1. Introdução
Ao recontar a história de um povo, qualquer livro subdivide-se em capítulos baseados nas eras mais importantes vividas por uma nação, nos fatos históricos marcantes ou nos governos que, para o bem ou para o mal, alteram o curso da vida daqueles que a ele se submetem.
A história não é lembrada por fatos que não ultrapassam os limites da normalidade, mas pelos fatos que levam a sociedade ao pódio ou reduzem-na à condição de fracassada.
A história retrata não só os acertos e sucessos de um povo, mas também, os erros por ele cometidos e as mazelas de seus governantes, numa eterna tentativa de que as gerações vindouras não os repitam.
Os dias hodiernos, mais especificamente os anos de 2016 a 2018, com certeza, abrirão um novo capítulo da história brasileira, pois o governo do Presidente Michel Temer, que iniciou-se pautado sobre a premissa de “colocar o Brasil nos trilhos”, vem trabalhando incansavelmente em reformas legislativas delicadas e até mesmo impopulares, sob a alegação de que são estritamente necessárias à superação de crise financeira e retomada do crescimento econômico do país, bem como à geração de mais empregos.
Dentre as várias reformas angariadas, destaca-se a reforma trabalhista, aprovada por meio da Lei nº 13.467, de 13 de Julho de 2017, que impõe inúmeras alterações tanto ao direito material como ao direito processual trabalhista.
No presente artigo de revisão, pretende-se analisar, por meio de pesquisa bibliográfica, a problemática jurídica que circunda dois pontos da reforma trabalhista, quais sejam: primeiro, a proibição imposta aos juízes do trabalho e aos presidentes dos tribunais trabalhistas de promoverem a execução de ofício nas demandas em que as partes estejam representadas por advogados (Art. 878 da CLT); segundo, o modelo de prescrição intercorrente proposto pelo legislador para as demandas judiciais laborais (Art. 11-A da CLT).
Questiona-se se tais alterações no direito processual trabalhista afrontam aos princípios da vedação ao retrocesso social, do impulso oficial e ao princípio e garantia constitucional da razoável duração do processo.
Questiona-se, também, se tais alterações tornaram o sistema executório no âmbito da justiça laboral mais ineficiente e suscetível a fraudes à execução, prejudicando o recebimento do crédito obreiro, de natureza alimentar, e, conseguintemente, deixando de assegurar direitos fundamentais.
Questiona-se, por fim, se as alterações ora analisadas são compatíveis com a CLT e com a Constituição Federal e com as demais disposições da legislação infraconstitucional, em especial aquelas constantes na Consolidação das Leis do Trabalho.
Objetiva-se, com a presente pesquisa, elucidar as mudanças apresentadas pelo legislador e angariar melhor intelecção acerca dos temas ora trazidos em debate, constatando se há compatibilidade deles com os princípios que regem o direito brasileiro e com as normas vigentes no país.
Far-se-á, primeiramente, uma análise acerca do princípio da proibição ao retrocesso social, conhecido por efeito “cliquet”, que assegura aos jurisdicionados a segurança jurídica ao proibir que direitos fundamentais já previstos e garantidos sejam suprimidos do ordenamento jurídico por decisões estatais arbitrárias.
Será analisado, em seguida, o princípio e garantia constitucional da efetividade na prestação jurisdicional, também conhecido como princípio da razoável duração do processo, segundo o qual a prestação jurisdicional não deve ser tão demorada a ponto de fazer perecer o direito ou a pretensão daquele o persegue.
Também será feito um breve estudo acerca da evolução histórica da execução judicial de dívidas civis, desde sua incidência sobre o próprio corpo do devedor até o modelo atual em que ela restringe-se ao seu patrimônio.
O princípio do impulso oficial, também chamado de princípio inquisitivo, por seu turno, será objeto de estudo analisando-se as previsões dele no ordenamento jurídico brasileiro, sua aplicabilidade e sua correspondência com o princípio da inércia jurisdicional. Far-se-á, ademais, um estudo acerca da forma como, historicamente, a execução trabalhista foi impulsionada no Brasil.
Outro ponto a ser abordado no presente artigo diz respeito à visível contradição trazida ao ordenamento jurídico pela nova redação do art. 878 da Consolidação das Leis do Trabalho, dada pela Lei nº 13.467/2017, uma vez que parece incompatível com o art. 114, VIII da Constituição Federal de 1988, com outros dispositivos da legislação infraconstitucional e com a jurisprudência pátria.
A prescrição intercorrente, prevista no Art. 11-A da Consolidação das Leis do Trabalho, incluído pela Lei nº 13.467/2017, por sua vez, será analisada a fim de se verificar sua compatibilidade, à luz da doutrina e da jurisprudência, com o Direito Processual do Trabalho. Verificar-se-á, outrossim, as consequências e efeitos do Art. 11-A à prestação jurisdicional e ao deslinde das ações no âmbito da Justiça do Trabalho.
Por fim, a proibição da execução de ofício será analisada em conjunto com a prescrição intercorrente, de modo a se verificar os efeitos trazidos pela reforma trabalhista à persecução do crédito obreiro e à efetividade da prestação jurisdicional.
A abordagem do tema justifica-se pela urgente necessidade de analisar as mudanças impostas ao ordenamento jurídico brasileiro pela Lei nº 13.467/2017, uma vez que as alterações ao direito material do trabalho vem sendo amplamente divulgadas pela mídia brasileira e discutidas nos ambientes acadêmicos, no entanto, pouco se atenta a sociedade às mudanças impostas ao direito processual, tão quão importante, vez que de nada adianta direitos reconhecidos pelo ordenamento jurídico se os instrumentos para assegurá-los forem ineficazes.
2. O efeito cliquet: nunca retroceder
O alpinismo está entre os esportes mais árduos praticados pelo ser humano. Alpinistas profissionais percorrem milhares de quilômetros para chegarem a montanhas mais e mais desafiadoras. Os mais audaciosos não hesitam em gastar fortunas para chegar ao Monte Everest no Nepal, por exemplo, considerado a montanha de maior altitude (8.516 metros acima do nível do mar), um trunfo para a carreira de um alpinista.
Seja no Monte Everest, seja em outro de menor altitude e menor complexidade para um escalador, em determinados pontos da escalada o alpinista percebe que já não é mais possível retroceder. A única solução é subir. Não há mais espaço para desistências ou descidas, sob pena de colocar em risco a própria vida. No alpinismo, isso é chamado de efeito “cliquet”.
No âmbito jurídico, a expressão efeito “cliquet” é tomada de empréstimo para designar um ponto no avanço na garantia dos direitos fundamentais em que se torna impossível o retrocesso. A expressão está intimamente ligada ao princípio da vedação ao retrocesso. (GARCIA, 2014).
Em uma sociedade, necessário se faz que seja garantida a segurança jurídica nas relações entre o povo e o Estado, de forma que cada indivíduo possa viver em tranquilidade e não seja surpreendido com decisões que, de repente, o desampare de direitos e garantias fundamentais.
Visando justamente a segurança jurídica e a garantia dos direitos fundamentais, juristas tem defendido a tese do efeito “cliquet”, ou seja, o princípio da vedação ao retrocesso social.
Esse princípio, embora já discutido no direito alemão e italiano, teve como importante marco o julgamento do Tribunal Constitucional Português que decidiu pela inconstitucionalidade de uma lei que, na prática, extinguia o Serviço Nacional de Saúde do País. A inconstitucionalidade material da lei foi defendida, naquela ocasião, sob o argumento de que, uma vez reconhecido constitucionalmente e garantido o direito à saúde, o Estado não mais poderia deixar de prestar essa assistência à sociedade, sendo-lhe exigíveis prestações positivas com fins de garantia do referido direito fundamental. (FILETI, 2014).
Alcançado determinado grau de garantia dos direitos sociais, eles passam a ser, concomitantemente, uma garantia institucional e um direito subjetivo, tornando inconstitucionais quaisquer medidas estatais tendentes à anulação, revogação ou aniquilação deles. (CANOTILHO, 2002, p.336 apud GARCIA, 2014).
Os direitos sociais têm caráter vinculativo, imperativo e exigem do Estado positivação de normas que vinculem os órgãos estatais e possibilitem a concretização das normas programáticas previstas na Constituição, sendo vedado o retrocesso, conforme ensina José Afonso da Silva, considerado pioneiro no reconhecimento desse princípio no direito brasileiro. (SILVA, 2007, p. 319 apud FILETI, 2014).
Nenhuma organização ou norma internacional dita de forma rígida quais os direitos fundamentais devem ser assegurados por um Estado soberano. Como regra geral, cada país é livre para decidir quais direitos e garantias serão assegurados à população. É livre, também, para definir os limites da prestação estatal.
Aliás, o poder constituinte originário é classificado pela doutrina majoritária como inicial, incondicionado e ilimitado, ou seja, em regra, não está condicionado ou limitado a nenhuma outra norma jurídica, seja ela nacional ou internacional. (BULOS, 2014, p. 401).
Todavia, pelo princípio ora analisado, uma vez assegurado pelo Estado um direito ou garantia fundamental, torna-se impossível, por meio de reforma constitucional ou legislação infraconstitucional, suprimi-los do ordenamento jurídico, sob pena de tais normas serem eivadas de inconstitucionalidade material.
3. INJUSTA JUSTIÇA TARDIA
Tempo é dinheiro, diz um dito da sabedoria popular. Deveras, a noção abstrata de tempo, estudada tanto nas ciências exatas quanto nas ciências humanas, é de preciosidade comparável ao próprio dinheiro.
No curso de um processo judicial, o tempo pode levar a decisões injustas, se demasiadamente precoce, ou pode fazer perecer o direito se demasiadamente tardio, tornando-se inócua a decisão reconhecedora do direito pretendido.
As reclamações nos corredores dos tribunais pátrios são incansáveis, sendo as mais corriqueiras delas, sem dúvida, aquelas relacionadas à morosidade da prestação jurisdicional.
Sem embargo, segundo Schlette (1999, p.13 apud SOUSA, 2014), “as queixas com relação ao tempo de duração dos processos judiciais devem ser tão antigas como a própria justiça”. Portanto, não é um problema moderno, tampouco exclusivo da justiça brasileira. Razão disso, grande é o clamor do povo, dos juristas e dos aplicadores do direito para que a justiça seja mais célere na prestação jurisdicional.
Nesse sentido, a Convenção para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, ocorrida na cidade de Roma no ano de 1950, consignou que “toda pessoa tem direito a que a sua causa seja examinada equitativa e publicamente, num prazo razoável, por um tribunal independente e imparcial, instituído por lei (...).”.
Na mesma linha segue o Art. 8 do Pacto de São José da Costa Rica ao dispor que:
Toda pessoa tem direito a ser ouvida, com as devidas garantias e dentro de um prazo razoável, por um juiz ou tribunal competente, independente e imparcial, estabelecido anteriormente por lei, na apuração de qualquer acusação penal formulada contra ela, ou para que se determinem seus direitos ou obrigações de natureza civil, trabalhista, fiscal ou de qualquer outra natureza. (Convenção americana sobre direitos humanos, 1969).
Percebe-se, por conseguinte, que o direito de celeridade processual é de tão grande importância que mereceu destaque até mesmo nas convenções internacionais voltadas aos direitos humanos.
Consoantemente, a emenda constitucional 45/2004 inseriu ao Art. 5º da Constituição Federal o inciso LXXVIII, que consagrou o princípio da razoável duração do processo, ou princípio da efetividade na prestação jurisdicional, como uma garantia fundamental ao dispor que “a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação”.
Caminhando no mesmo sentido, o Código de Processo Civil de 2015 prevê em seu Art. 139, II, que o “juiz dirigirá o processo conforme as disposições deste Código, incumbindo-lhe velar pela duração razoável do processo.”.
Seja dito de passagem que, ainda em 1921, Rui Barbosa, em profético discurso que virou o livro Oração aos Moços, disse que “a justiça atrasada não é justiça; senão injustiça qualificada e manifesta.” (BARBOSA, 1999, p. 39).
Portanto, sendo a razoável duração do processo uma garantia constitucional, faz-se mister que os tribunais brasileiros busquem meios de assegurá-la e que os legisladores trabalhem por normas processuais livres de embaraços, sob pena do fumus boni juris esvair-se, deixando para trás pessoas órfãs da tutela jurisdicional e inúteis papéis esquecidos nas estantes e gavetas dos juízes.
4. Evolução histórica da execução: do corpo ao patrimônio
A lei das XII tábuas, escrita no ano 450 a.C dispunha que aquele que era condenado ou confessava uma dívida perante um magistrado teria 30 dias para pagar. Se esgotado tal prazo sem pagamento, o devedor deveria ser coercitivamente conduzido à presença do juiz, que determinava a entrega dele, amarrado com correntes de até 15 libras, ao credor. O devedor ficaria então preso sob a custódia do credor por 60 dias, durante os quais era levado a feiras na cidade, onde se proclamava em alta voz o valor da dívida. Não aparecendo fiador, permitia-se aos credores repartirem o corpo do devedor em tantos pedaços quantos fossem os credores ou, se preferissem, poderiam vendê-lo como escravo a um estrangeiro (TÁBUA III, 450 a.C, nº 4-9 apud MARTINS, 2015, p.764).
Percebe-se que a execução judicial, diferentemente do modelo atual, era muito mais rigorosa com os devedores, uma vez que incidia sobre o próprio corpo do devedor ou de seus parentes.
A bíblia sagrada, por exemplo, no livro de II Reis, capítulo 4, conta a história de uma viúva que pede socorro ao profeta Eliseu dizendo: “meu marido, teu servo, morreu; e tu sabes que o teu servo temia ao Senhor; e veio o credor a levar-me os meus dois filhos para serem servos.”. Tal passagem bíblica exemplifica que, à época, não só o devedor respondia pela dívida, mas, do mesmo modo, seus parentes após a sua morte. Caso os familiares do devedor não possuíssem patrimônio para saldar a dívida, também respondiam com o próprio corpo, podendo até mesmo se tornarem escravos como forma de pagamento.
Felizmente, o direito moderno evoluiu. No Brasil, a execução civil de dívida limita-se ao patrimônio do devedor, não se estendendo aos parentes, salvo, conforme o Art. 1.997 do Código Civil, em hipóteses de morte, caso em que a dívida pode ser cobrada dos herdeiros, desde que sejam respeitados os limites da herança.
No sentido comum da palavra executar é realizar, cumprir, levar a efeito. Já no sentido jurídico, a expressão conserva a mesma ideia, porém, uma vez nascida a obrigação, seja por ajuste de vontades entre particulares ou por sentença judicial, deve ser cumprida até que se atinja a efetivação do comando sentencial que a reconheceu ou o fim para o qual a sentença foi criada. (PINTO, 2014, p. 23)
Schiavi (2014, p. 966), por sua vez, ensina que "a sentença não voluntariamente cumprida dá ensejo a uma outra atividade jurisdicional, destinada à satisfação da obrigação consagrada em um título que tem força executiva, (...) que se denomina execução forçada."
Conclui-se, assim, que execução consiste em atos do Estado-Juiz para dar efetividade ao cumprimento de suas decisões, de forma que os direitos reconhecidos sejam efetivamente assegurados ao seu detentor (credor) por meio de interferência judicial no patrimônio do devedor, ainda que contra sua vontade e seus interesses.