia de que a lei tributária seja conhecida com antecedência, de modo que os contribuintes, pessoas naturais ou jurídicas, saibam com certeza e segurança a que tipo de gravame estarão sujeitos no futuro imediato, podendo dessa forma organizar e planejar seus negócios e atividades (...)."
Insta destacar, ainda, que o artigo 150 da CR/88, a seguir, que traz as limitações ao poder de tributar, veda aos entes federativos a cobrança de tributo sem lei que o estabeleça e no mesmo exercício financeiro em que haja sido publicada a lei que os instituiu ou aumentou, dentre outras exigências:
Art. 150. Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:
I - exigir ou aumentar tributo sem lei que o estabeleça;
II - instituir tratamento desigual entre contribuintes que se encontrem em situação equivalente, proibida qualquer distinção em razão de ocupação profissional ou função por eles exercida, independentemente da denominação jurídica dos rendimentos, títulos ou direitos;
III - cobrar tributos:
a) em relação a fatos geradores ocorridos antes do início da vigência da lei que os houver instituído ou aumentado;
b) no mesmo exercício financeiro em que haja sido publicada a lei que os instituiu ou aumentou; (Vide Emenda Constitucional nº 3, de 1993)
c) antes de decorridos noventa dias da data em que haja sido publicada a lei que os instituiu ou aumentou, observado o disposto na alínea b; (Incluído pela Emenda Constitucional nº 42, de 19.12.2003)
(...)
Já o art. 97 do CTN também normatiza a sistemática de criação de tributos, dispondo que somente a lei poderá estabelecer a sua instituição, extinção, majoração ou redução (observados os casos em que, excepcionalmente, é dispensada para a majoração e a redução), devendo, além disso, definir toda a estrutura da norma tributária, como o fato gerador, fixar as bases de cálculo e alíquotas, entre outros (COELHO, 2002).
Especificamente com relação às taxas, o CTN assim as disciplina:
Art. 77. As taxas cobradas pela União, pelos Estados, pelo Distrito Federal ou pelos Municípios, no âmbito de suas respectivas atribuições, têm como fato gerador o exercício regular do poder de polícia, ou a utilização, efetiva ou potencial, de serviço público específico e divisível, prestado ao contribuinte ou posto à sua disposição.
Parágrafo único. A taxa não pode ter base de cálculo ou fato gerador idênticos aos que correspondam a imposto nem ser calculada em função do capital das empresas. (Vide Ato Complementar nº 34, de 1967, grifo nosso)
Baleeiro (1973, p. 242), no mesmo sentido, define taxa como "o tributo cobrado de alguém que se utiliza de serviço público especial e divisível, de caráter administrativo ou jurisdicional, ou tem a sua disposição, e ainda quando provoca em seu benefício, ou por ato seu, despesa especial dos cofres públicos".
Sabe-se que o CTN define taxa como tributo vinculado quanto ao seu fato gerador, mas não quanto ao destino do produto da arrecadação. Nesse sentido, Marcelo Alexandrino e Vicente Paulo (2009, pp. 14 e 43) apresentam a seguinte definição de taxa:
"A taxa é, pois, um tributo que tem como fato gerador ou hipótese de incidência uma atuação estatal específica relativa ao contribuinte. Por ser a hipótese de incidência das taxas vinculadas a um ato ou fato do Estado, diz-se que elas são um tributo vinculado.
(...)
Por último, quanto ao destino do produto da arrecadação das taxas, cabe notar que não existe vinculação constitucional expressa entre a receita e a despesa, vale dizer, não é obrigatório que a arrecadação da taxa seja legalmente destinada a um fundo ou órgão específico incumbido de custear ou desempenhar a atividade estatal que constitui o fato gerador do tributo. Mas a lei pode estabelecer vinculação da arrecadação de taxas, porque não se lhes aplica o art. 167, IV, da Constituição, dispositivo exclusivamente endereçado aos impostos." (Grifo nosso)
Em consonância com a doutrina, o Tribunal de Contas da União (TCU), no Processo TC-015.289/2004-7, manifestou-se da seguinte forma:
"Com relação ao destino dado aos valores arrecadados não há, ao contrário do afirmado pela unidade técnica, como regra geral, a obrigatoriedade da vinculação do produto de arrecadação a determinada atividade estatal. O art. 145, II, da Constituição Federal nada dispõe a respeito.
(...)
Bernardo Ribeiro de Moraes (apud Luiz Emygdio da Rosa Jr., ob. cit. p. 205), destaca que “a destinação do produto tributário ocorre após a arrecadação, jamais podendo tal fato constituir característico das espécies tributárias. O destino da arrecadação, quando muito, é elemento contábil (não-jurídico das espécies tributárias).”
Sacha Calmon Navarro (Curso de Direito Tributário Brasileiro, 3ª ed. p. 425/6) dispõe de forma semelhante: “Nada impede que o legislador cobre taxas pela prestação dos serviços públicos e divisíveis (...). Nada o impede de destinar a outros fins o produto arrecadado. (...) É que para a caracterização jurídica da taxa é irrelevante o destino de sua arrecadação. E, por outro lado, cabe ao legislador de cada ordem de governo (União, Estados e Municípios), em relação ao princípio da autonomia dos entes locais, base do federalismo (art. 25 da Constituição de 1988), dispor sobre as respectivas despesas, ajuizando a boa destinação dos dinheiros públicos.” (Grifo nosso).
São importantes ainda as considerações de Aliomar Baleeiro (Direito Tributário Brasileiro, 11ª ed., p. 68):
“Mas ressalvas devem ser feitas ao art. 4º do Código Tributário Nacional, no ponto em que considera irrelevante, de forma generalizada, a destinação do produto arrecadado para a definição da espécie tributária. É que a destinação, efetivamente, será irrelevante para distinção entre certas espécies (taxas e impostos, p. ex.), mas é importante no que tange à configuração dos empréstimos compulsórios.
A Constituição de 1988 pela primeira vez, cria tributos finalisticamente afetados (...) a afetação do produto a certas despesas ou serviços é requisito necessário para o exercício da competência federal, no que tange às contribuições e aos empréstimos compulsórios.” (Grifo nosso).
Ou seja, verifica-se que a afetação de receitas é característica das contribuições e não das taxas. Como exceção a regra, tem-se a aplicação dos recursos arrecadados em razão das custas e emolumentos judiciais (consideradas taxas pelo Supremo Tribunal Federal – ADI 1772/98), em razão do disposto no § 2º do art. 98 da Constituição Federal, com a redação dada pela Emenda Constitucional 45/2004, o qual dispõe que “as custas e emolumentos serão destinados exclusivamente ao custeio dos serviços afetos às atividades específicas da Justiça”." (Grifo nosso)
ACÓRDÃO Nº 532/2005-TCU-PLENÁRIO
Não sendo característica da taxa a vinculação do produto de sua arrecadação a determinada atividade do Estado, seria difícil, para tais entendimentos, considerar como taxa os valores pagos a título de inscrição. Afinal, é necessário custear os concursos públicos, mas não se sabe, de antemão, quantos candidatos irão se inscrever, o que compromete a previsibilidade do montante a ser gasto na realização do certame.
Em suma, percebe-se que a distinção entre taxa e preços públicos permanece a demandar maiores discussões no contexto da oferta de serviços públicos no Brasil. Moura (2008) ilustra a controvérsia com os casos do esgoto e da água:
"[...] a rigor em localidades onde estes serviços fossem colocados à disposição dos usuários, mas com utilização de caráter obrigatório (ou seja, a lei não permitisse poços e nem fossas), a remuneração deveria ser feita mediante taxa e sofreria as limitações impostas pelos princípios gerais da tributação (legalidade, anterioridade, etc.). Por outro lado, se a lei local permitisse meios alternativos à população para obter água e dispor de seus dejeitos, o serviço estatal oferecido, pelo ente político ou por seus delegados, não teria natureza obrigatória, seria facultativo e, portanto, seria remunerado mediante preço público." (p. 66)
Nesse diapasão, o STF tem consolidado o entendimento de que a natureza jurídica da remuneração dos serviços de água e esgoto, prestados por concessionária de serviço público, é de tarifa ou preço público[4].
Constatadas as divergências entre taxas e preços públicos, passa-se a seguir ao aprofundamento da discussão sobre a natureza da taxa de inscrição em concursos públicos.