INTRODUÇÃO:
O presente artigo terá como foco realizar uma comparação entre o mundo real e virtual quanto ao tema de justiça e sua necessidade para o ser humano. Para tanto, serão comparados os sistemas, normas e conceitos do direito utilizados nas instituições reais de nosso planeta com aquelas introduzidas em jogos virtuais.
Não é atoa comparações práticas serão realizadas, mas o foco do estudo ficará por conta dos motivos que levaram a necessidade de se adotar esses sistemas, bem como o fundamento teórico e filosófico disto.
A comparação entre o real e virtual é pertinente na medida em que os ambientes com grandes concentrações de jogadores possuem a característica de se demonstrarem como excelentes laboratórios para os diversos campos da ciência. Não é atoa que muitas pesquisas de conteúdo social, econômico e psicológico são realizadas usando tal grupo, seja em uma perspectiva contida dentro de um jogo, ou cruzando dados com as diversas plataformas de entretenimento oferecidas atualmente.
É importante frisar que jogos diferentes tendem a atrair jogadores diferentes, onde um tipo de nicho específico pode ou não facilitar a introdução de medidas que tendem a desenvolver o conceito de justiça dentro de um universo virtual. Ainda assim, é recorrente a necessidade de justiça, seja estabelecida de um forma a priori, por meio de termos de uso e serviço pré-estabelecidos pelos desenvolvedores do jogo, ou sistemas a posteriori que podem surgir de iniciativas coletivas ou individuais dos indivíduos envolvidos nesse universo virtual, quais sejam: jogadores, empregados e desenvolvedores.
CONCEITOS:
a) Justiça:
O conceito de justiça foi o palco de grandes discussões desde períodos antigos da humanidade. Filósofos clássicos como Platão e Aristóteles empenharam grandes esforços em mapear o conceito metafísico de Justiça, ao ponto de serem citados em inúmeras obras posteriores. Independente do contexto em que se inseriam, onde estariam influenciados por demandas sociais e questões religiosas ou políticas, filósofos medievais, como São Tomás de Aquino ou iluministas, como Jean Jacques-Rousseau, remeteram grande parte de seus pensamentos em aproveitar a metafísica clássica envolvendo o tema de justiça.
Tendo isso posto, Platão em seu livro “A República” pondera que o homem justo é aquele que não faz mal a ninguém, ao contrário do injusto. Seu discípulo, Aristóteles, vai além, completando o conceito na medida em que o justo é aquele que equilibra situações, na medida em que ressarce aqueles que foram prejudicados e reprime os que lucraram de forma injusta. Obviamente, ambos os filósofos estão inseridos em um momento em que a humanidade já tinha a plena capacidade de constituir uma sociedade, como um meio de sobrevivência de seus indivíduos.
Não obstante, a realidade nem sempre foi a mesma, uma vez que foram precisos milhares de anos para os seres humanos desenvolverem essa percepção política e social de união. Nesse ponto, alguns autores – em destaque: Rousseau, Locke e Hobbes – trabalham com a ideia do estado de natureza, um período evolutivo anterior ao advento da necessidade de constituir uma sociedade, conceito que será abordado mais a frente.
Dessa forma, estariam os jogadores, ao ingressarem em um ambiente virtual, prontos, desde o início, para o conceito de justiça levantado pelos filósofos clássicos? Em suma, há muitas variáveis a serem levadas em conta.
Em regra, ao adquirirem um jogo ou softwares em geral, os usuários precisam aceitar os termos de uso deste produto, o que normalmente é apresentado na forma de uma EULA (End-User License Agreement). Destarte, a EULA é uma espécie de código a priori, anterior ao próprio jogo e seu universo, determinando aquilo que pode ou não ser realizado. Não obstante, as EULA possuem o costume de não tratar de práticas internas do jogo, mas sim questões externas que poderiam comprometer o seu desenvolvimento e propósito, é o exemplo de questões como o griefing1 e cheating, que são práticas nocivas ao universo do jogo, podendo até mesmo inviabiliza-lo.
Em uma analogia simples, a EULA pode ser comparada à própria concepção de direito natural, algo que estaria presente antes mesmo da positivação de normas, princípios e leis. A comparação pode até mesmo ser ampla, abrangendo questões como a Lei Divina demonstrada por São Tomás de Aquino, onde os desenvolvedores poderiam ser visto como uma espécie de Deuses daquele universo.
Por outro lado, como dito anteriormente, a EULA raramente dispõe sobre regras de convivência entre os personagens do jogo, tratando de limitar a ações de seus jogadores, que, desde que não ajam contra o seu conteúdo, não poderiam, em um momento inicial, serem penalizados pelos atos comuns ao universo virtual.
É nesse sentido que podemos comparar alguns ambientes virtuais como retratações muito próximas do estado de natureza, onde os jogadores podem agir livremente de forma a alcançar os seus objetivos, sem a presença de um órgão regulatório ou qualquer tipo de sistema que os impeça de agir conforme os seus próprios princípios sejam eles nocivos a terceiros ou não.
Os desenvolvedores, assim como a ideia de uma entidade divina, criaram um mundo e deram aos seus jogadores o livre arbítrio, não podendo interferir em cada pequeno detalhe deste universo, seja por questões práticas ou escolhas morais. Esse tipo de atitude costuma gerar diversos tipos de ambiente, a depender do nível de liberdade em que os jogos foram construídos.
Em ambientes completamente ditados pelas atitudes dos jogadores, comumente chamados de sandbox, a liberdade total tende a criar ambientes relativamente caóticos e hostis, onde jogadores agem conforme a sua necessidade sem levar em conta os danos a terceiros. Obviamente, o comportamento in game tende a estar atrelado à função que o jogador quer desempenhar naquele universo, mas a simples ideia de liberdade irrestrita os instiga a desempenhar essa função da forma como bem querem.
Por conseguinte, não é rara a ocorrência de comportamentos violentos como a destruição de bens de outros jogadores ou a própria eliminação de avatares de terceiros sem grandes motivos. Tal prática é bem recorrente em jogos como Ultima Online e EVE Online, ambos com ampla liberdade para seus jogadores.
Em resposta, os jogadores que foram prejudicados de alguma forma tendem a devolver o dano na mesma moeda, criando toda uma cultura baseada em causa-efeito semelhante à de códigos antigos, como o Código de Hamurábi, com destaque para a Lei de Talião. Justiça, nesse contexto, é retribuir o prejuízo sofrido, visivelmente direcionada à vingança e satisfação da vontade ou ira, sem qualquer artifício que possa dar a mínima ideia de um meio apropriado de resolver o problema.
Ademais, as medidas tomadas pelos desenvolvedores contra essas atitudes tendem a serem indiretas, tratando-se de proporcionar um meio para que os próprios jogadores lidem com o problema. É o caso do flag system, muito utilizado em jogos onde há a prática de matar os personagens de outros jogadores por simples caráter volitivo – também conhecido como PK (player killing). O flag system funciona como uma simples forma de “acusar” ou marcar os jogadores que estejam praticando o PK, na medida em que revela aos outros jogadores o que aquele indivíduo vem realizando. O flag system pode ter diversas extensões, desde a simples marcação dos jogadores, ao ponto de recompensar aquele(s) que eliminarem o tal agressor. Ainda assim, o sistema não passa de uma forma mais rebuscada e prática do que os jogadores já vinham fazendo, o que muitas das vezes apenas demonstra a “institucionalização” de certa conduta, com o aval dos desenvolvedores.
Entretanto, a Lei de Talião é o suficiente para resolver todos os problemas de um universo virtual? A simples ideia de liberdade irrestrita e a possibilidade de retaliação são o bastante para que comunidade do jogo alcance níveis razoáveis de convívio entre seus membros, sem a necessidade de políticas mais incisivas?
A resposta mais apropriada para as perguntas acima seria: depende. Quando se lida com o universo de jogos virtuais, mais do que em muitos outros ambientes, cada caso é um caso. Os desenvolvedores criam os jogos para certo propósito e, ainda que deem liberdade aos jogadores, essa liberdade está sempre condicionada à finalidade do jogo ou ao que ele consegue proporcionar aos seus jogadores. Em suma, a extensão das capacidades dos jogadores sempre estará limitada pelo universo em que estão inseridos. Dessa forma, alguns jogos podem propiciar condições inalcançáveis por outros, levando em conta as suas limitações fáticas e operacionais.
Logo, alguns jogos podem funcionar perfeitamente seguindo preceitos básicos como a Lei de Talião, sem que haja a necessidade de nenhum sistema de justiça mais eficiente ou desenvolvido. Por outro lado, jogos com uma grande comunidade de jogadores, além de níveis consideráveis de investimento, tendem a desenvolverem métodos mais eficazes e diretos de justiça. Outro motivo de mudança na política de justiça de um universo virtual pode ser pela ocorrência de algum acontecimento capaz de exigir tal mudança, caso contrário sofreria sérios danos.
Portanto, assim como a humanidade evoluiu ao ponto de desenvolver sistemas e instituições necessárias para o convívio da população, os ambientes virtuais tendem a seguir o mesmo padrão, desde que apresentados os requisitos para tanto. Essa evolução normalmente é movida por consenso populacional em que os indivíduos abrem mãos de liberdades individuais , vinculando cada um ao bem comum.
Como Rousseau (1999, p.45-46) põe:
O que é bom e conforme à ordem o é pela natureza das coisas e independente das convenções humanas. Toda justiça provém de Deus, só ele é a sua fonte; mas se soubéssemos recebê-la de tão alto, não necessitaríamos nem do governo e nem de leis. Há, por certo, uma justiça universal que emana unicamente da razão, porém essa justiça, para ser admitida entre nós, precisa ser recíproca.
Dessa forma, a reciprocidade da justiça é condição essencial para que a justiça universal seja aplicada e, conforme alguns teóricos, o que estimula isso é a ideia de um acordo firmado entre todos os indivíduos o que será abordado adiante.
b) O Contrato Social:
Como elucidado anteriormente, três grandes teóricos discorreram extensivamente sobre o Contrato Social, quais sejam: Rousseau, Locke e Hobbes. Cada um, obviamente, possui as suas particularidades, como o a forma em que o homem se encontrava no estado de natureza ou o fim do próprio Contrato Social.
Ainda assim, é relativamente comum a ideia de que o Contrato Social serve para transferir os indivíduos do estado de natureza para o estado civil. Nesse contexto, o estado de natureza é aquele tido como anterior a qualquer espécie de aparato estatal ou de controle da comunidade por meio de normas e leis positivas.
Rousseau (1999, p.25-26), elucida:
A passagem do estado de natureza ao estado civil produz no homem uma mudança considerável, substituindo em sua conduta o instinto pela justiça e conferindo às suas ações e moralidade que antes lhe faltava. Só então, assumindo a voz do dever o lugar do impulso físico, e o direito o do apetite, o homem, que até então não levara em contra senão a si mesmo, se viu obrigado a agir com base em outros princípios e a consultar sua razão antes de ouvir seus pendores, Conquanto nesse estado se prive de muitas vantagens concedidas pela natureza, ganha outras de igual importância: suas faculdades se exercem e se desenvolvem, suas ideias se alargam, seus sentimentos se enobrecem, toda a sua alma se ele a tal ponto que, se os abusos dessa nova condição não o degradassem amiúde, deveria bendizer sem cessar o ditoso instante que dela o arrancou para sempre, transformando-o de um animal estúpido e limitado num ser inteligente, num homem.
Hobbes (p.143-144), por outro lado, expõe:
Porque as leis de natureza (como a justiça, a eqüidade, a modéstia, a piedade, ou em resumo, fazer aos outros o que queremos que nos façam) por si mesmas, na ausência do temor de algum poder que as faça ser respeitadas, são contrárias às nossas paixões naturais, as quais nos fazem tender para a parcialidade, o orgulho, a vingança e coisas semelhantes. E os pactos sem a espada não passam de palavras, sem força para dar segurança a ninguém. Portanto, apesar das leis de natureza (que cada um respeita quando tem vontade de as respeitar e quando o poder fazer com segurança), se não for instituído um poder suficientemente grande para a nossa segurança, cada um confiará, e poderá legitimamente confiar, apenas na sua própria força e capacidade, como proteção contra todos os outros. Em todos os lugares onde os homens viviam em pequenas famílias, roubar-se e espoliar-se uns aos outros sempre foi um comércio, e tão longe de ser considerado contrária à lei de natureza que quanto maior era a espoliação consegui da maior era a honra adquirida. Nesse tempo os homens tinham como únicas leis as da honra, ou seja, evitar a crueldade, isto é, deixar aos outros as suas vidas e os seus instrumentos de trabalho. Tal como então faziam as pequenas famílias, também hoje as cidades e os reinos, que não são mais do que famílias maiores (para sua própria segurança) ampliam os seus domínios e, sob qualquer pretexto de perigo, de medo de invasão ou de assistência que possa ser prestada aos invasores, com toda a justiça se esforçam o mais possível para subjugar ou enfraquecer os seus vizinhos, por meio da força ostensiva e de artifícios secretos, por falta de qualquer outra segurança; e em épocas futuras esses feitos são evocados com honra.
Já Locke possui uma visão diferente do estado de natureza, onde os homens já seriam capazes de um pensamento racional e ditado pelo direito natural, de tal forma que a própria ideia de propriedade é anterior ao da consolidação de qualquer sociedade ou regramento positivado. Nesse sentido, o contrato social lockiano se demonstra como forma de pacto consensual e de confiança entre os interessados, para construção de uma sociedade civil a fim de expandir a proteção dos direitos sobre a propriedade e preservar os direitos naturais. Assim, explica (p.381-382):
Para entender o poder político corretamente, e derivá-lo de sua origem, devemos considerar o estado em que todos os homens naturalmente estão, o qual é um estado de perfeita liberdade para regular suas ações e dispor de suas posses e pessoas do modo como julgarem acertado, dentro dos limites da lei da natureza, sem pedir ou depender da vontade de qualquer outro homem.
Um estado também de igualdade, em que é recíproco todo o poder e jurisdição, não tendo ninguém mais que outro qualquer – sendo absolutamente evidente que criaturas da mesma espécie e posição, promiscuamente nascida para todas as mesmas vantagens da natureza e para o uso das mesmas faculdades, devam ser também iguais umas às outras, sem subordinação ou sujeição [...]
Com isso posto, a teoria de Locke é a que se encaixa melhor no contexto deste artigo, uma vez que trata os indivíduos, em um estado de natureza, como aqueles que possuem a capacidade racional e perfeita liberdade para regular suas ações como bem entendem. Hobbes adota uma definição consideravelmente negativa do estado de natureza, onde aposta na natureza má do ser humano e sua incapacidade de garantir os direitos se não pelo meio de um governante ou representante, a qual todos os outros indivíduos devem ser submissos.
É claro que de uma forma ou de outra, os jogadores estão submissos às decisões tomadas pelos desenvolvedores dos jogos, uma vez que eles que ditam a forma como o universo será. Entretanto, em ambientes de alta liberdade, ou seja, sandboxes, as empresas raramente interveem em questões internas do jogo, não há uma autoridade ou qualquer tipo de entidade que controle o jogo por dentro do sistema e toda espécie de controle realizada, em regra, é de maneira externa. As consolidações de guildas, facções, alianças e comunidades internas do jogo estão sempre atreladas à vontade dos próprios jogadores e a forma como eles moldam o universo em que estão inseridos. Além disso, parte-se da premissa que nesse cenário, os indivíduos não são desprovidos de racionalidade ou meros animais estúpidos, como coloca Rousseau, mas sim jogadores plenamente capazes de tomarem decisões por si. A “selvageria” ou violência demonstrada nesse ambiente não se trata de uma forma irracional e meramente instintiva de agir, mas sim uma atitude que os jogadores tomam por correta dentro do quadro fático em que estão.
O problema fica por conta de até onde essa vontade de agir de forma hostil e sem limites encontra problemas em sua aplicação, bem como na manutenção do universo em que ocorre. Esse foi o problema enfrentado pelo MMORPG (Massively Multiplayer Online Role-Playing Game) EVE Online, onde um acontecimento quase levou a destruição da comunidade do jogo, devido à tamanha insegurança gerada pela ação de certos jogadores, bem como a falta de qualquer atitude tomada pela desenvolvedora CCP Games.
No jogo em questão, situado em um universo utópico focado em viagens intergalácticas e uma ambientação de alta tecnologia espacial, os jogadores tendem a se organizarem em grandes aglomerados chamados corporações. Cada corporação costuma possuir seu próprio código de conduta e procedimento, de tal forma que uma corporação pode ser totalmente voltada para ações de guerra ou simples comércio. O grande acontecimento ocorreu quando um grupo de jogadores infiltrados em outra corporação gerou um prejuízo de aproximadamente £10,600. Além disso, o universo de EVE Online é conhecido pela alta liberdade de seus jogadores, bem como por ser totalmente tocado pelas ações dos mesmos, sem qualquer tipo de interferências de seus criadores no que tange a criação de novos enredos. Consequentemente, os desenvolvedores não viram nada de errado na atuação dos jogadores infiltrados, visto que eles não violaram nenhum termo de uso. Entretanto, a reação da comunidade foi dividida, gerando um sentimento de insegurança em alguns jogadores.
A questão principal fica no alto risco que os jogadores desse universo correm, uma vez que podem perder dias, meses ou até anos de desenvolvimento em um instante. Muitos desses jogadores não ficaram contentes com a ideia de sustentar a possibilidade de tamanho dano. Dessa forma, voltamos à ideia de os indivíduos, na medida em que possuem bens e posses, prezarem pelos mesmos ao ponto de necessitarem de mecanismos que garantam o benefício e proteção do usofruto de suas aquisições.
Esse e outros acontecimentos no universo do jogo criaram uma comoção na comunidade do EVE que chegou a movimentar a empresa criadora do jogo, CCP Games. Com isso, a desenvolvedora encomendou um estudo referente à instalação de um conselho deliberativo, constituído por jogadores, a fim de que esses possam eleger seus próprios representes e estes levarem suas demandas perante a própria desenvolvedora.
A instalação do Council of Stellar Management foi um marco dentro do universo de EVE Online, onde os jogadores encontraram uma forma de se sentirem representados perante a desenvolvedora, bem como qualquer tomada de decisão que vá afetar consideravelmente o universo em que estão inseridos. Por mais que o conselho tenha um mero caráter consultivo, ele conseguiu atrair os pressupostos de confiança e consentimento levantados por Locke, assim como o próprio conceito de moderação de Platão, onde os indivíduos são capazes de visualizar o bem comum acima de seus próprios desejos. A atuação do conselho foi exemplar em questões posteriores, como quando a desenvolvedora do jogo resolveu introduzir uma nova moeda no universo, utilizada apenas para o comércio de itens cosméticos, o que não agradou boa parte de seus jogadores. Em primeira instância, a decisão da CCP Games foi simplesmente ignorar as manifestações da comunidade, mas as atitudes e a insatisfação dos jogadores chegaram ao patamar de organizarem boicotes dentro do próprio universo, prejudicando intencionalmente o desenvolvimento da comunidade e exigindo uma tomada de atitude do Conselho para acatar suas demandas. Por conseguinte, a desenvolvedora, influenciada pelo Conselho, chegou a se retratar perante a comunidade do jogo e repensar a forma como iriam inserir a nova moeda.
Sendo assim, o Conselho existente no universo de EVE Online é apenas uma demonstração do que a necessidade por justiça ou até mesmo a simples representação pode gerar, na medida em que os indivíduos clamam por uma forma de terem seus direitos instaurados ou ao menos preservados, ao ponto de modificarem a própria natureza de um ambiente previamente estabelecido e regulamentado.
CONSIDERAÇÕES FINAIS:
A presença de sistemas de justiça em ambientes virtuais é algo relativamente recente, no entanto, não há como determinar até onde esse aparato pode evoluir. Há muitos jogos que misturam o próprio direito “comum” ao de ambientes virtuais, como Entropia Online ou Second Life, onde há a relação direta de questões patrimoniais entre o ambiente virtual e real.
A simples ideia de criar e administrar um patrimônio virtual soava absurda há alguns anos atrás, os próprios jogos que abriram as porta do mundo online restringiam a conexão de moedas virtuais com reais e puniam seus jogadores se qualquer comercialização referente ao personagem fosse realizada em um ambiente externo ao jogo. Não obstante, os tempos mudam e já estamos em uma era onde não é só possível se tornar um milionário virtual como também usufruir do lucro advindo de tais práticas. Esse é o caso de jogos como Entropia Online e Second Life, que abriram as portas para um novo nível de interação entre o ambiente virtual e real, permitindo a conversão de bens e moedas, com as devidas garantias e necessidades jurídicas.
Nesse contexto, é notável a forma como o ambiente virtual vem evoluindo e progredindo, a fim de satisfazer a demanda de seus jogadores. É claro que um sistema judicial propriamente dito e vinculante não foi instalado em nenhum jogo até então, mas a empresas tendem a gerar garantias e meios para que o seus jogadores se sintam em um ambiente justo, por mais que possa ser imprevisível e perigoso graças as própria natureza do jogo.
Outrossim, é de se reconhecer a semelhança entre os ambientes virtuais com períodos da história da humanidade, com suas devidas particularidades, em questões que envolvam o próprio controle político da comunidade e a necessidade de garantias para que o grupo se desenvolva. Assim como nossos antepassados agiam no intuito de manterem vivos os seus povos e prosperarem, todos os envolvidos em ambientes virtuais presam pela continuação deste, adotando medidas que não inviabilizem a sua existência. É por questões como essas que alguns desenvolvedores interferem diretamente em seus jogos, facilitando o ingresso de novos jogadores e permitindo que esses evoluam dentro do mundo, ainda que seja preciso frear as atitudes de jogadores veteranos ou práticas nocivas e tóxicas a comunidade.
Até mesmo ambientes não persistentes baseados em partidas eventuais, como League of Legends, DoTA2 2 e Counter Strike costumam adquirir meios de controlar o comportamento de seus jogadores, seja na forma de tribunais de conduta ou em sistemas baseados em feedback da própria comunidade em relação a jogadores tóxicos e nocivos, ainda que estes sejam formas de controle externo.
Quem sabe um dia os ambientes virtuais desenvolverão os seus conceitos de “justo x injusto” ao ponto de adquirirem sistemas de justiça capazes de promover o princípio da imputação tão defendido por Hans Kelsen, como uma forma de atestar que os seres humanos, independente do cenário em que estão inseridos, tendem a desenvolverem suas concepções de justiça para algo além da mera causalidade e costumes baseados em questões metafísicas. Até lá, o comunidade virtual continua em seu ritmo acelerado de evolução, se adaptando aos obstáculos interpostos aos seus membros e aproveitando os ensinamentos dessas experiências.
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