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Dignidade da pessoa humana:

referenciais metodológicos e regime jurídico

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Agenda 24/06/2005 às 00:00

4. A positivação da dignidade humana

A preocupação com a dignidade da pessoa humana tem encontrado ressonância numa generalizada consagração normativa, geralmente no próprio texto constitucional, assumindo o status de norma estruturante de todo o ordenamento jurídico. Apesar disso, não é divisada uma unidade metodológica quanto ao lugar por ela ocupado e à exata extensão da inter-relação mantida com as normas de organização estatal e com a própria disciplina dos direitos fundamentais, em especial com os direitos econômicos, sociais e culturais. A partir de uma situação aparentemente isonômica de liberdade, os Estados, por seus respectivos poderes constituintes, conferem um tratamento diversificado à dignidade da pessoa humana. [27]

A Constituição brasileira, além de considerá-la um princípio fundamental da República (art. 1º, III), coexistindo, lado a lado, com a fundamentalidade igualmente reconhecida na soberania, na cidadania, nos valores sociais do trabalho e da livre iniciativa e no pluralismo político, consagrou a prevalência dos direitos humanos nas relações internacionais mantidas pelo Estado (art. 4º, II) e dela igualmente tratou no Título VIII, intitulado "Da Ordem Social", estabelecendo que o planejamento familiar deveria fundar-se nos "princípios da dignidade humana e da paternidade responsável" (art. 226, § 7º) e que é dever da família, da sociedade e do Estado assegurar ao idoso (art. 230, caput) e, com absoluta prioridade, à criança e ao adolescente (art. 227, caput), dentre outros direitos, o respeito à dignidade.

Também a Constituição portuguesa considerou a dignidade da pessoa humana um princípio fundamental (art. 1º), remeteu à lei o estabelecimento de "garantias efetivas contra a utilização abusiva ou contrária à dignidade humana, de informações relativas às pessoas e famílias" (art. 26, 2) e a obrigação de garantia da dignidade pessoal e da identidade genética do ser humano, em especial nas áreas tecnológica e de experimentação científica, bem como estatuiu o dever de o Estado, para a proteção da família, regulamentar a procriação assistida de modo a salvaguardar a dignidade da pessoa humana (art. 67, 2, e). O texto constitucional português ainda determina que as normas relativas aos direitos do homem devem ser interpretadas e integradas em harmonia com a Declaração Universal dos Direitos do Homem (art. 16, 2), documento este que, além de consagrar, logo em seu preâmbulo, o respeito à dignidade de "todos os membros da família humana", dispõe, em seu art. 1º, que "todos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos".

Diversamente das referidas Cartas, que tratam a dignidade humana como um princípio fundamental do próprio Estado e, em incursões essencialmente casuísticas, voltam a exortar a sua imperatividade em outras passagens, a Grundgesetz alemã principia o seu texto com o título "Os Direitos Fundamentais" (Die Grundrechte), nele proclamando que "A dignidade do homem é intangível. Os poderes públicos estão obrigados a respeitá-la e a protegê-la" (art. 1º, 1). Disso resulta que "o povo alemão proclama a sua adesão aos direitos invioláveis e inalienáveis do homem como fundamento de toda comunidade humana, da paz e da justiça no mundo" (art. 1º, 2).

Ainda que o epicentro de uma comunidade politicamente organizada seja o homem, é inegável que um texto constitucional visa, primordialmente, à organização do poder político, estabelecendo uma divisão de competências, meios de participação popular e sistemas de limitação e de controle desse poder. Nessa perspectiva, vê-se que o conteúdo objetivo que ressalta da expressão "princípio fundamental do Estado" não apresentará, sob o prisma axiológico, dissonâncias de monta em relação à ótica subjetiva retratada na referência aos "direitos fundamentais", isto porque as noções de Estado e homem guardam entre si uma relação de meio e fim. O Estado não é um fim em si mesmo, estando umbilicalmente ligado à satisfação das necessidades humanas. [28]

O reconhecimento do caráter normativo do princípio da dignidade da pessoa humana, desde que preservada a sua essência, conduzirá a um lugar comum, quer se parta de uma posição ativa (o direito em sentido lato), quer se parta de uma posição passiva (o dever). Não bastasse isto, a própria Grundgesetz encampa distintos referenciais, pois, a partir da perspectiva subjetiva enunciada com o título "Os Direitos Fundamentais", harmoniza paradigmas subjetivos e objetivo-organizatórios ao se referir, no mesmo preceito - o art. 1º, 1 – à dignidade como elemento intangível do homem e à obrigação dos poderes públicos em respeitá-la e protegê-la.

Assumindo a Constituição o status de pedra fundamental da organização política, todos os direitos nela consagrados serão oponíveis, em maior ou menor medida, mas de forma indefectível, ao Estado. De igual modo, sendo o homem o epicentro da referida organização, quaisquer deveres imputados ao Estado, direta ou indiretamente, a ele alcançarão, daí resultando a existência de direitos correlatos. Assim, consagrando o dever do Estado ou contemplando o direito do homem, alcançará a Constituição efeitos axiológicos paritários. A positivação simultânea de ambos, no entanto, longe de ser uma superfetação de termos, realça o compromisso ético-jurídico do Estado em velar pela dignidade humana. Especificamente em relação à Grundgesetz, não é preciso ressaltar que, em 1949, ainda afloravam as cicatrizes deixadas pelo nacional-socialismo, o que justifica o realce atribuído a esse valor verdadeiramente fundamental.


5. A dignidade humana como limite material de revisão constitucional

Se a dignidade é um valor indissociável do ser humano, permitindo, inclusive, seja divisado um núcleo fixo comum entre a generalidade das pessoas, até que ponto se mostra relevante a sua positivação? Uma vez positivada, assumindo o status de norma constitucional, é realmente necessário que a dignidade da pessoa humana passe a integrar o catálogo de limites materiais ao exercício do poder reformador ou de revisão?

Situação comum no constitucionalismo contemporâneo, marcado pela rigidez constitucional, tem sido a fixação de limites materiais, formais, temporais ou mesmo circunstanciais para a reforma da Constituição. Especificamente em relação aos limites materiais expressos, a fórmula utilizada tanto pode consistir na referência à imutabilidade de determinados preceitos constitucionais, como o faz a Grundgesetz, [29] ou na exclusiva menção a determinados princípios estruturantes do sistema, caso das Cartas brasileira (art. 60, § 4º) e portuguesa (art. 288). Os limites materiais, além de expressos, podem ser igualmente implícitos, transcendentes ou imanentes, sendo deduzidos do "telos" constitucional (v.g., a imutalibilidade da própria norma que consagra o limite de revisão). [30]

A essência, no entanto, parece ser a mesma: garantir a intangibilidade de certos princípios estruturantes, sendo mesmo possível, para a sua clarificação ou reforço, a modificação dos preceitos que os albergam. [31] Deve ser estabelecida uma gradação entre os preceitos constitucionais e o "núcleo forte" da Constituição: enquanto os preceitos tornam as normas constitucionais semanticamente palpáveis, o "núcleo forte" aglutina os princípios supremos que exprimem os valores essenciais da ordem constitucional. Daí resulta a mutabilidade dos preceitos, o que, por preservar as opções políticas fundamentais do Constituinte, em nada compromete o reconhecimento da Constituição originária. [32]

Enquanto a Grundgesetz faz menção expressa à imutabilidade do princípio da dignidade humana (arts. 79, 2, e 1º), as Constituições brasileira e portuguesa, embora a ele dispensem um tratamento diferenciado, considerando-o um princípio fundamental do Estado e mantendo-o formalmente dissociado dos direitos fundamentais, somente aos últimos se referem como limites materiais de revisão (respectivamente, art. 60, § 4º, e art. 288, d). Em que pese a aparente dicotomia de tratamento, é evidente que a dignidade humana - além de intimamente inter-relacionada com os direitos fundamentais, direcionando a sua interpretação, contribuindo para a ponderação e solução das colisões e, em refluxo, tendo sua vagueza semântica por eles reduzida – é um princípio transcendente à ordem constitucional, do que deriva a sua imutabilidade.

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A transcendência da dignidade humana pode ser aquilatada a partir do grande número de declarações, tratados, pactos e convenções internacionais, em sua maioria multilaterais e celebrados com a intervenção de organizações internacionais, o que bem demonstra o esforço na sedimentação de determinados direitos inerentes ao homem. Ainda que o sistema apresente debilidades, pois referidos atos, em rigor técnico - além de admitirem reservas - só vinculariam aos Estados-Partes, é inegável sua aspiração à universalidade, permitindo o paulatino reconhecimento da fundamentalidade de determinados direitos.

O respeito à dignidade humana, hodiernamente concebida como um verdadeiro princípio de ius cogens, em muito contribui à interpenetração das ordens jurídicas nacional e internacional. [33] Com isto, fortalece a posição jurídica do indivíduo em relação ao Estado e, como dissemos, termina por estabelecer limitações à própria soberania estatal nesse quadrante. Dissociando-se o Estado desses valores comuns, além de estar sujeito à responsabilização internacional, inclusive sofrendo medidas coercivas em situações extremas (v.g., no caso de as violações massivas dos direitos humanos, a juízo do Conselho de Segurança das Nações Unidas, com base no Capítulo VII da Carta, constituírem uma ameaça à paz internacional [34]), também os seus dirigentes poderão ser penalmente responsabilizados. Nesse particular, apesar de o Tribunal Penal Internacional estar assentado em bases voluntaristas, [35] devem ser lembrados os Tribunais Internacionais criados pelo Conselho de Segurança, de jurisdição obrigatória e não-voluntarista, para o julgamento dos responsáveis pelos ilícitos praticados nos conflitos na antiga Iugoslávia (Resolução nº 808, de 1993) e no Ruanda (Resolução nº 955, de 1994).

Os limites materiais de revisão tanto podem ter uma função essencialmente declarativa, explicitando os limites implícitos na Constituição (rectius: princípios fundamentais), como podem assumir uma função declarativo-constitutiva, alçando ao nível de limites materiais princípios que não "se identifiquem com a essência da Constituição material". [36] A preservação da dignidade humana, quer seja analisada sob a perspectiva germânica, quer seja analisada sob a ótica luso-brasileira, é um limite de revisão indissociável da ordem constitucional, sendo meramente declarativos os preceitos que o reconheçam.

Nas Constituições, como a italiana, [37] em que não seja expressamente reconhecida a sua condição de limite de revisão constitucional, a dignidade humana tem sido tratada como um limite implícito. Invocando o art. 2º da Constituição, que considera invioláveis os direitos fundamentais do homem, o Tribunal Constitucional italiano incluiu, sob a epígrafe da inviolabilidade, qualquer intervenção promovida pelo legislador, inclusive de índole revisional, que atente contra os "direitos inalienáveis da pessoa humana", já que "pertencentes à essência dos valores supremos sobre os quais se funda a Constituição italiana". [38] Em rigor, a inviolabilidade de um direito não importa, necessariamente, na sua correlata imutabilidade, pois um direito pode ser inviolável tão-somente enquanto seja contemplado no ordenamento. De qualquer modo, a decisão do Tribunal italiano bem demonstra que os limites materiais de revisão não precisam estar expressos, podendo resultar de uma interpretação sistêmica que prestigie os princípios e valores fundamentais da Constituição ou mesmo transcendentes a ela.

Em resposta aos questionamentos formulados, é possível afirmar que, tanto a positivação da dignidade, como a sua contemplação no rol de limites materiais ao poder de revisão constitucional, não se mostram essenciais à sua ampla e irrestrita proteção, isto porque normas dessa natureza terão índole essencialmente declarativa.


6. Regime jurídico

Maiores dificuldades serão divisadas direcionando-se a ótica de análise, não à mera existência axiológica do dever e do direito, mas à sua natureza, extensão e potencialidade de concreção, vale dizer, à posição jurídica do indivíduo em face do Estado. O indivíduo tem o direito subjetivo à observância de sua dignidade? Em caso positivo, ter-se-ia um direito a prestações estatais ou uma mera interdição a um atuar estatal agressivo? Uma vez reconhecido o direito, poderia ser ele ponderado e casuisticamente afastado quando em colisão com outro direito de igual natureza? Sedimentado um dever prestacional ou implementada uma política pública concretizadora da dignidade, é dado ao Estado ab-rogá-la sem a correlata implementação de outra? Esse direito seria oponível a outros particulares? Não sendo um direito, seria tão-somente uma enunciação de tarefas ou fins a serem perseguidos pelo Estado? Ou seria um princípio diretor da Constituição, de ordem interpretativa e essencialmente voltado à preservação da unidade do sistema?

Esses questionamentos, longe de serem indicativos do norte de desenvolvimento da análise a ser realizada, enunciam as potencialidades do tema e a amplitude das omissões dessas breves linhas, essencialmente voltadas a uma visão generalista sobre a dignidade da pessoa humana e que não chegam a formar um percurso sistematicamente articulado com as múltiplas vertentes apresentadas.

Indicados os "limites imanentes" do texto, cumpre dizer que a positivação da dignidade humana, expressão eminentemente polissêmica e que congrega uma pletora de potencialidades valorativas, além de reforçar o comprometimento estatal com os valores a ela inerentes, permite, consoante o padrão normativo, a sua análise sob uma tríade de vertentes: poderá, conforme o caso, ensejar o surgimento de direitos subjetivos públicos, de mandados constitucionais endereçados ao legislador ou de princípios diretores, classificação que atenta para a essência das normas, não para a sua mera expressão lingüística. [39] A começar pelos direitos subjetivos, essa classificação indica uma escala nitidamente decrescente em termos de densidade normativa e de potencial exigibilidade.

6.1. A dignidade humana como direito subjetivo público

Não obstante a indeterminabilidade do conceito, a dignidade humana, uma vez integrada por um núcleo duro de valores inerentes a determinado grupamento, poderá assumir os contornos de um direito subjetivo público, quer seja sob a ótica da interdição de ações agressivas (v.g., direito de o indivíduo não ser submetido a tortura pelos agentes do Estado), quer seja sob a forma de direitos prestacionais (v.g., direito de o indivíduo receber os medicamentos vitais à sua sobrevivência).

Os direitos subjetivos decorrentes da interdição de ações agressivas, beneficiando-se de grande parte dos avanços experimentados pela teoria das liberdades fundamentais, têm obtido uma maior consagração jurisprudencial.

No Brasil, o Superior Tribunal de Justiça, em inúmeras decisões, tem prestigiado a funcionalidade limitativa da dignidade humana. No REsp. nº 379.414/PR, reconheceu como ofensivas à dignidade humana a prisão e a tortura por motivos políticos, daí decorrendo a imprescritibilidade da respectiva ação de reparação dos danos morais. [40]

Inexistindo estabelecimento prisional específico para o recolhimento temporário de agente que goze da prerrogativa de "prisão especial" (v.g., advogado), decidiu o Tribunal, no HC nº 19247/SP, que poderia ser ele recolhido em cela comum, mas distinta dos outros presos, "observadas as condições mínimas de salubridade e dignidade humana". [41] Esta ressalva, se é digna de encômios a um exame mais superficial, pois nada mais natural que assegurar a salubridade e a dignidade humana, torna intuitiva a realidade que, num plástico eufemismo, busca encobrir: como as prisões brasileiras são reconhecidamente atentatórias à dignidade humana, o Tribunal anui a essa premissa e retira do seu alcance determinado agente. Se o instituto da "prisão especial", em sua gênese, busca preservar os agentes que, teoricamente, apresentem menor periculosidade ou cujas funções desaconselhem o contato com outros presos, passou ele a ser o divisor de águas entre os indivíduos sem dignidade (a generalidade dos presos) e os indivíduos com dignidade (a minoria que goze da prerrogativa da "prisão especial"). Esse é um exemplo típico - ainda que derivado de um atuar (propositadamente) "inconsciente" do Tribunal - do distanciamento verificado entre a perspectiva idealístico-formal e a perspectiva material da dignidade humana.

No REsp. nº 503.990/BA, não obstante a existência de leis que a restringiam, o Superior Tribunal de Justiça reconheceu a possibilidade de compensação tributária para o fim de reaver quantias pagas a título de tributo considerado inconstitucional, acrescendo que, na espécie, referidas restrições não poderiam incidir sobre pagamentos efetuados antes da sua vigência. [42] Segundo o Tribunal, "os princípios fundamentais do contribuinte nascem do texto constitucional, que exige respeito à cidadania e à dignidade humana, proibindo empréstimo forçado sem autorização de lei ou de forma disfarçada".

Situando a questão sob a ótica do status libertatis do indivíduo, o Tribunal, "aparentemente", reconheceu ofensa reflexa à dignidade humana na imposição, a adolescente infrator, de medida sócio-educativa de internação, pela prática de ato infracional análogo ao crime de tráfico de estupefacientes, sem que a lei de regência contemplasse tal medida quanto a essa espécie de infração. [43] Utilizamos o advérbio "aparentemente" por duas razões. Primeiro, pela lacônica referência à dignidade humana, o que em muito dificulta a compreensão do real enquadramento jurídico promovido pelo Tribunal – seria um direito subjetivo ou um princípio diretor? – e segundo, pela impressionante freqüência com que o relator dessas decisões repete as mesmas expressões em seus acórdãos, o que faz surgir a dúvida: fá-lo no afã de contemplar a plasticidade de suas linhas ou elas efetivamente contribuíram na construção do seu discurso?

A dignidade humana, na condição de fundamento do Estado Democrático de Direito, foi igualmente invocada para fins de reconhecimento da impossibilidade de investigação policial concernente a uma única operação bancária se prolongar por mais de um lustro. [44] Ainda que o Estado deva apurar a prática de ilícitos desestabilizadores das relações sociais, é evidente que ao indivíduo não pode ser imposto o dissabor de, ad aeternum, ver-se na condição de suspeito ou réu em potencial.

Embora a legislação penal portuguesa não puna a prostituição propriamente dita, o Supremo Tribunal de Justiça reconheceu que os tipos penais que combatem a sua exploração, em última ratio, visam a resguardar e proteger a dignidade da pessoa humana, bem jurídico que, apesar da imoralidade de sua conduta, não pode ser subtraído às prostitutas. [45]

De forma correlata aos direitos de informação e de livre expressão do pensamento, pilares essenciais de um Estado Democrático de Direito, ressaltou o Supremo Tribunal de Justiça português que assume igual relevo "a garantia do respeito pelos demais direitos, liberdades e garantias fundamentais dos cidadãos, entre os quais o da dignidade da pessoa humana (artº 1º) e os direitos à integridade moral (art. 25, n.1)", vedando à imprensa exercê-los com ofensa dos direitos da personalidade, o que inclui o n. 1 do art. 70 do Código Civil, protegendo o "bom nome e reputação, caso em que surgem os direitos de resposta, de rectificação e ainda de indemnização que o n. 4 do artº 37 CRP expressamente contempla". [46]

O Supremo Tribunal de Justiça tem associado o princípio limitativo da culpa (nulla poena sine culpa) à compatibilidade com a dignidade da pessoa humana, definindo que, além de não poder existir pena sem culpa, o princípio indica, "em concreto, o seu limite máximo absolutamente intransponível por maiores que sejam as exigências de carácter preventivo que se façam sentir". [47]

Entendendo que a sobrevivência digna do trabalhador exige o atendimento do "mínimo dos mínimos", o Tribunal Constitucional português declarou a inconstitucionalidade do art. 824, nos 1 e 2, do Código de Processo Civil, "na medida em que permite a penhora de até 1/3 das prestações periódicas pagas a título de aposentação ou de outra qualquer regalia social, seguro, indemnização por acidente ou renda vitalícia, ou de quaisquer outras pensões de natureza semelhante, cujo valor não seja superior ao do salário mínimo nacional então em vigor, por violação do princípio da dignidade humana contido no princípio do Estado de direito que resulta das disposições conjugadas dos artigos 1º, 59º, n.º2, alínea a e 63º, n.ºs 1 e 3, da Constituição." [48]

Em relação à dignidade humana como fonte de direitos prestacionais, vertente especificamente direcionada aos direitos sociais, assumirá ela ares de exceção. Em regra, a dignidade humana não costuma ser interpretada como diretamente invocável a partir de normas constitucionais, pressupondo, ante o seu acentuado grau de indeterminação, a intermediação do legislador, que fixará suas condições e dimensões, bem como a respectiva fonte de custeio das prestações dela derivadas. [49]

No entanto, tratando-se de prestações que se enquadrem, consoante os valores vigentes no grupamento, em um núcleo, essencial e incontestável, consubstanciador da dignidade, não vislumbramos óbice à sua invocação direta com o fim de alicerçar pretensões dessa natureza. Nesse caso, como veremos, o difundido vetor principiológico da dignidade assume maior concretude e, consoante a situação específica, pode assumir o status de direito subjetivo. [50]

Os valores integrados na dignidade humana, em verdade, congregam a essência e terminam por auferir maior especificidade nos direitos fundamentais. Os direitos fundamentais, a um só tempo, esmiúçam a idéia de dignidade e têm a sua interpretação por ela direcionada, do que resulta uma simbiose que não é passível de ser dissolvida. [51] Essa constatação talvez justifique o fato de a dignidade humana, conquanto absorva o núcleo essencial do direito fundamental que alicerça uma pretensão de ordem prestacional, ser normalmente invocada em caráter subsidiário, não como fundamento principal à configuração do direito subjetivo a essa prestação. [52] Todavia, ainda que deslocada a uma posição secundária e alçada à condição de mero "incidente argumentativo", a dignidade humana não se dissocia de seu caráter estrutural, mantendo a condição de ratio decidendi. [53][54]

Outra constatação é a de que, aparentemente, esse caráter subsidiário é verificado com maior intensidade quando a ordem constitucional consagra um catálogo de direitos fundamentais, não quando silencia ou se limita a exortar a observância da dignidade humana, o que é uma indiscutível demonstração da força persuasiva do positivismo jurídico. Ainda que a dignidade humana seja um valor ínsito ao próprio grupamento, o seu verdadeiro potencial, aos olhos de muitos, resulta, não das forças sociopolíticas do meio em que se projeta, mas da sua encampação por um singelo padrão normativo plasmado em um texto formal.

6.2. A dignidade humana como mandado constitucional ou princípio diretor

Os mandados constitucionais endereçados ao legislador apresentam características essencialmente programáticas e dispõem sobre determinadas tarefas e fins a serem alcançados. Além disso, a exemplo dos princípios diretores, servem de parâmetro ao controle de constitucionalidade (por ação ou por omissão), prestam um relevante auxílio na interpretação das normas constitucionais e infraconstitucionais e exigem que todos os atos emanados do Poder Público, de natureza normativa ou não, sejam com eles compatíveis. Por sua própria natureza, atingem domínios potenciais de aplicação que se espraiam por searas não propriamente superpostas a parâmetros indicadores de um conteúdo mínimo de dignidade humana.

No que concerne à concepção da dignidade humana como princípio diretor, ela indica a idéia de que quaisquer dimensões do atuar humano devem prestigiar essa mesma essência, implicando o respeito, a consideração e o estímulo à integração social pela só condição de ser humano. O princípio da dignidade humana veicula parâmetros essenciais que devem ser necessariamente observados por todos os órgãos estatais em suas respectivas esferas de atuação, atuando como elemento estrutural dos próprios direitos fundamentais assegurados na Constituição. [55] A maior fluidez que ostenta, oriunda de sua estrutura principiológica e da não-indicação de uma diretriz específica a ser seguida, lhe confere uma densidade normativa inferior, mas não menos importante que a dos mandados constitucionais endereçados ao legislador.

Apesar dos distintos enunciados lingüísticos, parece-nos que tanto a Grundgesetz como as Cartas brasileira e portuguesa conferiram à dignidade humana um tratamento essencialmente principiológico, erigindo-a à condição de princípio diretor do sistema. [56] As duas últimas efetivamente a ela se referem como um princípio fundamental do Estado, enquanto a Grundgesetz chega a resultado semelhante reconhecendo a sua intangibilidade e a obrigação dos poderes públicos em respeitá-la e protegê-la. Em ambos os casos, os contornos da norma não indicam com precisão o conteúdo da prestação passível de ser exigida, o que, em um primeiro momento, exclui a idéia de direito subjetivo, bem como, ressentindo-se da mesma precisão, não indicam tarefas ou fins específicos a serem alcançados, o que impede, inclusive, sejam visualizadas como mandados constitucionais endereçados ao legislador: vale ressaltar que o dever de respeitá-la e protegê-la não é propriamente a enunciação de uma tarefa estatal, mas um efeito correlato ao próprio reconhecimento da dignidade humana, independendo, mesmo, de previsão normativa.

A conclusão diversa chegaremos com a análise do art. 227, caput, da Constituição brasileira, que dispõe ser dever da família, da sociedade e do Estado assegurar, com absoluta prioridade, à criança e ao adolescente, dentre outros direitos, o respeito à dignidade. O mesmo ocorrerá em relação ao art. 67, 2, da Carta portuguesa, que dispôs sobre o dever do Estado, para a proteção da família, regulamentar a procriação assistida de modo a salvaguardar a dignidade da pessoa humana. Trata-se de nítidos mandados constitucionais endereçados ao legislador, de características programáticas e que dispõem sobre determinadas tarefas e fins a serem alcançados.

No Brasil, considerando o direito à saúde um direito fundamental e realçando o fortalecimento da jurisprudência dos Tribunais Superiores no sentido de reconhecer o dever de o Estado fornecer medicamentos essenciais à sobrevivência de pessoas carentes, o Superior Tribunal de Justiça, passando ao largo do caráter programático das normas constitucionais que o consagram, condenou o Estado ao cumprimento desse dever. Ressaltou que, à luz das peculiaridades do caso, "a lei deveria ser interpretada de forma mais humana, teleológica, em que princípios de ordem ético-jurídica conduzam ao único desfecho justo: decidir pela preservação da vida," tendo acrescido a necessidade de serem sopesados "preceitos maiores insculpidos na Carta Magna garantidores do direito à saúde, à vida e à dignidade humana, devendo-se ressaltar o atendimento das necessidades básicas do cidadão". [57] Nesse precedente, a invocação da dignidade da pessoa humana serviu de nítido vetor interpretativo.

Invocando a "cláusula pétrea que tutela a dignidade humana", o Tribunal, em um primeiro momento, reconheceu a impossibilidade de concessionárias de serviço público empreenderem cortes no fornecimento de energia elétrica com o fim de compelir o usuário ao pagamento de tarifa ou multa. [58] Posteriormente, alterou o rumo de sua jurisprudência e reconheceu essa possibilidade. [59]

Em questão afeita à incidência de tributo sobre veículo que seria conduzido não por deficiente físico, destinatário de isenção legal, mas por preposto dele, o que decorria de sua total inaptidão física, o Tribunal interpretou a legislação de regência a partir do princípio da dignidade humana e reconheceu o direito do demandante, tendo acrescido que tal princípio é igualmente a fonte das ações afirmativas que visam a integrar os contornos essenciais da isonomia. [60]

O Tribunal, analisando a possibilidade de progressão do regime prisional fechado para o semi-aberto, deixou expresso que "a dignidade humana, um dos fundamentos do Estado Democrático de Direito, ilumina a interpretação da lei ordinária". [61]

Ainda que, a priori, ostente a forma de princípio diretor ou de mandado endereçado ao legislador, o respeito à dignidade humana pode transmudar-se em direito subjetivo quando, à luz do caso concreto, se mostrarem imprescindíveis determinadas prestações que se encontrem ao abrigo de um quadro axiológico já sedimentado no grupamento. Nesses casos, será possível exigir um facere estatal para atender a um rol mínimo de direitos.

Exemplo de invocação do princípio diretor da dignidade humana, com o fim de conferir concretude aos direitos prestacionais a cargo do Estado, pode ser encontrado na jurisprudência do Tribunal Constitucional Alemão (Bundesverfassungsgericht). Como se sabe, a Grundgesetz, destoando da maior parte das Constituições do segundo pós-guerra, não contemplou um extenso rol de direitos sociais. [62] Não obstante essa lacuna, a jurisprudência do Tribunal Constitucional, combinando os princípios diretores do Estado Social (previsto no art. 20, 1,) e da dignidade humana (art. 1º, 1,), tem deles extraído, em casos específicos, o fundamento de garantia do mínimo vital. [63]

Sobre o autor
Emerson Garcia

Membro do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GARCIA, Emerson. Dignidade da pessoa humana:: referenciais metodológicos e regime jurídico. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 719, 24 jun. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/6910. Acesso em: 18 nov. 2024.

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