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O direito à diferença sexual e a busca pela sua proteção nos tribunais superiores

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Agenda 02/10/2018 às 10:00

A luta pelo direito de ser diferente, sobretudo no universo da sexualidade, é respaldada por todo o arcabouço jurídico construído em torno dos dieitos individuais e coletivos.

RESUMO: O presente trabalho tem por fim discorrer sobre o direito à diferença sexual e a busca pela sua proteção no âmbito dos Tribunais Superiores. Nesse estudo, daremos  especial enfoque ao pluralismo político e ao princípio da dignidade da pessoa humana. Abordaremos a essencialidade da discriminação dos diferentes como elemento indissociável da democracia, de forma lícita, justificável, seja no aspecto da universalização das normas, seja na adequabilidade destas aos casos concretos, bem como a discriminação de forma ilícita. Enfatizaremos a discriminação por gênero e por orientação sexual. E, por fim, o reconhecimento de direitos na diversidade sexual pelos tribunais superiores.

PALAVRAS-CHAVE: Diversidade sexual. Reconhecimento de Direitos. Tribunais Superiores.


1 INTRODUÇÃO

É consabido que os imperativos de sobrevivência concebidos na pré-história e os direitos divinizatórios dos monarcas, existentes na antiguidade, cederam lugar ao respeito aos direitos humanos como essência do poder político. Nas lições de Norberto Bobbio[2], a relação politica foi encarada de um modo diferente, passando-se da prioridade dos deveres dos súditos à prioridade dos direitos dos cidadãos, não mais predominante do ângulo do soberano, mas sim daquele do cidadão.

A importância dos séculos XVI e XVII foi fundamental para a compreensão dos ideais libertários do século XVIII, pois, pela primeira vez, o homem viu os seus direitos individuais serem reconhecidos. A despeito do progresso tecnológico observado na Segunda Revolução Industrial, os ideais revolucionários do século XVIII, todavia, não impediram a consolidação de um regime capitalista imperialista e a exploração do homem pelo próprio homem – marca registrada do século XIX.

Em meio às injustiças surgiu o Constitucionalismo Social, consolidado pela Carta Alemã de Weimar, em 1919.  No Brasil, a despeito de todas as dificuldades, os direitos sociais, trabalhistas e coletivos ganharam densidade normativa com sua positivação não somente na Constituição, mas em leis infraconstitucionais, como a Consolidação das Leis Trabalhistas e a Lei Eloi Chaves, que origem ao nosso Direito Previdenciário. A igualdade, sob o aspecto formal, ganha uma concepção material, na qual se permite dizer que os iguais devem ser tratados igualmente e os desiguais desigualmente, na medida de sua desigualdade (fórmula clássica de Aristóteles).

Passado meio século, eis que surge um novo Constitucionalismo, cuja essência alterou, consideravelmente, o conceito do princípio da igualdade, que passou a significar o princípio da dignidade da pessoa humana. O conteúdo normativo se sedimenta, então, nas várias faces e diferenciações da humanidade, notadamente na defesa dos hipossuficientes, das minorias étnicas e sociais.

Atualmente, no período contemporâneo, compreende-se a igualdade procedimental como uma igualdade aritmeticamente inclusiva para viabilizar que um número crescente de pessoas possa participar  da produção de politicas públicas do Estado e da sociedade. A preocupação volta-se para o respeito aos direitos humanos em função das particularidades individuais e coletivas dos diferentes grupamentos humanos, os quais se distinguem por fatores como origem, sexo, opção sexual, raça, idade, sanidade etc.

Nesse diapasão, o pluralismo político é alçado à condição de princípio indissociável da ideia de dignidade humana, exigindo do Estado e da Sociedade a proteção de todos os que se encontram em situação diferente de nós pelos aspecto supramencionados.

O modelo de pluralismo, tal como postulado por Peter Härble, é entendido como uma “multiplicidade de ideias e interesses, ou vice-versa, no seio de uma determinada comunidade política, dentro dos parâmetros do aqui e agora [...]. O pluralismo implica basicamente a ‘abertura’ do sistema constitucional: ‘suas teorias e doutrinas, suas interpretações e intérpretes – sobretudo em nível de direitos fundamentais –, e sua inerente dogmática jurídica, junto com seu posterior desenvolvimento”[3] . Tal modelo afetou diretamente os ordenamentos jurídicos, notadamente o seu sistema de fontes, situação esta que, metaforicamente, passou a ser considerada como um “transbordamento das fontes do direito”.

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3. DAS FORMAS DE DISCRIMINAÇÃO: LÍCITA E ILÍCITA

Nos escólios de Álvaro Ricardo de Sousa Cruz, a discriminação pode ser entendida como sendo

toda e qualquer forma, meio, instrumento ou instituição de promoção da distinção, exclusão, restrição ou preferência baseada em critérios como a raça, cor da pele, descendência, origem nacional ou étnica, gênero, opção sexual, idade, religião, deficiência física mental ou patogênica, que tenha o propósito ou efeito de anular ou prejudicar o reconhecimento, gozo ou exercício em pé de igualdade de direitos humanos e liberdades fundamentais nos campos político, econômico, social, cultural ou em qualquer atividade no âmbito da autonomia pública ou privada[4].

Todavia, nem toda discriminação é considerada odiosa ou incompatível com o Direito Constitucional. Vejamos.

3.1. Da discriminação lícita

 A Constituição Federal de 1988 contempla o direito geral à igualdade. Consoante Marcelo Novelino[5], o princípio da igualdade jurídica está consagrado no caput  do art. 5º da Lei Maior, in verbis: “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: [...]”.

Já a igualdade fática está prevista no art. 3º, III, nestes termos: “Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: [...] III - erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais”.

Para que a igualdade jurídica atenda às exigências do princípio da dignidade da pessoa humana e da produção discursiva,  não se impõe ao legislador o dever de tratar todos exatamente da mesma forma; ao contrário, a igualdade jurídica exige tratamento desigual a indivíduos, grupos, coisas ou situações essencialmente desiguais. É o caso, por exemplo dos tratamentos diferenciados previstos pela própria Constituição da República em razão do gênero (arts. 143, §2º, 40, § 1º, III, 2011, §7º), da capacidade física (arts. 40, § 4º, I, e 201, § 1º) ou econômica (art. 5º, LXXIV e  LCXXVI, e 145, § 1º) [6].

O princípio da igualdade fática tende a entrar em confronto com o da igualdade jurídica, porquanto a adoção de medidas voltadas à promoção da igualdade no plano dos fatos (ações afirmativas[7]) pressupõe desigualdade de tratamento jurídico e esta, por sua vez, tem como consequência a manutenção das desigualdades de fato.  Nesse contexto, a adequação das normas válidas ao caso concreto se mostra indispensável para a aferição da legitimidade de medidas ou ações de cunho discriminatório.

Nos Estados Unidos, a Suprema Corte é extremamente rigorosa no exame de qualquer critério de diferenciação, a exemplo da raça e do sexo, entre outros. Como observa Fernanda D. L. Lucas da Silva o leading case nesse campo é Skiner versus Oklahoma, 313, U.S. 535, de 1942 em que:

[...] a Suprema Corte dos Estados Unidos invalidou lei estadual de odiosa inspiração ‘lombrosiana’ que estabelecia a esterilização compulsória dos condenados reincidentes por crimes apenados com reclusão e que envolvessem torpeza moral (felonies involving moral turpitude). Ao declarar a inconstitucionalidade de tal estatuto o órgão máximo do Judiciário americano entendeu  que o direito de procriar configura uma liberdade individual insubtraível e que, portanto, qualquer interferência legislativa em seu domínio somente pode justificar-se por motivos superiores, o que, à evidencia, não ocorria na espécie[8].

O respeito à diferença deve ser um esforço contínuo em uma sociedade plural que pressupõe exatamente o dissenso e a divergência em relação a projetos de vida,  refletindo-se no texto constitucional por meio de princípios contrários que concorrem entre si para reger uma determinada situação.

Ocorre que nem sempre estaremos diante de condutas humanas (ação ou omissão) que respeitem os direitos das pessoas. Neste caso, surge a discriminação ilícita que, de um modo geral resulta de um preconceito com base em raça, sexo, idade, opção religiosa, entre outros critérios. É o que iremos abordar em sequência .

3.2. Da discriminação ilícita

 Consoante Álvaro Ricardo, a violação dos direito fundamentais, por meio da discriminação, pode se manifestar de diferentes formas, notadamente, direta ou intencional e de fato.

Na discriminação direta ou intencional, o agente pratica uma conduta da qual se depreende claramente o animus discriminatório, ou seja, o dolo correspondente à vontade de afrontar o direito, e a integridade física ou moral, de alguém. Apesar de essa forma de discriminação ser mais rara de ocorrer no Brasil, encontra-se tipificada nas Leis nos 7.716/1989 e 9.459/1997.

A seu turno, a discriminação de fato (“racismo inconsciente”), mais recorrente no Brasil, pressupõe a ignorância do discriminador, que não tem consciência do mal que provoca, podendo ocorrer tanto na esfera pública como na privada ­­– é o caso das blagues e piadas, tidas por politicamente incorretas, e que, por esse motivo, ocorrem e proliferam cada vez mais. Evidencie-se que a política de neutralidade e indiferença do Estado para com as vítimas da discriminação também constitui uma forma de discriminação de fato.

Nos Estados Unidos, a aprovação do Estatuto dos Direitos Civis no governo Lyndon Johnson, em 1964, revela que, ao contrário do Brasil, esse problema já vem sendo enfrentado pelo governo e pela sociedade americana há bastante tempo.

No Brasil, salvo algumas exceções em que a prática discriminatória tem sido considerada presumida, o Judiciário ainda está bem longe de se manifestar contra a prática ilegítima de discriminação, mantendo uma postura conservadora. Vale dizer que somente a discriminação direta, intencional e com motivação exclusiva permite ao cidadão obter indenização ou correção pelo malefício que sofreu. Analisemos nos capítulos seguintes a discriminação contra a mulher e por orientação sexual.


4. DA DISCRIMINAÇÃO POR GÊNERO

Sempre que nos deparamos com o tema “discriminação por gênero” imaginamos logo de que forma a mulher pode ser protegida diante de uma sociedade com conotações tão patriarcais, como meio de garantir, efetivamente, a sua participação no mercado de trabalho, na política e na sociedade. Analisemos, inicialmente, o espaço de cidadania feminino no Oriente e no Ocidente para então refletirmos, com mais propriedade, a discriminação sofrida pela mulher.

Bastante conhecido na mídia e no mundo foi o caso da camponesa nigeriana Safiya que, em fevereiro de 2001, aos 35 anos de idade, deu à luz uma menina, após ter se divorciado de seu marido há apenas dois anos antes, em razão  dos abusos e espancamentos sofridos por ela.  Como é cediço, Safya foi condenada por crime de adultério, mas não sem antes revelar que havia sido estuprada por seu próprio primo, de 60 anos, casado com outras duas mulheres. Ao ser inquirido sobre tal acusação, ele negou a prática criminosa. Então, diante da palavra de um homem e a da vítima, ele foi imediatamente liberado e ela encarcerada. Sua pena foi a morte por lapidação, ou seja, ser enterrada até o pescoço para então ser apedrejada até a morte.

Após o veredito condenatório, muitas manifestações ocorreram ao redor do mundo. A Anistia Internacional, uma organização não governamental ligada aos direitos humanos, ao tomar conhecimento do fato pelo advogado de Safya, conseguiu recolher 350.000 assinaturas na Espanha e 500.000 em Paris, e, na Itália, após a cidade de Nápoles ter declarado Safya cidadã de honra, a então Prefeita Rosa Iervolino Russo conclamou todas as mulheres a apoiarem a iniciativa da Anistia para que Safya fosse absolvida.

Tendo a vítima recorrido para a Shari’s Court (a Suprema Corte da Nigéria), depois de travar longa batalha judicial – na qual foi obrigada a se retratar da acusação de estupro contra seu primo, além de atestar que a sua filha não era “fruto de pecado”, mas concebida com seu ex-marido. Em 25.3.2002 Safya foi absolvida. A Corte considerou o crime inexistente, pois seu primo aceitou sua retratação e seu ex-marido declarou que a aceitava, novamente, como esposa.

Esse caso emblemático serve, apenas, para ilustrar a condição da mulher em países de terceiro mundo: o emprego da burkha, a proibição de estudar, ou trabalhar no Afeganistao no regime ditatorial do Talibã, o tráfico de escravas, o lenocínio (tráfico para prostituição), continuam a serem práticas recorrentes no Oriente Médio. A cirurgia “a seco” de partes íntimas da mulher ocorre, sobretudo, na África, no Egito e na Arábia, conhecida por “mutilação faraônica”.

No ocidente, o espaço da cidadania feminina tem crescido consideravelmente, de forma que da condição de servil de tutela em relação a pais e maridos, a mulher vem cada vez mais ganhando espaço na vida pública e na privada, mas longe está de findar a discriminação por critério de gênero, como se verifica pela quantidade de mulheres mortas e lesionadas que figuram nas Delegacias da Mulher nos grandes centros urbanos existentes em nosso país. Além disso, questões como o parto, aborto e prostituição ainda são negligenciadas no Brasil.

Em pesquisa realizada pelo IBGE  sobre as condições de vida da população brasileira constatou-se que, malgrado as mulheres tenham adiado a ideia da maternidade para, em média, 40 anos de idade, as tarefas atribuídas a homens e mulheres ainda trazem a mulher como protagonista da vida doméstica. Em termos percentuais, o estudo demonstra que apenas 50% dos homens contribuem com os afazeres domésticos, já as mulheres representam 88,5 %.

Como sabemos, até as décadas de 70/80 do século passado para os homens, permitir que suas mulheres exercessem qualquer outro tipo de trabalho fora de casa, representava uma humilhação pública para eles, por criar na sociedade a imagem que o marido não poderia arcar sozinho com as despesas de sua família. Inúmeros eram os casos de frustração das mulheres que não puderam desempenhar uma profissão. Não é demais lembrar o famoso caso ocorrido em Minas Gerais em que um Procurador de Justiça, que compunha a banca examinadora para o ingresso no cargo de Promotor de Justiça, afirmara ser inadmissível que uma mulher desquitada e mãe de dois filhos pudesse ser aprovada no certame, pois poderia macular a imagem da instituição com o seu mau exemplo.

Consoante Álvaro Ricardo de Sousa Cruz, as mulheres ainda hoje são tratadas com discriminação, pois em média percebem 25 % a menos que os homens no exercício da mesma atividade. Assim, caso não haja um incentivo mediante aprofundamento das políticas públicas voltadas para a redução da desigualdade de gênero, os estudiosos da matéria preconizam que será preciso, no mínimo, mais de 87 anos para equiparar os salários dos homens e das mulheres.

Sobre a autora
Ana Karina Vasconcelos da Nóbrega

Especialista em Direito Público e Direito Privado pela Escola Superior de Magistratura do Estado do Piauí (ESMEPI). Especialista em Direito Eleitoral pela Universidade do Sul de Santa Catarina (Unisul). Especialista em Direito Constitucional pela Universidade Anhanguera (Uniderp). Mestre em Direito e Políticas Públicas pelo Centro Universitário de Brasília (UniCeub). Doutoranda em Direito, Políticas Públicas, Estado e Desenvolvimento pelo Centro Universitário de Brasília (UniCeub). Analista Judiciário e Assistente de Gabinete de Ministro do Tribunal Superior Eleitoral (TSE).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

NÓBREGA, Ana Karina Vasconcelos. O direito à diferença sexual e a busca pela sua proteção nos tribunais superiores. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 23, n. 5571, 2 out. 2018. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/69033. Acesso em: 21 nov. 2024.

Mais informações

O presente artigo tem por fim a obtenção de nota no curso do Doutorado na UniCEUB do qual esta autora participa. Ja foram publicados outros artigos, porém em periódicos distintos, tais como Revista de Direito Público do IDP e Revista de Direito Eleitoral do Maranhão.

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