7. DEVER DE COOPERAÇÃO
Tradicionalmente, a obrigação, especialmente o contrato, foi considerada composição de interesses antagônicos, do credor de um lado, do devedor de outro. Por exemplo, o interesse do comprador seria antagônico ao interesse do vendedor. Tal esquema era adequado ao individualismo liberal, mas é inteiramente inapropriado à realização do princípio constitucional da solidariedade, sob o qual a obrigação é tomada como um todo dinâmico, processual, e não apenas como estrutura relacional de interesses individuais. O antagonismo foi substituído pela cooperação, tido como dever de ambos os participantes e que se impõe aos terceiros, como vimos na tutela externa do crédito. Revela-se a importância não apenas da abstenção de condutas impeditivas ou inibitórias, mas das condutas positivas que facilitem a prestação do devedor. O dever de cooperação é mais exigente nas hipóteses de relações obrigacionais duradouras.
Perlingieri ressalta que "a obrigação não se identifica no direito ou nos direitos do credor; ela configura-se cada vez mais como uma relação de cooperação". Isso implica mudança radical de perspectiva: a obrigação deixa de ser considerada estatuto do credor, pois "a cooperação, e um determinado modo de ser, substitui a subordinação e o credor se torna titular de obrigações genéricas ou específicas de cooperação ao adimplemento do devedor" [20].
Ainda que não distinga os deveres gerais de conduta (salvo quando se refere à boa-fé) dos que denomina deveres acessórios de conduta, reconhece Antunes Varela que estes tanto recaem sobre o devedor como afetam o credor, "a quem incumbe evitar que a prestação se torne desnecessariamente mais onerosa para o obrigado e proporcionar ao devedor a cooperação de que ele razoavelmente necessite, em face da relação obrigacional, para realizar a prestação devida" [21]. Entendemos, porém, que a cooperação não é efeito secundário dos deveres acessórios, mas ela própria dever geral de conduta que transcende a prestação devida para determinar a obrigação como um todo.
O dever de cooperação resulta em questionamento da estrutura da obrigação, uma vez que, sem alterar a relação de crédito e débito, impõe prestações ao credor enquanto tal. Assim, há dever de cooperação tanto do credor quanto do devedor, para o fim comum. Há prestações positivas, no sentido de agirem os participantes de modo solidário para a consecução do fim obrigacional, e há prestações negativas, de abstenção de atos que dificultem ou impeçam esse fim.
Em certas obrigações o dever de cooperação é mais ressaltado, especialmente quanto ao credor. Orlando Gomes, referindo-se a Von Tuhr, demonstra que em algumas "é indispensável a prática de atos preparatórios, sem os quais o devedor ficaria impedido de cumprir a obrigação" citando o exemplo clássico da escolha do credor nas obrigações alternativas. Se o credor se nega a praticar o ato preparatório, torna-se responsável pelo retardamento no cumprimento da obrigação [22].
NOTAS
1 LARENZ, Karl. Derecho de obligaciones. Trad. Jaime Santos Briz. Madrid: ERDP,1958, p. 22.
2 VARELA, João de Matos Antunes. Das obrigações em geral. Vol. I. Coimbra: Almedina, 1986, p. 117.
3 CORDEIRO, António Manuel da Rocha e Menezes. Da boa fé no direito civil. Coimbra: Almedina, 1997, p. 603-31.
4 Cf. HARTKAMP, Arthur. The principles of european contract law. Stvdia ivridica: colloquia 8. Coimbra, n. 64, p. 53-58, 2002.
5 CORDEIRO, 1997, p. 1.234.
6 MENGONI, Luigi. Spunti per una teoria delle clausule generali. In: Il principio de buena fede. Francesco D. Busnelli (Coord.). Milano: Giuffrè, 1987, p. 10.
7 LARENZ, 1958, p. 143.
8 LARENZ, 1958, p. 110.
9 BLACK, Henry Campbell. Black’s law dictionary. St. Paul: West Publishing, 1990, verbete estoppel.
10 PUIG BRUTAU, José. Estudios de derecho comparado: la doctrina de los actos proprios. Barcelona: Ediciones Ariel, 1951, p. 102.
11 BORDA, Alejandro. La teoria de los actos proprios. Buenos Aires: Abeledo-Perrot, 1993, p. 12.
12 SCHREIBER, Andrson. A proibição de comportamento contraditório: tutela da confiança e venire contra factum proprium. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 271.
13 REALE, Miguel. O projeto do Código Civil. São Paulo: Saraiva, 1986, p. 10.
14 Não é por acaso que um dos maiores teóricos do neoliberalismo, Frederick Hayeck, entende que a justiça social é o principal obstáculo a ser removido. Em visão profundamente individualista, diz que "ao contrário do socialismo, deve ser dito que o liberalismo se dedica à justiça comutativa, porém não àquilo que se denomina justiça distributiva ou, mais recentemente, justiça ‘social’". Para ele, em uma ordem econômica baseada no mercado, o conceito de justiça social não tem sentido, nem conteúdo. No jogo econômico, somente a conduta dos jogadores pode ser justa, não o resultado. HAYECK, Frederick. Liberalismo: Palestras e Trabalhos. Trad. Karin Strauss, São Paulo: Centro de Estudos Políticos e Sociais, 1994, p. 51.
15 ARISTÓTELES. Ética a Nicômacos. Trad. Mário de Gama Cury. Brasília: Ed.UnB, 1995, p. 109.
16 CARBONNIER, Jean. Flexible Droit. 6ª edição. Paris: LGDJ, 1988, p. 273.
17 A diretiva européia nº 84/450/CEE define a publicidade como "qualquer forma de comunicação feita no âmbito de uma atividade comercial, artesanal ou liberal tendo por fim promover o fornecimento de bens ou de serviços, incluindo os bens imóveis, os direitos e as obrigações".
18 GHESTIN, Jacques. Traité de droit civil: la formation du contrat. 3ª edição. Paris: LGDJ, 1993, p. 534.
19 BENJAMIN, Antônio Herman de Vasconcelos. in Código Brasileiro de Defesa do Consumidor. Ada Pellegrini Grinover et al. (Coord.). Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1998, p. 266.
20 PERLINGIERI, Pietro. Perfis do direito civil: introdução ao direito civil constitucional. Trad. Maria Cristina de Cicco. Rio de Janeiro: Renovar, 1997, p. 212.
21 VARELA, 1986, p. 119.
22 GOMES, Orlando. Obrigações. Rio de Janeiro: Forense, 1998, p. 102.