1. Introdução
O transporte aéreo de passageiros é uma prestação de serviços que, não obstante estar também regulado no Código Civil, geralmente configura uma relação consumerista. Isso porque aquele que presta serviços de transporte enquadra-se na condição jurídica de fornecedor, conforme disposto no art. 3º, do Código de Defesa do Consumidor - CDC, e os passageiros amoldam-se à figura de consumidor, prevista no art. 2º, CDC.
Tal serviço, todavia, apresenta algumas particularidades com relação à legislação, pois apesar de ser regido pelo CDC, pode ter a aplicação dele mitigada em alguns pontos.
Para o transporte aéreo internacional, é também aplicável Convenções Internacionais, que foram assinadas pelo Brasil e internalizadas ao ordenamento brasileiro.
Ocorre que há antinomias pontuais entre o Código de Defesa do Consumidor e as convenções internacionais de que o Brasil é signatário, que serão expostas mais à frente.
Em uma decisão recente, o Supremo adentrou nesta discussão e fixou, através do RE 636.331 RJ, com relação ao Tema 210, a seguinte tese:
"Nos termos do art. 178 da Constituição da República, as normas e os tratados internacionais limitadores da responsabilidade das transportadoras aéreas de passageiros, especialmente as Convenções de Varsóvia e Montreal, têm prevalência em relação ao Código de Defesa do Consumidor".
2. Legislação
Com relação à regulamentação específica para transporte aéreo, há para o transporte aéreo nacional, ou seja, com empresas nacionais e destinos nacionais, o Código Civil, o Código Brasileiro de Aeronáutica, além das regulamentações feitas pela ANAC.
Quanto ao transporte aéreo internacional há a regulamentação de convenções internacionais, como a Convenção de Varsóvia, recebida ao ordenamento brasileiro pelo Decreto nº 20.704 de 1931, modificado sucessivamente pelo Protocolo de Haia, introduzido no direito brasileiro pelo Decreto 56.463, de 1965, pelo Protocolo Adicional 4, assinado em Montreal, introduzido no direito brasileiro pelo Decreto 2.861, de 1998, e, finalmente, pela Convenção para Unificação de Certas Regras Relativas ao Transporte Aéreo Internacional, celebrada em Montreal, também chamada de Convenção de Montreal, recebida pelo Decreto nº 5.910 de 2006.
Ao transporte aéreo de pessoas, por se configurar relação de consumo, como já mencionado, aplica-se também o Código de Defesa do Consumidor.
3. Controvérsia
A controvérsia se estabelece em razão da possibilidade ou não de mitigação da aplicação do Código de Defesa do Consumidor aos contratos de transporte aéreo internacional, ou seja, a questão jurídica é a definição de qual diploma legal deve prevalecer, nos casos de antinomia entre o Código de Defesa do Consumidor e as Convenções internacionais que regulam o transporte aéreo internacional de passageiros.
O Código de Defesa do Consumidor estabeleceu ser direito básico do consumidor a “efetiva proteção e reparação de danos patrimoniais e morais, individuais, coletivos e difusos” (art. 6º, VI, CDC), e em seu art. 14 a imposição ao fornecedor do serviço a reparação dos danos causados. Portanto, prevalece no CDC o princípio da reparação integral, no qual a indenização se mede pela extensão do dano. Ocorre que a indenização prevista nas convenções e no Código Aeronáutico Brasileiro é, via de regra, limitada, como o disposto no art. 22 da Convenção de Varsóvia, que preestabelece limite máximo para o valor devido pelo transportador, a título de reparação. Tais limitações não se compatibilizam inteiramente com sistema do Código de Defesa do Consumidor.
O prazo prescricional previsto na Convenção também é menor do que o previsto no direito brasileiro, então, para os consumidores isso também é uma mitigação de um direito.
Ao se deparar com conflitos de norma, há no direito critérios de solução. Os critérios são da hierarquia entre as normas, da especialidade das normas, e antiguidade das normas.
Com relação à hierarquia, as normas de direito internacional que não versem sobre direitos fundamentais, uma vez regularmente incorporadas ao direito interno, situam-se no mesmo nível em que se posicionam as leis ordinárias. Então, os diplomas normativos em questão, as Convenções de Varsóvia e Montreal, não gozam de estatura normativa supralegal, uma vez que seu conteúdo não versa sobre a disciplina dos direitos humanos. Portanto, há duas normas de mesma hierarquia: o Código de Defesa do Consumidor, que é uma lei ordinária, e a Convenção de Varsóvia, que é uma norma internacional equiparada a lei ordinária.
A defesa do consumidor tem ainda uma base constitucional, pois a CF/88, em seu art. 5º, XXXII, dispõe que o “Estado promoverá, na forma da lei, a defesa do consumidor”, e, ainda, a defesa do consumidor foi erigida, também, à altura de princípios gerais da atividade econômica (art. 170, V, CF/1988).
Ocorre que há, também na Constituição Federal, uma previsão para que sejam observados os acordos internacionais quanto ao transporte internacional, regra do art. 178 do texto constitucional, que dispõe: “Art. 178. A lei disporá sobre a ordenação dos transportes aéreo, aquático e terrestre, devendo, quanto à ordenação do transporte internacional, observar os acordos firmados pela União, atendido o princípio da reciprocidade.”.
Neste ponto, então, o conflito se mantém.
Quanto à regra da especialidade, a Convenção de Varsóvia é uma norma especial em relação ao Código do Consumidor, já que trata de uma especial relação de consumo, que é a relação de serviço de transporte internacional.
Com relação ao critério da antiguidade, apesar de a convenção de Varsóvia ser mais antiga que o Código de Defesa do Consumidor, o Protocolo Adicional nº 4 de Montreal, que atualiza a norma, por ser mais recente que o Código de Defesa do Consumidor, detém a prevalência das normas de caráter internacional. Quando uma norma mais recente é aprovada, ela derroga a norma anterior naquilo que lhe é contrária.
Portanto, a maior dúvida se mantém com relação à hierarquia entre as normas, pois ambas as interpretações podem se basear na constituição.
Diante das duas diretrizes previstas na Constituição– uma que impõe a proteção ao consumidor e outra que determina a observância dos acordos internacionais – em matéria de transporte aéreo, cabe ao intérprete construir leitura sistemática do texto constitucional a fim de que se possam compatibilizar ambos os mandamentos.
A decisão do STF que fixou a prevalência das convenções ao CDC para os casos de transporte aéreo de passageiros, se baseou no argumento de que o art. 178, CF, prevê que, quanto ao transporte internacional, deve-se observar os acordos firmados pela União. E para a perspectiva de que a defesa do consumidor também está prevista na Constituição, foi debatido que a mitigação da aplicação do CDC neste ponto não viola a defesa do consumidor como um todo, não sendo a defesa do consumidor o único princípio consagrado no texto constitucional.
Ora, quanto a este último argumento, a prevalência das convenções, de fato, não anula a defesa do consumidor como um todo, pois nos pontos em que o CDC não a contraria, ele continuará a ser aplicado. Porém, não há como negar que ocorre um abrandamento da proteção dos direitos consumeristas.
Portanto, o ponto negativo da decisão foi que a imposição dessa nova interpretação é, de certo modo, prejudicial aos consumidores, que podem sofrer danos superiores à limitação prevista nas Convenções, danos estes que ficarão sem ser reparados. Além de um menor prazo de prescrição, tendo menos tempo para pleitearem direitos relativos ao transporte aéreo internacional.
O ponto positivo é que o cumprimento, por parte do Brasil, de um acordo internacional firmado é vantajoso no âmbito da Análise Econômica do Direito. Isso faz com que as empresas internacionais vejam no Brasil segurança jurídica, o que o beneficia economicamente, possibilitando que mais empresas prestem seus serviços aqui a um custo menos alto. Isso é benéfico para o consumidor brasileiro, pois pode haver mais opções de empresas, preços e serviços.